"Tempo não é o número com o qual contamos, mas o número das coisas contadas, e isso com relação ao anterior e ao posterior que são sempre diferentes, pois os 'agoras' são diferentes."
ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 220b
Afirma Aristóteles que o menor número, no sentido estrito do termo número, é o dois. Todavia, o número concreto por vezes tem e por vezes não tem uma quantidade mínima. Em se tratando de linha, a menor quantidade com relação à multiplicidade, são duas linhas, enquanto no que tange ao tamanho, não existe uma quantidade mínima porque qualquer extensão pode ser continuamente dividida sem que se alcance nenhum limite para além do qual não se possa continuar dividindo. O mesmo se dá com o tempo, para o qual a quantidade mínima é dois sem que haja qualquer limite no sentido de extensão.
São apresentados nos exemplos acima dois sentidos distintos de número. No primeiro, concebemos a quantidade em termos de unidade ou quantidade discreta, no qual uma linha significa uma unidade. Para que haja o múltiplo, é mister que tenhamos, no mínimo, duas linhas (duas unidades). A linha, então, é tomada como um todo indivisível. No segundo sentido, a linha é considerada enquanto quantidade extensa, como um todo divisível em partes. À medida em que a extensão é dividida sucessivamente, ela diminui em tamanho sem nunca chegar a um ponto indivisível.
Outrossim, a divisibilidade do tempo apresenta também dois sentidos. Enquanto quantidade discreta, o tempo é constituído de pelo menos dois instantes: um agora e outro agora que são as unidades mínimas e indivisíveis que possibilitam a sua contagem. Na sua quantidade extensiva, não existe limite mínimo para a divisão do tempo. Qualquer porção temporal, por menor que seja, é divisível em porções ainda menores, e estas são divisíveis em porções menores, e assim sucessivamente ad infinitum.
Sendo uma extensão, o tempo é descrito em termos de muito ou pouco, longo ou curto, não como rápido ou lento. Aristóteles aponta para o fato de que a velocidade não pertence às categorias da extensão e do número. Inexistem quantidades rápidas ou lentas. Nem a linha e nem o dois deslocam-se de um ponto a outro. Corpos passam de lugar a lugar rapidamente ou lentamente. A velocidade é uma quantidade somente no sentido de que é uma mudança física que tem um aspecto expressável quantitativamente.
O erro categorial (atribuir à uma categoria da realidade o que é próprio à outra categoria) da afirmação de que quantidades (discretas ou extensas) são rápidas ou lentas está em que o quantitativo é a condição de possibilidade da medição da velocidade. Se esta só pode ser aferida graças à atribuição de certa quantidade, então a quantidade não pode ela mesma mover-se ligeira ou vagarosamente.
O tempo é o número medido e não a medida com a qual mensuramos a mudança. A distinção aqui é entre número numerante e número numerado. Utilizamos uma unidade qualquer para contarmos as coisas (número numerante), e disso resulta uma quantidade determinada de coisas contadas (número numerado). Apesar de um grupo de homens ser qualitativamente diferente de um grupo de cavalos, eles serão igualados quantitativamente se, quando contado, o número numerado de membros for idêntico em ambos. De modo análogo, cada momento é individualmente distinto do outro, embora sejam igualados quantitativamente quando contados. Assim, podemos dizer que o tempo é o resultado dos momentos quantificados.
Sabemos a quantidade de cavalos em um grupo utilizando o número, e só sabemos o número porque um cavalo é a unidade que utilizamos para realizar essa operação. O número numerante aplicado aos cavalos resulta no número numerado (quantos cavalos há). O instrumento de contagem permite contar e determinar a quantidade, e, por outro lado, aquilo que é contado determina o valor final da quantidade contada. O número utilizado para contar os cavalos é o aspecto formal, enquanto os cavalos são o aspecto material sobre o qual a contagem é feita.
Há uma relação recíproca entre a unidade de medida e a coisa mensurada por ela. Se, por exemplo, tenho uma estrada a medir, o resultado da medição (quantos metros) corresponderá ao quão longa é a estrada. A existência e a extensão da estrada precedem ontologicamente o ato de medição, e o resultado da medição expressa em termos quantitativos o seu comprimento. Destarte, o tempo é medido pela mudança, e vice-versa. Sabemos quanto tempo decorreu por meio da mudança. E a extensão inteira da mudança determina o tempo gasto (o número numerado). Se a mudança é longa, o tempo será longo.
