terça-feira, 7 de novembro de 2023

Huang Po, Prajñā e o Buddha


"É indispensável não sentir atração por qualquer coisa. Assim, quando virdes os Buddhas, com todas as suas marcas de perfeição, vindo ao vosso encontro, ou que tenhais toda sorte de visões agradáveis, que isso não vos entranhe em nenhum estado de espírito particular."

HUANG PO, Conversações

O mestre budista chinês Huang Po ensina a seu discípulo P'ei Sieou que o grande mestre indiano Bodhidharma, quando de sua vinda à China, transmitiu um só método: o Buddha com o Buddha. O método não é ensinável e o Buddha é inalcançável, pois ambos são o puro espíritoPrajñā, o conhecimento que ultrapassa o intelecto, a análise e o julgamento, é nosso espírito sem caracteres particulares.

Ainda que por só um instante, aquele que forma um julgamento sobre Saṃsāra já caiu no caminho infernal. Crer que há nascimento e extinção é sair da Via. Na verdade, nada nasce e nada sai. Sem essas crenças dualistas, não há mais desgosto ou atração pelo que quer que seja. Tudo é um só espírito, e é aí que começa o veículo do Buddha. As pessoas comuns experimentam todos os tipos de estados de espírito a reboque dos objetos. Mas se desejamos que não haja mais objetos, é necessário esquecer o próprio espírito, pois assim os objetos são vazios e o espírito se retira.

No caso em que não há o esquecimento do espírito, a mera expulsão dos objetos torna-os irremovíveis, e, em consequência, a confusão floresce. Aquele que é adepto de Prajñā não acredita que haja algo a se encontrar, pois a realidade única não é algo que se ganha na Iluminação. Cinco mil pessoas abandonaram o Buddha quando ele pregou o impensável. Foi para elas que ele afirmou não haver nada encontrado na Iluminação. A única coisa que importa é a coincidência silenciosa. 

Ao chegar à sua última hora, o homem comum não tem mais do que contemplar a total vacuidade (śūnyatā) dos cinco agregados, a ausência de ser dos quatro elementos, para ver seu espírito verdadeiro, sem início ou fim, sem características, de cuja essência não nos aproximamos pelo nascimento ou nos afastamos pela morte, absolutamente puro, perfeitamente pacífico, e que é uno com os objetos da talidade. Ser capaz de de alcançar diretamente a compreensão instantânea é desfazer os liames dos três tempos, o "homem que transcende o tempo".

Huang Po, mais uma vez, ensina que não há método de Iluminação. Não se busca o Buddha a não ser com o Buddha, e que, por estranho que possa parecer, o Buddha é inalcançável. Para a mentalidade moderna, que se move somente no nível do discurso sobre o fenomênico, as palavras de Huang Po não são mais do que contrassenso. Não há método, mas o método é o Buddha, que por sua vez é inalcançável. Não se trata aqui de vão gosto pelo paradoxo ou de uma simples negação do princípio lógico de não-contradição. 

O significado desse discurso aparentemente sem sentido se encontra no nível de um fundamento abrangente e transcendente que a tudo abarca sem nada negar. Enquanto permanecemos no mundo fenomênico, no mundo dos entes, daquilo que é limitado e que depende de todo o resto para se manter na existência, só encontramos o que é limitado e perecível. Sendo parte desta realidade, nenhum método pode ser a Iluminação. Somente o Buddha pode alcançar o Buddha. Não há medida de comparação entre o limitado e o ilimitado, entre Saṃsāra e Nirvāṇa.

É impossível buscar o fundamento dos entes enquanto se olha para os entes. Procurar o Buddha entre as coisas do mundo fenomênico é torná-lo inalcançável. Ele não é isto ou aquilo. Manter-se entre as coisas é exilar o Buddha, é não enxergar que ele é o espírito puro que transcende a todas as limitações e condicionamentos. Caminhar entre as coisas para chegar ao Buddha é como querer arrancar a si mesmo de um buraco puxando os próprios cabelos. 

Prajñā é o espírito puro sem caracteres, ou seja, sem isto ou aquilo. O desejo mantém nossos olhos fixos nos objetos, e julgamos as coisas a partir de seu agrado ou de seu desagrado. Amamos isto e rejeitamos aquilo. Enxergamos tudo em termos de coisas que serão julgadas favoráveis ou desfavoráveis, prazerosas ou dolorosas, atraentes ou repugnantes. A mente se mantém presa a isto ou àquilo, dentro do dualismo que é característico daquilo que tem limites e condicionamentos.

Porém, nada há que tenha nascido ou perecido. Só há o espírito puro sem distinções, o fundo indizível de onde nada saiu jamais e nada sairá. A ideia de ponto de vista só faz sentido no mundo dos entes, onde uma coisa não é a outra. A partir de nosso ponto de vista, tudo é limitado, nasce e perece. Mas a limitação só existe para o limitado. Um só pensamento de distinção entre as coisas e o espírito puro desaparece mergulhado nas vagas incessantes dos seres.

O fundamento só aparece quando aquilo que ele fundamenta desaparece. Se as coisas somem completamente, se elas são reconduzidas à sua fonte última, se elas são engolidas pelo Absoluto que as abarca e as transcende infinitamente, nada resta a ser desejado, pois tudo está eternamente no espírito puro para além das três medidas do tempo. Mas não ganhamos nada com isso no sentido de que não nos apossamos de algum objeto, ente ou estado mental. Ganhar algo seria permanecer no mundo dualista dos fenômenos, no âmbito do ser e do não-ser.

