sábado, 23 de junho de 2012

Étienne Gilson: metafísica, conhecimento e experiência filosófica



"Quando, devido a alguma descoberta científica fundamental, um homem metafisicamente inclinado, pela primeira vez, capta a verdadeira natureza de toda uma ordem da realidade, o que ele está captando, desse modo, pela primeira vez, é somente uma determinação particular do Ser como tal. Contudo, a intuição do Ser está sempre lá e se o nosso filósofo falha em discernir seu sentido, ele vai cair vítima de sua influência contagiosa.  Aquilo o qual é somente uma determinação particular do Ser, ou um ser, vai ser investido com a universalidade do próprio Ser. Em outras palavras, uma essência particular vai ser creditada com a universalidade do Ser e será permitido excluir todos os outros aspectos da realidade."

ÉTIENNE GILSON, The Unity of Philosophical Experience, p. 315

Durante a toda extensão de seu livro A Unidade da Experiência Filosófica Étienne Gilson analisa um fenômenos que considera constante na história da filosofia e que lhe parece a fonte das muitas decepções e e dos erros que essa mesma história apresenta: a substituição da experiência filosófica por algum modo particular de conhecimento.

Seja o "Logicismo" de Abelardo, o "Teologismo" de Ockham, o "Matematismo" de Descartes, o "Fisicismo" de Kant ou o "Sociologismo" de Comte, todos esses "ismos" apresentam uma e a mesma estrutura, a submissão da filosofia, respectivamente, à Lógica, à Teologia, à Matemática, à Física e à Sociologia.

O resultado é, ele também, típico e invariável. Ao tentar basear ou identificar a filosofia com uma das ciências particulares, o filósofo perde os próprios fundamentos racionais dessas ciências. Afinal, alguma ciência particular pode justificar a si mesma a partir de seus pressupostos e métodos? Onde se perde filosofia, não se encontra ciência. O resultado é o ceticismo.

Contudo, embora o ceticismo se estabeleça depois do fracasso de cada uma dessas identificações errôneas,  uma nova tentativa de alcançar o conhecimento é feita e a filosofia continua seu caminho. Daí Gilson sente-se à vontade de enunciar uma primeira lei da experiência filosófica: a filosofia sempre enterra seus coveiros.

Em outros termos, sempre depois de um Sextus Empiricus, de um Montaigne ou de um Hume, vem um Plotino, um Descartes e um Kant que mais uma vez tenta retomar o caminho da especulação filosófica. 

Mas o que busca a filosofia, ou mais precisamente, a metafísica? Para Gilson, ela busca o fundamento último de toda e qualquer coisa, a realidade fundamental que, embora independente e para além da experiência, funda a própria experiência e não é fundada por nada além dela mesma. 

"É um caráter observável das doutrinas metafísicas que, tão divergentes quanto possam ser, elas concordam na necessidade de encontrar a causa primeira de tudo o que é. Chame-a matéria com Demócrito, o Bem com Platão, o Pensamento que se pensa a si mesmo com Aristóteles, o Uno com Plotino, o Ser com  todos os filósofos cristãos, a Lei Moral com Kant, a Vontade com Schopenhauer ou a Idéia absoluta de Hegel, a Evolução Criadora de Bargson, ou o que quer que se queira citar, em todos os casos, o  metafísico é um homem que olha por trás e para além da experiência buscando um fundamento último de toda a experiência real e possível." (p.307)

Segundo Gilson, essa tendência é tão forte que, mesmo que nos atenhamos somente ao Ocidente, é possivel afirmar uma segunda lei, a saber, que  por sua própria natureza o homem é um animal metafísico.

E o homem é metafísico porque é essencialmente racional. Ele busca, para além dos fatos brutos, aquilo que une a multiplicidade numa unidade. O que é ciência senão uma atividade que se dedica a encontrar estruturas universais e repetíveis que fundam a experiência sensível e que jamais se reduzem a seus exemplares concretos? Uma lei natural, seja ela qual for, é uma estrutura que ultrapassa o que se dá simplesmente na experiência sensível e concreta. 

