quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Popper, indução e demarcação científica


“O problema que me preocupava na época não era ‘Quando uma teoria é verdadeira?' nem ‘Quando uma teoria é aceitável?' Meu problema era diferente. Eu queria distinguir entre ciência e pseudociência, sabendo muito bem que ciência freqüentemente erra e que pseudociência pode encontrar ocasionalmente a verdade."

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p.44


Karl Popper destaca-se no cenário da filosofia da ciência do século XX como um dos seus mais importantes pensadores. Durante toda a sua carreira acadêmica dedicou-se à crítica da tradição indutivista no campo da epistemologia. Contudo, segundo suas próprias palavras em Conjectures and Refutations, o problema que o levou, a partir de 1919, a se dedicar precipuamente à epistemologia foi aquele da possibilidade de demarcação clara entre o que se toma como científico e o que se toma como não-científico. 

Tal problema filosófico ficou tradicionalmente conhecido como problema da demarcação e pode ser formulado em uma pergunta básica: “Quando uma teoria deve ser considerada científica?” Em nosso cotidiano trabalhamos com diversas teorias de gêneros e procedências os mais variados. Algumas delas não apelam para conhecimentos empíricos (por vezes rejeitando-os) colocando-se como independentes de verificações na experiência. 

Outras, ao contrário, apelam para a experiência com o intuito de provar sua veracidade. As teorias a que chamamos científicas têm sido tradicionalmente alocadas neste último grupo e seu apelo ao testemunho da experiência tornou-se o principal motivo pelo qual as mesmas são colocadas sob tal título.

Contudo, Popper não se satisfez com essa concepção da natureza das teorias científicas e, ainda em 1919, começou a se questionar se realmente a idéia de verificação de uma teoria através da observação de instâncias empíricas poderia ser um critério adequado para a demarcação entre o pensamento científico e o não-científico. Tal idéia tinha sua origem e base na confiança em inferências indutivas e na validade lógica destas.

Desde Francis Bacon, a indução era considerada o método par excellence da ciência empírica, no qual por meio de observações de fenômenos constantes inferir-se-ia que os mesmos fenômenos apresentariam a mesma regularidade e constância ao longo do tempo. Tal inferência seria traduzida em termos de uma teoria e esta seria confirmada através das instâncias nas quais a predição de constância entre os fenômenos em questão fosse observada. Uma grande quantidade de instâncias confirmadoras da teoria a elevaria à condição de Lei.

Entretanto, segundo David Hume, filósofo cético escocês do século XVIII, não há justificativa lógica para inferirmos o inobservado do observado. Não importando a quantidade de instâncias confirmadoras, não teríamos razões lógicas para esperar que instâncias futuras, potencialmente infinitas, se coadunassem com aquelas observadas no passado. Assim, a indução, a inferência de enunciados universais a partir de enunciados singulares, careceria de justificativa lógica.

Popper aceita as críticas de Hume e defende que qualquer tentativa de justificar a indução, está fadada ao fracasso. Não obstante, as teorias científicas são expressas em enunciados universais do tipo (x) (Rx ->Sx). Num tal enunciado, se pressupõe uma conexão necessária entre todas as instâncias de R e de S . Contudo, para Popper, Hume mostrou muito bem que tal necessidade não existe. A mesma idéia é defendida com veemência por Popper: 

“Eu concordo plenamente com o espírito da paráfrase de Hume feita por Wittgenstein: ‘A necessidade de uma coisa acontecer porque outra aconteceu não existe. Só há necessidade lógica.' ”

Ora, não havendo conexão necessária, não há como garantir que instâncias futuras de enunciados universais se conformem a instâncias passadas. Daí a impossibilidade de uma verificação definitiva de tais enunciados que supõem instâncias futuras inobservadas, não importando o número das instâncias confirmadoras.

Parecia claro a Popper que uma perspectiva indutiva não poderia ser a base para demarcação entre ciência e pseudociência. Além disso, havia teorias que apelavam para evidências empíricas, mas que exibiam características diferentes daquelas teorias reconhecidamente científicas. 

Popper dá como exemplo dessas diferenças três grandes teorias que, à época de sua juventude vienense, centralizavam as atenções dos homens de cultura e reivindicavam a marca da cientificidade: a psicanálise de Sigmund Freud, o materialismo dialético de Karl Marx e a teoria da relatividade de Albert Einstein.

