sábado, 25 de janeiro de 2014

Alvin Plantinga, conhecimento e normatividade epistemológica





Um dos problemas centrais da epistemologia contemporânea tem sido aquele de determinar em que condições há conhecimento. Segundo alguns intérpretes hodiernos, Platão teria formulado o problema no Teeteto e no Simpósio perguntando-se como se poderia passar de crenças verdadeiras (o meio-termo entre ignorância e sabedoria) ao legítimo conhecimento. 

Para esses intérpretes, a resposta estaria na crença verdadeira justificada. Desde então assumiu-se que para o conhecimento três condições eram suficientes e necessárias: a crença, a verdade da crença e a justificação dessa crença.

Entretanto, como visto em posts anteriores, um artigo de Edmund Gettier, nos anos 60 do século passado, lançou sérias dúvidas sobre a idéia de que a justificação fosse uma condição suficiente para o conhecimento. Inaugurou-se a partir daí, um debate acirrado no mundo analítico anglo-saxão em busca de uma solução para o problema levantado por Gettier.

Se, de fato, o justificacionismo não era suficiente para o conhecimento, como então se poderia resolver o principal problema da epistemologia? E, se possuir crenças verdadeiras justificadas não garante conhecimento, em quê então poderemos crer? 

Evidentemente a questão afeta também a teoria da racionalidade. Se nos perguntamos em quê é racional crer, temos classicamente como resposta que é racional crer naquilo que podemos justificar. Se a justificação não é suficiente, então aquilo que considerávamos racional crer talvez não seja exatamente racional. Ou ainda, se não há meios de justificação de nossas crenças, então também não haveria meios de determinar a racionalidade de qualquer de nossas crenças.

Uma das tentativas de resolver esse problema seria a idéia de que a garantia do conhecimento não passa pela justificação das crenças e sim pela confiabilidade dos processos e das faculdades que as produzem. Nessa perspectiva naturalista, questões descritivas acerca da forma como adquirimos nossas crenças teriam então importância para questões de normatividade epistemológica. Seria necessário saber, entre outras coisas, quais faculdades produzem quais crenças, qual seu funcionamento próprio e quais seus limites e ambientes ideais de funcionamento. 

O filósofo americano Alvin Goldman, por exemplo, desvia a discussão do plano do justificacionismo e defende a idéia de que a condição suficiente para o conhecimento está na confiabilidade do processos que causam as crenças. Segundo Goldman,

"O status justificacional de uma crença é uma função da confiabilidade do processo ou dos processos que a causam, onde (como primeira aproximação) confiabilidade consiste na tendência de um processo produzir mais crenças verdadeiras que falsas."

Entretanto, para o filósofo analítico americano Alvin Plantinga, essa resposta não é suficientemente acurada, embora aponte para o lado certo. A condição suficiente do conhecimento não está no justificacionismo e sim na confiabilidade da fonte de nossas crenças. O que falta à definição de Goldman é uma investigação acerca da função própria das faculdades cognitivas. 

Os processos que Goldman chama de confiáveis podem ser somente acidentalmente confiáveis e não necessariamente confiáveis. Não basta sabermos que um determinado processo tem a tendência de causar mais crenças verdadeiras que falsas; não basta sabermos que essa tendência é expressa em termos do que freqüentemente acontece ou do que normalmente acontece.

Para Plantinga, é necessário sabermos a função própria desses processos. Sabermos que eles são necessariamente confiáveis. É necessário sabermos que faculdades têm como função própria a produção de crenças verdadeiras e quais não têm, qual seu alcance e seus limites, quais são seus ambientes adequados de funcionamento. Se todas essas condições forem cumpridas, então teremos a garantia que o justificacionismo não fornece. 

É possível pensar, por exemplo, em faculdades que geram crenças e que não têm como objetivo a verdade. É possível pensar, por exemplo, que o cérebro de alguém acometido de uma doença incurável e fatal pode, através de neurotransmissores ou coisa parecida, criar nele um sentimento de euforia e vivacidade que gera a crença de uma cura próxima. Essa faculdade pode ter o simples objetivo e função de criar bem-estar e não exatamente de fornecer um retrato fiel da situação real em que a pessoa se encontra.

Por outro lado, uma faculdade pode ter como objetivo um retrato fiel da situação real, mas que por algum problema, esteja funcionando mal. Um exemplo próximo é o de alguém embriagado ou sob efeito de entorpecentes. 

Um outro exemplo mais radical é o de alguém sofrendo de uma moléstia que o faça ver e formar a crença de que as pessoas não possuem rosto. Nestes casos, há uma faculdade envolvida, a visão, que é precipuamente cognitiva, cujo funcionamento próprio tem como objetivo um retrato fiel da situação e que, por efeito de uma moléstia, não funciona como devia.

Poderíamos também citar a possibilidade, de longe a mais radical, de que nenhuma de nossas faculdades tidas como cognitivas realmente nos dão conhecimento fidedigno do mundo. Com isto nos aproximamos da idéia do demônio cartesiano que nos faria crer, em cada momento, ser verdade aquilo que, na realidade, não é. Numa possibilidade menos dramática, podemos pensar, como os darwinistas, que nossas faculdades só podem nos dar um retrato do mundo externo cujo último objetivo é a sobrevivência e não a verdade.