Lá onde as coisas revelam a sua vacuidade, isto é, a sua originação dependente, é que resplandece Prajñā. Toda e cada coisa deste mundo depende de todas as outras para existir. O menor grão de areia, para que ele exista e permaneça existindo, exige que todo o resto da realidade esteja presente, pois uma coisa depende sempre de outras, e estas de outras, assim por diante. Tudo tende ao nada, e é nada em certo sentido. Os entes são desprovidos de real substancialidade, não possuem em si mesmos a verdadeira capacidade de existirem independentes uns dos outros.

O grande mestre budista Nagarjuna não hesita em dizer que as coisas são vazio (Śūnya) ao apontar para a instabilidade ou indigência ontológica dos seres. Nada há a ganhar com a Iluminação, no sentido de obter isto ou aquilo. Na sua absoluta não-dualidade, Prajñā é justamente o abandono de todas as coisas e de todas as limitações e condicionamentos. O iluminado perde todas as coisas, e, por isso mesmo, ganha tudo. O espírito individual, prenhe de desejos e de gostos, deve ser esquecido para que a realidade se apresente em sua talidade, isto é, em sua verdade última tal como a conhece o Buddha.

A única coisa que importa é a coincidência silenciosa. Quando todas as coisas, incluindo nosso composto psicofísico, coincidem com seu fundamento derradeiro, nada mais permanece, restando o profundo silêncio de Prajñā indizível. É vão tentar imaginar ou mesmo entender o que é Prajñā como se fosse algo, e, portanto, descritível em termos das coisas que conhecemos. Por isso Huang Po afirma que o Buddha é inalcançável. 

Comparar é colocar as coisas em pares, estabelecer relações entre dois ou mais entes. O espírito puro é incomparável, não é um ente entre outros entes. Seria um erro fatal pensar que Huang Po está opondo este mundo a um outro mundo. Qualquer outro mundo que haja ou possa haver será ainda um mundo, um conjunto organizado de entes limitados. O espírito puro não é um mundo alternativo a este em que vivemos ou a qualquer outro no qual vivemos antes ou poderemos viver depois. É justamente por isso que nada se ganha com a Iluminação, nada há de mundano na pura natureza Búdica.

Não há para onde ir, nem aonde chegar. Tudo já está aqui mesmo, pois Saṃsāra é Nirvāṇa e vice-versa. Mas não fora dito acima que não há medida de comparação entre os dois? Sim, de fato, são incomparáveis na medida em que não são realidades dualisticamente opostas. Não são duas realidades em um mesmo nível, o que permitiria uma comparação por semelhança, por identidade ou por oposição. Ao contrário, Nirvāṇa compreende em si Saṃsāra, mas Saṃsāra não compreende em si Nirvāṇa. Por isso, no Absoluto, só há Nirvāṇa, mas no relativo, e só para o relativo, há Saṃsāra. 

Na sua raiz última tudo é Nirvāṇa, e para compreender isso não é necessário sair de Saṃsāra como quem parte para um outro lugar. Nenhum ente, e nem a totalidade dos entes, pode se constituir em obstáculo real para atingir o Nirvāṇa. Nesse sentido, o Nirvāṇa é aqui em Saṃsāra. O Buddha é aquele que compreendeu que não há dualidade entre os dois porque Nirvāṇa e Saṃsāra não são duas realidades opostas no mesmo nível. 

Os fenômenos manifestam (prādurbhāva) o espírito puro, mas não possuem existência substancial absolutamente independente. Sua substancialidade é apenas relativa, dado que todos os entes dependem de todos os outros para existirem, e que, mesmo assim, todos são passageiros. A impermanência, tema central do budismo, manifesta que os fenômenos não possuem neles mesmos suas existências a não ser de modo relativo, condicionado e derivativo. O que permanece, o incondicionado, Nirvāṇa, portanto, não pode ser algo, algum ente, nem mesmo um mundo, um conjunto de entes

É também por isso que só se pode referir ao Nirvāṇa em termos negativos (não é isso, não é aquilo). O espírito puro, o Buddha, é indizível, incompreensível, informe e ilimitado. Não é coisa, nem ente, e nem algo que se possa conquistar ou se apossar por qualquer método. Só se conhece o Buddha pelo próprio Buddha. O Buddha histórico, enquanto aqui esteve, era o espírito puro do Buddha, indizível e incondicionado, e, ao mesmo tempo, o Buddha Sakyamuni, o sábio príncipe kṣatriya, de nome Siddhartha Gautama, que a tudo renunciou na busca pela Iluminação. 

Não há diferença porque não há dois entes para se instalar a diferenciação. Há o mundo fenomênico, no interior do qual se pode falar com sentido de diferença e de dualidade, e o espírito puro, que a tudo compreende transcendendo a tudo infinitamente. É o apego aos entes que não nos permite enxergar o Buddha manifestando-se em todos os fenômenos como lótus florescendo infinitamente.

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Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Sim Nirvana é uma paz interior que vem de se ter a "visão correta da realidade "...O Buda consegue ficar nesse estado de paz naturalmente...Já nos a todo momento temos que fazer um exercício de constante lembrança sobre natureza da realidade principalmente quando surge as adversidades da vida...Texto excelente como sempre Parabéns pelo trabalho