quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro XI) - a Paz

"A paz divina, a unidade supraessencial, gera a paz ela mesma per se, isto é, a paz ideal que une tudo na presença de Deus e na mente angélica, pois, ao seu modo, as Ideias existem em ambos. A paz de Deus cria igualmente a paz universal que é a compartilhada união do universo, e a paz particular que é adequada a cada coisa singular, ou seja, a sua própria união individual."

MARSILIO FICINO, "Comentários aos Nomes Divinos", CCCXIX

Os sentidos dos nomes "Paz" (εἰρήνης), "Ser em si" (αὐτοεῖναι), "Vida em si" (ἡ αὐτοζωή), "Poder em si" (ἡ αὐτοδύναμις) dados a Deus são esclarecidos por Dionísio no Livro XI. O primeiro nome refere-se ao poder unificador divino que traz todas as coisas à harmonia, a despeito de suas contrariedades e oposições no mundo. 

A pacificação é um aspecto do Uno (τὸ ἕν), o princípio último do neoplatonismo grego. Ao comentar a proposição XIII de seu tratado "Os Elementos de Teologia", o neoplatônico grego Proclo ensina que "A bondade, por conseguinte, é a unificação (ἕνωσις). O Bem é um, e o Uno é o bem primordial". Melhor um ente será quanto mais estiver unificado consigo próprio e com a unidade transcendente que dá realidade e sustentação às coisas.

Tudo está unificado em Deus e por Deus, em que pese o fato que, para que isso aconteça, como Marsílio Ficino observa no seu comentário a Dionísio, seja necessário haver no mundo, ao mesmo tempo, união (unio) e distinção (distinctio). Considerados apenas segundo as suas naturezas, os seres manifestam-se tanto em unidades quantitativas (um cavalo) quanto qualitativas (um cavalo). Os entes, assim constituídos, entram em acordos e em desacordos uns com os outros.  

Os acordos não podem ser tais que exijam que os entes percam as suas naturezas próprias mergulhando numa completa indistinção. Tampouco os desacordos podem ser tão profundos a ponto de isolar completamente os seres uns dos outros. Vale recordar que, as duas possibilidades, de distinção e de indistinção absolutas, foram alvo de refutação no diálogo "Sofista", de Platão. 

Ficino usa a imagem da deusa romana Concordia ("cum": com, "cor", "cordis": coração) para ilustrar a comunidade que governa os entes no mundo. Há que se distinguir, contudo, dois níveis da unificação. No seio eterno da natureza supraessencial de Deus, todas as distinções estão anuladas na coincidentia oppositorum enquanto meras possibilidades. No mundo criado, algumas coisas concordam com algumas, porém não todas com todas. A unidade, neste caso, harmoniza as distinções num Todo coerente, espelhando na multiplicidade a absoluta unicidade divina, como a imagem imita o rosto que está diante do espelho.

A paz de Deus é um silêncio indizível, incompreensível, transcendente e indivisível que é a origem e o fundamento da diversidade ordenada que caracteriza o mundo. As coisas desejam a paz na medida em que todas querem permanecer na existência, mantendo as suas unidades individuais e as suas propriedades essenciais. Mais ainda, enquanto realizam as mudanças e as ações correspondentes às suas naturezas e às suas funções respectivas na estrutura universal, elas manifestam o desejo de participar de uma paz que as supera, a da ordem do Cosmo, e de contribuir para a sua preservação.

Quanto às coisas que se afastam da ordem e quebram a simpatia que une as partes do universo como estão unidas as partes de um animal? Dionísio responde, alinhado com o que foi ensinado anteriormente acerca do Mal, que nada consegue realmente abandonar a unidade imposta por Deus ao Todo, e que aquilo que é instável e indefinido não possui ancoragem no Ser. Mesmo os seres que se opõem à ordem o fazem desejando a paz, ainda que estejam enganados sobre os meios para alcançá-la graças à perturbação causada pela desordem de suas paixões.

Dionísio, em seguida, explica por qual razão Deus pode receber os títulos de "Vida em si", "Ser em si" e "Poder em si" ao mesmo tempo em que é chamado de "Sustentador da Vida", "Sustentador do Ser" e "Sustentador do Poder". Ele é a própria "Vida" ou só o seu "Sustentador"? A aparente contradição é resolvida quando atentamos aos sentidos nos quais são empregados esses nomes. A denominação "Sustentador" (ὑποστάτης) é utilizada para indicar a absoluta transcendência da natureza divina supraessencial com relação às coisas.  

Deus não é a "Vida" se por isso entendemos um modo particular de existência. Ele não pode ser identificado a nenhum tipo de entidade, por mais excelsa que ela seja. A fim evitar erros de compreensão, Deus é chamado "Sustentador da Vida", enfatizando assim o caráter de dependência ontológica da "Vida" com relação a Ele. Porém, Deus é a "Vida em si" no sentido de que é a causa Imparticipável (ἀμέθεκτος) desse dom providencial do qual os seres vivos participam limitadamente.

Conhecendo os viventes (este cavalo e aquele homem, por exemplo), sabemos que eles participam da "Vida", considerada aqui como a propriedade comum que os torna a todos entes vivos. Subindo da "Vida" até Deus, a causa última de tudo, encontramos não somente a "Vida em si", mas também o "Ser em si", o "Poder em si", etc... Porém, todos esses dons estão reunidos no seio da natureza divina supraessencial sem distinção de qualquer espécie (coincidentia oppositorum). É somente a fraqueza de nosso entendimento que distingue esses poderes dentro da unicidade absoluta de Deus.
...

Nenhum comentário: