segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Aristóteles e Descartes: lugar, finalidade e física


"Extensão e movimento. Ou matéria e movimento. Extensão sem limites e sem fim. Ou matéria sem fim nem limites: para Descartes, é estritamente a mesma coisa. E movimento sem tom nem som; movimentos sem objetivo e sem fim. Não há mais lugares próprios para as coisas: todos os lugares, com efeito, se equivalem perfeitamente; todas as coisas, de qualquer forma, se equivalem perfeitamente. Todas não são mais que matéria e movimento. E a Terra não está mais no centro do mundo. Não há mais centro; não há mais 'mundo'." (tradução minha direto do original em francês)

ALEXANDRE KOYRÉ, Entretiens sur Descartes


Aristóteles reconhecia que, no mundo sublunar, só existia necessidade absoluta nos movimentos que, por sua estrutura cíclica, imitavam os movimentos circulares eternos, perfeitos e imutáveis dos astros no mundo supralunar. Assim, o ciclo das estações e da reprodução dos seres vivos seriam eternos, pois neles o conseqüente sempre estaria implicado no antecedente.

Na reprodução se encontra a única possibilidade de imortalidade e eternidade para os seres vivos. A cada novo indivíduo, formado pela imposição da Forma (dada pelo progenitor), na matéria, a espécie é mantida viva, ainda que os indivíduos inexoravelmente pereçam.

A causa formal então será o princípio que, como causa eficiente, agirá no interior do organismo levando-o a realizar plenamente a sua perfeição que é a Forma enquanto causa final. A Forma do gato, transmitida por um gato adulto a seu descendente, agirá no interior desse organismo como princípio regulador e eficiente, ordenando a matéria de tal forma que ela possa realizar o fim próprio da Forma recebida, a saber, o gato adulto, bem-acabado e portador das características gerais da espécie.

A necessidade absoluta, entretanto, é específica, ou seja, refere-se somente à perpetuação da espécie. Nos indivíduos há somente uma necessidade hipotética. O gato adulto pode transmitir a Forma a um descendente, mas isso não significa que ele, necessariamente, chegará a ser um gato.

A matéria segunda, já definida por qualidades formais, pode impor restrições à imposição da Forma e impedir a obtenção de um indivíduo plenamente acabado. É a teratologia aristotélica. Os monstros, ou animais defeituosos, são os resultados dessa resistência material. Mas, num outro nível, também a simples possessão da Forma é somente uma atualização primeira. Agir é a atualização segunda e chegar à excelência (areté) é a atualização máxima. E, para o homem, a excelência é a felicidade.

Com sua Física, que engloba tais processos qualitativos que vão muito além da mera locomoção espacial, Aristóteles apontava para o fato de que a Forma recebida é nossa essência e determina nosso lugar no Cosmos. Entretanto, a mera recepção da Forma não garante o pleno desenvolvimento das potencialidades que lhes são próprias, a excelência. A finalidade é dada na Forma, mas a atualização da mesma não é mais do que uma hipótese.

No século XVII, com a Nova Física, ancorada na redução do movimento à mera locomoção entre pontos num espaço geométrico infinito e indistinto, a própria idéia de finalidade é rejeitada. Tudo se resume, como em Descartes, ao que pode ser medido e calculado, ao que pode responder à gramática da matemática do extenso.

A necessidade invocada para os fenômenos do universo será somente aquela das proposições da matemática e da geometria; não mais aquelas da finalidade e da hierarquia. Espaço geométrico infinito, sem lugares privilegiados, sem lugares próprios definidos pela essência (Forma) de cada ser.

Se não há lugares naturais definidos pela Forma de cada ser no espaço infinito e indistinto da ontologia geométrico-matemática, então não há também finalidade. Pois o movimento para o lugar natural não era mais do que a atualização da potencialidade própria definida pela causa essência de cada ser.

O universo cartesiano, e da Nova Física, é então sem fim. Sem finalidade e, como dizia Descartes receoso de falar de infinitude espacial, indefinidamente estendido. É mecânico, age por si mesmo, resultante de leis matemáticas do movimento. A causa final é expulsa do universo.

Se no Cosmos de Aristóteles a Forma fixava o lugar de cada coisa no mundo, ainda que não garantisse sua plena atualização, no universo indefinidamente estendido de Descartes não há Forma nem finalidade fixada. Não parece difícil entender porque não sabemos mais o que somos.

sábado, 19 de setembro de 2009

Galileu, Barberini e a verdade das teorias astronômicas


"A forma mais rápida e certa de mostrar que a posição de Copérnico não é contrária às Escrituras é, a meu ver, mostrar por mil provas que tal proposição (o copernicanismo) é verdadeira e que a posição contrária não pode subsistir de forma alguma; conseqüentemente, desde que duas verdades não podem contradizer uma à outra, é necessário que a posição reconhecida como verdadeira concorde com as Sagradas Escrituras." (tradução minha)

GALILEU, in BERTI's Copernico e le vicende del sistema copernicano

Tanto Kepler e Brahe quanto Osiander e Bellarmino haviam salientado o fato de que teorias astronômicas conflitantes, mas adequadas aos fenômenos podiam ser defendidas simultaneamente sem contradição. A solução para tal conflito seria, para Kepler e Brahe, comparar os corolários de tais teorias com um critério infalível de desempate: as verdades bem fundamentadas da física aristotélica e as verdades reveladas das Escrituras.

