"Extensão e movimento. Ou matéria e movimento. Extensão sem limites e sem fim. Ou matéria sem fim nem limites: para Descartes, é estritamente a mesma coisa. E movimento sem tom nem som; movimentos sem objetivo e sem fim. Não há mais lugares próprios para as coisas: todos os lugares, com efeito, se equivalem perfeitamente; todas as coisas, de qualquer forma, se equivalem perfeitamente. Todas não são mais que matéria e movimento. E a Terra não está mais no centro do mundo. Não há mais centro; não há mais 'mundo'." (tradução minha direto do original em francês)
ALEXANDRE KOYRÉ, Entretiens sur Descartes
Aristóteles reconhecia que, no mundo sublunar, só existia necessidade absoluta nos movimentos que, por sua estrutura cíclica, imitavam os movimentos circulares eternos, perfeitos e imutáveis dos astros no mundo supralunar. Assim, o ciclo das estações e da reprodução dos seres vivos seriam eternos, pois neles o conseqüente sempre estaria implicado no antecedente.
Na reprodução se encontra a única possibilidade de imortalidade e eternidade para os seres vivos. A cada novo indivíduo, formado pela imposição da Forma (dada pelo progenitor), na matéria, a espécie é mantida viva, ainda que os indivíduos inexoravelmente pereçam.
A causa formal então será o princípio que, como causa eficiente, agirá no interior do organismo levando-o a realizar plenamente a sua perfeição que é a Forma enquanto causa final. A Forma do gato, transmitida por um gato adulto a seu descendente, agirá no interior desse organismo como princípio regulador e eficiente, ordenando a matéria de tal forma que ela possa realizar o fim próprio da Forma recebida, a saber, o gato adulto, bem-acabado e portador das características gerais da espécie.
A necessidade absoluta, entretanto, é específica, ou seja, refere-se somente à perpetuação da espécie. Nos indivíduos há somente uma necessidade hipotética. O gato adulto pode transmitir a Forma a um descendente, mas isso não significa que ele, necessariamente, chegará a ser um gato.
A matéria segunda, já definida por qualidades formais, pode impor restrições à imposição da Forma e impedir a obtenção de um indivíduo plenamente acabado. É a teratologia aristotélica. Os monstros, ou animais defeituosos, são os resultados dessa resistência material. Mas, num outro nível, também a simples possessão da Forma é somente uma atualização primeira. Agir é a atualização segunda e chegar à excelência (areté) é a atualização máxima. E, para o homem, a excelência é a felicidade.
Com sua Física, que engloba tais processos qualitativos que vão muito além da mera locomoção espacial, Aristóteles apontava para o fato de que a Forma recebida é nossa essência e determina nosso lugar no Cosmos. Entretanto, a mera recepção da Forma não garante o pleno desenvolvimento das potencialidades que lhes são próprias, a excelência. A finalidade é dada na Forma, mas a atualização da mesma não é mais do que uma hipótese.
No século XVII, com a Nova Física, ancorada na redução do movimento à mera locomoção entre pontos num espaço geométrico infinito e indistinto, a própria idéia de finalidade é rejeitada. Tudo se resume, como em Descartes, ao que pode ser medido e calculado, ao que pode responder à gramática da matemática do extenso.
A necessidade invocada para os fenômenos do universo será somente aquela das proposições da matemática e da geometria; não mais aquelas da finalidade e da hierarquia. Espaço geométrico infinito, sem lugares privilegiados, sem lugares próprios definidos pela essência (Forma) de cada ser.
Se não há lugares naturais definidos pela Forma de cada ser no espaço infinito e indistinto da ontologia geométrico-matemática, então não há também finalidade. Pois o movimento para o lugar natural não era mais do que a atualização da potencialidade própria definida pela causa essência de cada ser.
O universo cartesiano, e da Nova Física, é então sem fim. Sem finalidade e, como dizia Descartes receoso de falar de infinitude espacial, indefinidamente estendido. É mecânico, age por si mesmo, resultante de leis matemáticas do movimento. A causa final é expulsa do universo.
Se no Cosmos de Aristóteles a Forma fixava o lugar de cada coisa no mundo, ainda que não garantisse sua plena atualização, no universo indefinidamente estendido de Descartes não há Forma nem finalidade fixada. Não parece difícil entender porque não sabemos mais o que somos.