domingo, 10 de outubro de 2010

Émile Boutroux, matemática e a contingência das leis naturais


"As leis mecânicas não são uma simples promoção e complicação das matemáticas; com efeito, elas implicam um elemento novo que não pode ser restituído à intuição matemática, à saber, a solidariedade de fato, a dependência regular e constante, empiricamente dada e incognoscível a priori , entre duas grandezas diferentes." (tradução minha direto do original em francês)

ÉMILE BOUTROUX, L'Idée de Loi Naturelle dans la Science et la Philosophie Contemporaines


No post anterior tratamos da questão de uma ontologia prévia que determina o caráter das leis descobertas pela ciência e das teorias que lhes servem de base. O presente post, de certa forma, continua aquela discussão.

Émile Boutroux, no trecho citado, mostra que as leis mecânicas não são simples leis matemáticas, mas que nelas se revela, na medida em que pretendem tratar do real, um aspecto novo e importante. Se a mecânica se baseasse só e tão somente na necessidade lógica que governa a matemática, então todas as suas afirmações seriam necessariamente verdadeiras uma vez admitidos os axiomas.

Se assim fosse, nada poderia mudar o caráter necessário dessas leis e nenhuma conseqüência falsa poderia se seguir delas. Seria a ciência perfeita e ideal. De fato, a ciência moderna, quando tenta postular uma ontologia do real calcada no quantitativo, quer no fundo fazer que a ciência física tenha o benefício e o apanágio da certeza das matemáticas.

Entretanto, como aponta Boutroux, embora as leis formais que regem a descrição do comportamento das grandezas seja matemática, esse comportamento, ou seja, a série de constantes que se manifestam no mundo, não são descobertas da matemática, mas da observação.

Que os corpos físicos se comportam de tal e tal maneira, com tais e tais efeitos, é algo que pode ser descrito matematicamente, mas conhecido somente por observação. Nenhuma lei matemática determina a priori que os corpos devam se comportar da maneira como se comportam. Mas se eles se encadeiam de uma forma determinada, a partir desse conhecimento e de outras constantes, é possível descrever os estados atuais e calcular os estados futuros.

A confiança na constância do encadeamento determinado das grandezas físicas provém não da matemática, mas da indução. E a indução, como entendida pelos modernos, não é mais do que a coleção numérica de instâncias observadas que gera uma inferência sobre o comportamento de todas as instâncias futuras.

Nesse caso, nada impede que não estejamos diante de leis imutáveis, mas de meras constantes temporalmente limitadas e contingentes. Não é difícil conceber um movimento constante que um dia deixa de se repetir. Enquanto ele se dá, pode-se descrevê-lo matematicamente e prever estados futuros a partir de estados presentes ou passados. Mas a vigência dessa constância pode muito bem passar e não mais se repetir.

Ainda que se defenda como Daujat e outros pensadores aristotélico-tomistas que o homem abstrai, capta em meio ao turbilhão incessante das coisas, as propriedades quantitativas dos corpos e, baseando-se nelas, constrói equações que descrevem perfeitamente seu comportamento, isso não garante a permanência indefinida deste.

Isso porque o que serve de base para a descrição matemática são as propriedades quantitativas dos corpos em geral. Que qualquer corpo tenha propriedades matematicamente descritíveis pode-se facilmente aceitar sem com isso se admitir que determinado comportamento entre grandezas físicas seja matematicamente necessário a priori e nem que se repetirá sempre.

Jacques Maritain já havia mostrado que a ciência moderna tem sua regra formal na matemática e sua matéria naquilo que é físico. Boutroux, por sua vez, mostra que a impossibilidade de identificação da necessidade abstrata das matemáticas e da constância do comportamento observável dos corpos impede que o ideal da ciência perfeita acalentado pelos modernos se torne realidade.

Em outros termos, as matemáticas não seriam a linguagem última do mundo, pois este apresenta aspectos totalmente distintos daqueles capazes de serem alcançados e abarcados pela linguagem quantitativa. E por isso não há possibilidade de se determinar leis imutáveis a partir somente da matematização daquilo que se observa ser constante.

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