domingo, 6 de fevereiro de 2011

Voegelin, o abismo moral e a ordem transcendente


"A world that allows itself to be shaken by an irrational man is contemptible."

ERIC VOEGELIN



A frase acima do grande filósofo e cientista político alemão radicado nos Estados Unidos Eric Voegelin foi proferida em uma das onze palestras proferidas na Alemanha na década de 60 e que foram reunidas em livro sob o título Hitler and the Germans.

Pode-se dizer que ela aponta para a questão central das palestras de Voegelin sobre as relações de Hitler com a sociedade alemã de sua época. Uma nação que permite que um homem desprezível moralmente alcance o poder máximo sobre tudo e sobre todos só pode estar num estado tão desprezível moralmente quanto seu líder.

Ou seja, que estado de degradação cultural, intelectual, social, ética e moral uma sociedade tem que atingir para que certos tipos possam galgar com sucesso as escadarias do poder? Voegelin aponta para o fato doloroso de que Hitler não foi um acidente imprevisível num percurso de resto retilíneo e constante, mas o sintoma incontornável de uma doença espiritual que não foi reconhecida a tempo como tal.

Contudo, o abismo que tornou possível a ascenção de Hitler ao poder não é uma idiossincrasia da alma germânica. E a questão para a qual Voegelin aponta vai além da situação histórica determinada estudada por ele naquelas palestras.

Como o próprio Voegelin declara, o importante não é mergulhar no conhecimento milimétrico de cada uma das atrocidades nazistas. É bom que elas sejam denunciadas como tais, como atrocidades absolutamente execráveis. Mas essa denúncia deixa intocada a questão central sobre o estado de uma sociedade que permite a tais homens deploráveis chegar ao poder.

Que doença é essa que faz com que toda uma sociedade - sua elite intelectual aí incluída - torne-se praticamente insensível à baixeza moral manifestada por determinados elementos que pleiteiam o ingresso nos corredores do poder?

Tal pergunta é cabível ainda hoje, em nossa realidade. Que tipo de depravação é essa que faz com que aceitemos homens da mais baixa extração moral e intelectual como nossos governantes? Eles não são fruto do acaso ou da imposição externa, eles são o sintoma do grau de decomposição espiritual em que nos encontramos.

Para Voegelin, a razão última do fenômeno descrito até aqui está em uma insensibilidade à ordem transcendente das coisas. O cosmos interno do homem depende da ordem descoberta nas duas grandes experiências do divino na civilização ocidental: a revelação monoteísta israelita e a filosofia grega.

Em ambos os casos, na dignidade humana está implicada uma participação no divino, uma dependência do proton aition, da causa primeira. O solo é o Ser e a perda da realidade é sempre uma perda da ordem do Ser. A desdivinização tem como contrapartida necessária a desumanização.

A ordenação da realidade interna, não estando mais ancorada na ordem transcendente do Ser, mas no caudal caótico dos desejos, gera uma progressiva desumanização e uma hybris cuja máxima poderia ser a frase do poeta romântico alemão Novalis: "O mundo deve ser como eu quero!"

Aleksandr Solzhenitsyn já dizia que é nos corações humanos, e não nas classes ou partidos políticos, que encontra-se a linha separando o bem do mal. É o homem, cada homem, na medida em que opta pelo bem, pelo Ser, submetendo-se à ordenação "vinda do alto", que subverte a marcha da desumanização em si mesmo.

Outro nome para isso não há senão metanóia.

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