Galileu, por sua vez, rejeitava a idéia de Osiander de interpretar as teorias astronômicas como descrições matemáticas somente adequadas aos fenômenos e afirmava a verdade do copernicanismo. Mas este estava em contradição com a física peripatética e com as Escrituras.

Quanto a Aristóteles, Galileu considerava que o mestre grego estava errado. Quanto às Escrituras, bem, elas não estavam erradas, mas sua contradição com o copernicanismo era apenas aparente, fruto de interpretações da Tradição, essas sim errôneas.

Ele propõe então um engenhoso raciocínio para provar sua tese. Se realmente duas verdades não podem estar em contradição e se o copernicanismo mostrasse infalivelmente sua verdade, então ter-se-ia que admitir que ele não poderia estar em contradição com as Escrituras, que eram reveladas por Deus e, por isso mesmo, certamente verdadeiras.

O ainda cardeal Maffeo Barberini, futuro Urbano VIII, amigo e salvador de Galileu, ouviu da boca do próprio florentino esse argumento e a ele se contrapôs com sagacidade. Ora, se era verdade que o copernicanismo, se verdadeiro, não poderia logicamente estar em contradição com a verdade das Escrituras, restava ainda provar que o copernicanismo era verdadeiro.

Ocorre que, ainda que, como queria Galileu, o copernicanismo se mostrasse, por mil argumentos, melhor do que qualquer alternativa existente, isso não provaria sua verdade, pois "Deus teria o poder e o saber para arranjar de forma diferente as órbitas e estrelas de uma forma tal que salvasse todos os fenômenos que aparecem nos céus ou que se referem ao movimento, ordem, localização, distâncias e arranjo das estrelas."

Ou seja, ainda que houvessem na época somente duas teorias alternativas para explicar o universo e, somente uma delas, o copernicanismo, fosse capaz de salvar todos os fenômenos, isso não teria força de prova de um silogismo disjuntivo (A ou B, não-B, então A). Isso simplesmente pelo fato de que, no caso das teorias científicas, não há como garantir que realmente não há e não pode haver uma terceira alternativa.

Pelo fato de que as teorias somente podem, como Osiander e Bellarmino compreenderam, oferecer em sua defesa a adequação de suas proposições aos fenômenos observáveis, é sempre possível que estejam erradas e, ainda assim adequadas. É possível sempre que a natureza das coisas seja outra, ainda não imaginada e proposta numa teoria.

Nesse sentido, é sempre possível que Deus tenha arranjado as coisas de forma diferente do que afirmam todas as teorias conflitantes e, contudo, adequadas aos fenômenos acessíveis à observação. Por outras palavras, a adequação de uma teoria e a não-adequação das rivais não torna a primeira verdadeira, pois é sempre possível que a natureza das coisas seja diversa das afirmações da teoria meramente adequada.

Assim, Galileu teria que mostrar que o copernicanismo, além de supostamente o único adequado aos fenômenos, era também a única resposta possível (a existência de uma alternativa sendo impossível) para aí então, pela exigência lógica de que duas verdades não podem se contradizer, forçar a Igreja a empreender uma revisão na interpretação tradicional das Escrituras para harmonizá-las com o copernicanismo.

Segundo Oregio, que relata a conversa de Barberini com Galileu ocorrida logo após a condenação de 1616, o astrônomo e matemático florentino, depois de ouvir tal argumento do futuro papa, calou-se meditativo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Kepler, Brahe e o critério das teorias astronômicas


"Mesmo se as conclusões de duas hipóteses coincidem no campo geométrico, cada uma dessas hipóteses terá seu corolário peculiar no campo da física. Mas os praticantes (de astronomia) nem sempre têm o hábito de atentar à tal diversidade em termos físicos, e eles mesmos muito freqüentemente confinam seu próprio pensamento dentro dos limites da geometria ou astronomia e tentam resolver a equivalência das hipóteses no interior de uma ciência particular, ignorando os resultados diversos os quais dissolvem e destroem a pretendida equivalência quando se tomam em consideração as ciências correlatas." (tradução minha)

JOHANNES KEPLER, Apologia Tychonis contra Nicolaum Raymarum, 1601

Tanto Johannes Kepler quanto Tycho Brahe pretendiam que suas teorias astronômicas pudessem apontar a natureza verdadeira dos fenômenos celestes. Com tal posição, eles decididamente se afastavam da opinião de Osiander, contida em seu prefácio ao De Revolutionibus de Copérnico, onde ele afirmava que o heliocentrismo copernicano deveria ser encarado somente como uma hipótese de cunho matemático que se adequava aos fenômenos aparentes mas que não tinha a pretensão de ser uma descrição das causas verdadeiras dos mesmos.