A expressão "estar no tempo" significa, em primeiro lugar, existir enquanto o tempo existe. Numa segunda acepção, significa o mesmo que "estar em número", isto é, aquilo que é uma parte (ou modo) do número ou a coisa que tem um número. Dado que o tempo é número, o "agora" e o "antes" estão no tempo no mesmo sentido que "par" e "ímpar" pertencem ao número. Mas, "estar no tempo" não é idêntico à simples coexistência com alguma outra coisa. Duas coisas podem coexistir numa relação meramente incidental, como no caso em que o grão e o céu existem simultaneamente sem que um defina o outro.
Aquilo que "está no tempo", ao contrário, implica necessariamente a existência de tempo, da mesma forma que algo que "está em movimento" necessariamente implica que há movimento enquanto esse algo persistir. Aristóteles enfatiza nessa passagem que o tempo e a coisa que "está no tempo" não são entidades independentes e separadas que se encontram unidas por acidente. Seria absurdo pensar que a mudança seja uma entidade independente e separada da coisa que muda, o móvel. Nem a coisa temporal pode ser considerada separadamente do tempo.
Sempre é possível haver um tempo maior do que as coisas que ora existem, assim como sempre pode haver um número maior do que as coisas contadas. Essa é uma propriedade do número enquanto tal. Qualquer quantidade de entes contados (ou medidos) pode ser ultrapassada por uma quantidade maior posterior ad infinitum. Consequentemente, todas as coisas temporais estão contidas no tempo, e são "afetadas" por ele.
Dizemos que o tempo gasta as coisas, que elas envelhecem por causa do tempo. Isso porque a mudança remove o que existe, e, como o tempo é a medida da mudança, ele é a causa do decaimento das coisas. Segue-se daí que aquilo que existe sempre não está submetido ao tempo. A razão é simples: se, por natureza, algo é imutável, então não passa de potência ao ato em nenhum sentido. Não havendo mudança, não há condições para a medição temporal.
Contudo, o corpo que está em repouso também é medido pelo tempo, embora indiretamente. O que está em movimento necessariamente é movido, embora nem tudo que está no tempo esteja em movimento. O corpo em repouso é um móvel, algo que pode vir a se mover ou ser movido, e a extensão de sua permanência no mesmo lugar pode ser medida entre dois momentos. O repouso é uma privação de movimento de um móvel que em algum momento estacionou e que num momento posterior pode retomar seu movimento. O tempo no qual um corpo permanece em repouso será medido pelo início e pelo fim desse estado.
Pode-se acrescentar o fato de que algo que está em repouso num aspecto não estará necessariamente em repouso em todos os outros. Um corpo estacionado pode perder qualidades como a cor, por exemplo. Também é verdade que a medição do repouso pode ser feita tendo em conta a mudança de outros entes. O movimento regular do Sol (ou do relógio) permite medir o tempo até daquelas coisas que estão estacionadas, paradas ou imóveis sob algum aspecto.
O tempo não mede as coisas simplesmente por suas características quantitativas (comprimento, largura, altura, etc.), mas sim por serem mutáveis. Os entes submetidos à geração e à corrupção são propriamente temporais. Houve um longo período no qual não existiam e haverá outro ainda maior no qual não existirão mais. Dentre as coisas contidas pelo tempo estão as que não existem agora, como o que está no passado e o que está no futuro.
Todavia, nem tudo o que não existe estará em algum momento futuro no tempo. O contraditório jamais existirá por ser o contrário do necessário. A incomensurabilidade da diagonal de um quadrado é uma verdade necessária, eterna e imutável, portanto não está submetida ao tempo. O seu oposto, a comensurabilidade, é impossível, não pode existir jamais. Somente aquilo cujo contrário não é eterno pode vir ou não a existir. São desse tipo as coisas submetidas à geração e à corrupção.
(continuará na parte 3)
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