Ao longo de suas obras, Plantinga desenvolve e amplia essa intuição inicial, discutindo seus aspectos gerais, seus problemas e sua aplicação e chega à formulação segundo a qual a condição suficiente do conhecimento será dada por uma crença básica produzida por faculdades designadas para a verdade funcionando propriamente (de acordo com seu desenho) num ambiente adequado à seu funcionamento.

Para Plantinga são essas “crenças básicas”, ou seja, crenças nas quais confiamos não por sua derivação de outras crenças por meio de raciocínios ou inferências dedutivas ou indutivas, que estarão no fundamento do edifício do conhecimento. Confiamos nelas porque são produzidas por faculdades cognitivas cujo objetivo é a verdade e que estejam funcionando propriamente (segundo seu “desenho”) e em um ambiente adequado para suas funções. Plantinga dá como exemplo de crenças geralmente tomadas como básicas: 


1.Crenças perceptivas do tipo “Eu vejo uma flor”.
2.Crenças de memória do tipo “Eu tomei café da manhã hoje”. 
3.Crenças acerca dos estados mentais de outrem do tipo “Aquela pessoa está com fome”


Todas as crenças acima elencadas são caracterizadas pelo fato de que nada as fundamenta senão elas mesmas. Não cremos nelas por ação de algum raciocínio seja dedutivo, indutivo ou abdutivo. Ao contrário, sua confiabilidade se impõe a nós como uma tendência a acreditar nelas, ou seja, nos sentimos compelidos a crer. 

Plantinga alega que sua visão tem antecessores ilustres na tradição filosófica ocidental tais como Aristóteles, Tomás de Aquino e Thomas Reid. E, como esses dois últimos, Plantinga admite que a idéia de Deus tenha um papel preponderante no processo do conhecimento. 

E isso se vê facilmente, pois se a idéia de função própria envolve intimamente a noção de desenho (ou projeto num sentido teleológico), então deve haver um desenhista inteligente para essas faculdades. É exatamente pelo motivo de haver um Deus bom que criou-nos à sua imagem, capazes como Ele de conhecer verdadeiramente, que podemos então confiar em nossas crenças básicas produzidas por nossas faculdades.

É assim que a questionamento da justificação feito por Gettier se torna um problema sobre a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas. O que está em jogo é o problema principal da teoria da racionalidade, a saber, o problema de identificar o que um agente racional está justificado a crer. E este só se resolve, em Plantinga, a partir do conhecimento da existência de Deus e de sua veracidade. Qualquer outra tentativa de resposta que ignore a ação de Deus na produção de nossa estrutura cognitiva está fadado à impossibilidade de garantir um status epistêmico positivo às nossas crenças.

Para Plantinga, o naturalismo só pode dar uma resposta satisfatória para a questão da origem, do funcionamento próprio e da confiabilidade de nossas faculdades cognitivas se ele estiver inserido numa metafísica teísta. 

Segundo ele, o naturalismo darwiniano de fundo ateu, por exemplo, não pode solucionar coerentemente essa questão uma vez que para o darwinista estrito as faculdades cognitivas humanas são fruto de um processo cego que não tem como objetivo fornecer um retrato verdadeiro do que há, mas somente a sobrevivência do indivíduo e da espécie.

Contudo, os opositores de Plantinga afirmam que a idéia de que um Deus bom projetou nossas faculdades visando à verdade é impossível de ser provada, uma vez que apela para o conhecimento de um ser que é infinitamente superior às nossas mais altas especulações. Como se pode conhecer as intenções de um ser que ultrapassa toda e qualquer perspectiva de cognição humana? 

Plantinga pretende resolver essa questão apelando para o que Calvino chamou de sensus divinitatis, uma crença em Deus que é tão evidente e tão básica quanto a evidência dos sentidos, da memória ou do “eu”. Desse modo, a crença em Deus é também uma crença básica produzida por uma faculdade cognitiva, o sensus divinitatis, operando segundo seu projeto em condições que sejam adequadas a seu desenho. 

Nem todos concordarão com essa crença básica, mas isso não contará como um argumento contra ela, da mesma forma que uma pessoa que sustente a crença de que tomou café pela manhã não se perturbará se encontrar alguém que não concorde com ela acerca da validade dessa crença básica.

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Leia também:



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Sugestões de leitura:

Alvin Goldman: 

What is Justified Belief” in Justification and Knowledge: New Studies in Epistemology, ed. George Pappas, Dordrecht: D. Reidel, 1979

Alvin Plantinga: 

The Nature of Necessity. New York: Oxford University Press, 1982 
Warrant: The Current Debate. New York: Oxford University Press, 1993
Warrant and Proper Function. New York: Oxford University Press, 1993
Warranted Christian Belief. New York & Oxford: Oxford University Press, 2000


Um comentário:

ken kronaz disse...

essa objeção dos mencionados opositores é ridícula, Platinga nem devia se dar ao trabalho
Deus é o fundamento da prova