Como Popper mesmo declara, o que havia de impressionante na psicanálise e no marxismo era a grande quantidade de instâncias observacionais verificadoras que apoiavam essas duas teorias. De fato, parecia ao estudante que estas eram como uma revelação divina que explicava todos os acontecimentos dentro de seu campo de aplicação. 

Aparentemente o poder explanatório dessas teorias era tal que podia-se dizer que o mundo estava repleto de instâncias confirmadoras. Uma vez iniciado no estudo de tais doutrinas, o neófito poderia dar conta de qualquer fenômeno dentro de seu campo, pois todo fenômeno, no fundo, não passava de mais uma confirmação das supracitadas teorias.

Contudo, a teoria da relatividade de Einstein pareceu a Popper muito diferente da psicanálise freudiana e do marxismo. O cientista alemão fazia, por meio de sua teoria, predições arriscadas de certos fenômenos em geral dificilmente observáveis. A teoria sustentava, por exemplo, que a luz era atraída pelo campo gravitacional dos corpos de grande massa tal qual os corpos materiais. 

Deduz-se daí a predição de que a luz de uma distante estrela cuja aparente posição estivesse perto do Sol alcançaria a Terra parecendo estar afastando-se do Sol. Tal predição só poderia ser observada durante um eclipse e se o que havia sido predito não se confirmasse, seria um claro sinal da refutação da teoria de Einstein.

A predição foi confirmada por uma expedição de eminentes astrônomos em Sobral, no Ceará, em 1919. O que havia de diferente na teoria da relatividade era que através dela deduziam-se predições que eram incompatíveis com certos resultados passíveis de observação. O contrário se dava com a psicanálise e o marxismo que eram compatíveis com dados divergentes a tal ponto que não se podia, em virtude da própria teoria, encontrar sequer uma instância refutadora nos fatos.

A aparente irrefutabilidade da psicanálise e do marxismo não eram, como usualmente se poderia pensar, a sua força, mas sim a sua fraqueza. Ao contrário, a capacidade de fazer predições que possam ser, em princípio, refutadas é o que dá força à teoria da relatividade. Toda teoria científica procura descobrir leis naturais e estas se caracterizam por uma afirmação de uniformidade de certos efeitos através de um número potencialmente infinito de instâncias.

Se temos uma lei natural X que afirma que para todos os casos de X, se P então Q, o que se quer dizer com isso é que não houve, não há ou haverá uma instância de X em que havendo P não haja também Q. O que se pretende então é afirmar que há uma ligação uniforme ao longo do tempo entre P e Q. 

Se, por exemplo, quando dizemos que um corpo qualquer sempre se esquenta quando é bombardeado diretamente pelos raios do Sol e afirmamos ser isso uma lei natural, postulamos assim que (todas as condições sendo as mesmas) não haverá jamais uma instância na qual um corpo não se esquente sob a ação direta dos raios solares.

Como Popper bem assinalou, as teorias científicas podem ser vistas como proibições. Elas proíbem que certas coisas aconteçam. A lei da gravidade de Newton, como toda lei científica, pode ser reformulada como uma proibição do tipo: “Não haverá um caso no qual um corpo lançado de uma altura qualquer não será atraído pela gravidade tendendo em direção do centro da Terra”. E Popper ainda assevera que quanto mais uma teoria proibir, melhor ela será.

O nível de proibição de uma teoria é proporcional a seu risco. Na mesma medida em que proíbe, a teoria diminui a quantidade das possíveis respostas adequadas às suas predições, aumentando o risco de instâncias refutadoras. O verdadeiro teste de uma teoria será então uma espécie de tentativa de refutação da mesma. O teste será uma tentativa de encontrar furos na lei, de encontrar casos em que a teoria falha em suas predições.

Popper afirma então que o critério do status científico é a testabilidade, ou refutabilidade ou ainda a falseabilidade. A teoria científica é aquela que proíbe muito e que assim arrisca-se à refutação. Uma teoria qualquer que dê condições de refutabilidade, pode ser considerada científica.

Assim, o critério de demarcação popperiano afirma que só pode ser admitido como científico um sistema que seja passível de teste, ou, dito de outro modo, que apresente o caráter disposicional de poder ser refutado empiricamente. E para que a avaliação de teorias aconteça em concordância com a concepção falseabilista de ciência, Popper propõe um método de avaliação ancorado nas virtudes da dedução da lógica formal clássica.

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