A metafísica é essa mesma tendência racional buscando a razão última das coisas. A razão, por conseguinte, sempre anseia transcender os limites da experiência dada. Daí Gilson retira uma terceira regra segundo a qual a metafísica é o conhecimento alcançado por uma razão naturalmente transcendente em sua busca pelos primeiros princípios, ou causas primeiras, do que é dado na experiência sensível.

E se a metafísica trata daquilo que é fundamental no sentido mais geral que se possa pensar, segue-se que toda e qualquer identificação dela com alguma ciência particular ou ângulo do real só pode conduzir ao erro e ao fracasso. Como a metafísica busca ultrapassar todo conhecimento particular,  nenhuma ciência particular é competente seja para resolver problemas metafísicos, seja para julgar suas soluções metafísicas, ensina-nos Gilson.

O homem sempre falha na busca metafísica quando concebe todas as coisas como uma só e as identifica todas com alguma dessas coisas. Tales acertou ao dizer que a realidade é una, mas errou ao identificar tudo com a água. Da mesma forma todos aqueles que, ao anunciar a unicidade de tudo o que é, fundamentaram tudo em algo particular no mundo. Assim, diz-nos Gilson, as falhas dos metafísicos decorrem de seu uso imprudente do princípio de unidade presente na mente humana.

Resta ainda a pergunta crucial: o que é isso que funda todas as coisas e que, ao mesmo tempo, não é nenhuma delas em particular e nem pode com nenhuma delas ser identificado? A resposta é o Ser. Sua evidência e necessidade é tão acachapante que o nada, a absoluta ausência de Ser, não é sequer pensável.

"Mas se é verdade que que o pensamento humano é sempre sobre o Ser; que cada  e todo aspecto da realidade, ou mesmo da irrealidade, é necessariamente concebido como Ser, ou definido com referência ao Ser, segue-se que o entendimento do Ser é o primeiro a ser alcançado, o último no qual todo o conhecimento é resolvido e o único a ser incluído em todas as nossas apreensões. O que é primeiro, último e sempre no conhecimento humano, é seu primeiro princípio e seu constante ponto de referência." (p.313)

É necessário concluir que desde que o Ser é o primeiro princípio de todo o conhecimento humano, ele é forçosamente o primeiro princípio da metafísica.

O intelecto intui que algo é, vê imediatamente que algo é. Vê também que aquilo que é, enquanto é, não pode ser e não ser simultaneamente e que uma coisa é ou não é, não havendo uma terceira alternativa. E, mais importante, ele vê que o que é agora veio a ser por ação de algo que já era. O Ser procede do Ser.

Tais princípios são os mais gerais possíveis e nenhum outro é-lhes anterior, todos os outros princípios de todas as outras ciências pressupondo-os necessariamente. São os princípios indemonstráveis apreendidos por intuição intelectual que tornam possíveis todas as demonstrações da razão discursiva.

Contudo, se tudo o que é é Ser, cada coisa é Ser de acordo com sua própria essência. Ser algo é ser um exemplar de uma essência, a primeira determinação do Ser. Nunca se pode perder de vista essa distinção e, a partir dela, chegamos à última conclusão apresentada por Gilson: todos os fracassos da metafísica devem ser traçados até o fato de que o primeiro princípio do conhecimento humano foi ou ignorado ou mal utilizado pelos metafísicos.

O Ser é anterior ao pensamento e a verdade não reside numa dedução de um sistema do mundo a partir do pensamento, mas na relação de toda realidade que conhecemos com o Ser, no qual tudo é reunido.

A fidelidade ao Ser é a fidelidade à verdade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Imaginei, é isso, então. Me intuir percebendo o todo da experiência possivel. Eu tive com Brentano, quase fui vom Kant, mas falhei na tripla síntese.