Embora Kepler e Tycho negassem essa tese de Osiander, que seria defendida depois por Roberto Bellarmino por ocasião do processo de Galileu, eles reconheciam que hipóteses conflitantes em suas asserções sobre as verdadeiras causas dos fenômenos celestes podiam, no entanto, ser totalmente adequadas aos fenômenos observáveis.

Ora, duas hipóteses conflitantes não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, embora possam ser ambas falsas. Não se sabia, pelo menos desde Aristóteles, que de premissas falsas podem-se derivar conclusões verdadeiras? Se era assim, a simples adequação das teorias astronômicas aos fenômenos observáveis e o sucesso das predições delas deduzidas não poderiam garantir a verdade de nenhuma teoria.

Se duas teorias astronômicas podem ser equivalentes na adequação aos dados observacionais por meio dos esquemas geométricos e serem conflitantes com respeito às asserções acerca da natureza real dos fenômenos, então algum tipo de critério deve haver para que se resolva esse impasse.

Para Tycho Brahe e Johannes Kepler esse critério se encontrava na física aristotélica e nas Sagradas Escrituras. Se duas teorias astronômicas são conflitantes em suas afirmações sobre a natureza dos fenômenos, mas adequadas às observações e corretas em suas predições, o impasse será solucionado através da investigação da concordância dos corolários das mesmas com a física peripatétca e com a Revelação.

Como Pierre Duhem afirma, a necessidade da postulação de tal critério só é necessária por conta da pretenção realista das teorias de Kepler e Brahe. Para Osiander e Bellarmino, como para muitos dos antigos, a mera adequação aos dados observáveis seria a única exigência para teorias astronômicas.

Desse ponto de vista, não haveria nenhum problema em sustentar-se, ao mesmo tempo, teorias igualmente adequadas aos dados observacionais e, no entanto, conflitantes em suas afirmações sobre a natureza real dos fenômenos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

"Nostalghia" de Andrei Tarkovsky



A cena de Nostalghia (1983) em que o poeta russo exilado Andrei, segurando uma vela, atravessa a piscina vazia de uma estação termal na Itália, cuidadosamente evitando que ela se apague, tem clara ligação com o ato final do protagonista de O Sacrifício.

Em ambos, o sentimento agudo da insuficiência espiritual do mundo moderno leva a um ato de entrega a uma dimensão que, para o racionalismo, nada pode ser senão loucura ou irracionalidade.

A piscina vazia, sem água, sem o elemento envolvente, remete simbolicamente a um mundo também vazio e sem capacidade de acolhimento e proteção. Na água, somos envolvidos, acolhidos. E como diz o "louco" Domenico, duas gotas d'água fazem uma só. As quantidades se tornam unidade.

Na casa de Domenico, cujo teto esburacado permite que a água da chuva a penetre livremente, o belo enquadramento de Tarkovsky permite observar na parede um grande pano estendido onde se lê: 1+1 = 1. Mais uma vez o motivo da quantidade que se faz unidade. Perece querer dizer-nos que a quantificação, que define o mundo moderno, não pode ser universal e nem dar conta de todas as dimensões do espírito humano. Domenico proclama dimensão humana de busca pela unidade e pelo Absoluto.

A água remete também ao elemento de origem, a fonte de onde saímos e da qual temos nostalgia. A piscina vazia é como um útero vazio, estéril, sem fertilidade. Não é à toa que as mulheres piedosas do início do filme pedem à Santa Maria que conceda à uma jovem o filho que ela tanto anseia. É ao espiritual, ao supra-racional, que nosso mundo moderno deve se voltar a fim de que haja futuro.

A piscina vazia significa também um exílio ontológico. Ela é a imagem do percurso terreno que, por sua natureza, se dá na ausência do contato direto com Deus. Só se pode atravessar esse exílio com uma vela acesa nas mãos. Com uma luz sempre prestes a apagar e que, de fato, diversas vezes se apaga durante o caminho. A vela é o símbolo da dimensão sobrenatural da fé sempre ameaçada de esquecimento. Levar essa vela, cuidar dela, no entanto, é condição para atravessar o caminho e, como afirmava o "louco" Domenico, salvar o mundo.

Andrei assume essa responsabilidade e atravessa o caminho daquela piscina vazia e morre segundos após completar sua missão. Na cena final, ele reaparece, sentado na grama em frente à casa da qual sentia uma nostalgia terrena e, acima e aos lados, colunas de uma antiga igreja, símbolo do absoluto do qual sentia uma nostalgia espiritual.

A cena em si é uma representação do lugar do homem e de sua realização plena. O temporal imerso no eterno, e o terreno envolto pelo celeste. Uma alegoria da imagem cristã do destino humano último, a ressurreição, onde o espiritual e o corporal estarão unidos de forma perfeita?

Decerto uma expressão do anseio humano mais íntimo, o anseio de plenitude. Vale lembrar aqui a resposta de Deus à Santa Catarina de Sena, citada pelo "louco" Domenico: " tu és aquela que não é e Eu Sou aquele que é."