domingo, 7 de setembro de 2025

Semyon Frank e o incognoscível no ser objetivo

"A realidade é incognoscível, misteriosa e maravilhosa não por causa da fraqueza de nossas capacidades cognitivas, nem porque está oculta ao nosso olhar cognoscente, mas porque sua composição, que está explicitamente presente diante de nós, transcende essencialmente tudo o que é expressável em conceitos, e é algo absolutamente diferente do conteúdo conceitual. Nesse sentido preciso, ela é essencialmente incognoscível."

SEMYON L. FRANK, O Incognoscível, p. 30

Quando tomamos o conhecimento de alguma coisa na realidade em seu significado filosófico, pensamos em conteúdos que podemos identificar e unir em conceitos. Se conheço o que é um cavalo, sei apresentar o conjunto de conteúdos, de características, que compõem o conceito de cavalo. Sob essa ótica, nada daquilo que se apresenta ao homem é incognoscível, já que o conhecimento aí significa a identificação de uma série de conteúdos cognoscíveis pela experiência.   

Obviamente, o conceito de cavalo não é a mera apresentação de todas suas características. Primeiro porque elas excederiam de muito a nossa capacidade de percepção e de identificação. Segundo, porque não se trata de uma soma de elementos ou de um feixe de percepções arbitrariamente recolhido e unido. O conceito de cavalo expressa uma ordem específica na qual seus elementos estão alocados segundo a disposição adequada para a realização de um Todo.

Nenhum ente pode ser o que ele é sem apresentar a ordenação própria que caracteriza o seu tipo ou natureza. Este cavalo não pode ser o que ele é se não apresentar a ordem específica de todo e qualquer cavalo. O conhecimento conceitual é possível porque há um aspecto de definição, no qual os conteúdos de um conceito são claramente diferenciados uns dos outros, e um aspecto de fundamento, no qual esses mesmos conteúdos estão unidos ordenadamente em uma unidade.

O conhecimento conceitual encontra seu limite, segundo mostra o filósofo russo Semyon L. Frank no segundo capítulo de sua obra "O Incognoscível", justamente nessa unidade que subjaz a todo ser objetivo. Não captamos uma gama de percepções variadas que posteriormente unimos num Todo. Ao contrário, captamos um Todo do qual distinguimos mentalmente os elementos que o compõem. Com sorte, conseguimos identificar a ordem geral das relações estabelecidas por esses elementos e expressá-la em um conceito.

Porém, a unidade concreta que o ser objetivo apresenta é ontologicamente anterior ao conhecimento conceitual e distintivo, embora possa ser expressa conceitualmente em termos de elementos diferenciados numa ordem determinada. Essa unidade metalógica, como Frank a denomina, ultrapassa o que pode ser expresso em conceitos abstratos, pois trata-se da unicidade que todo ser objetivo  apresenta concretamente, qualquer que ele seja. 

Consequentemente, há dois tipos de conhecimento implicados na experiência acima: o conhecimento abstrato, de segunda ordem, expresso em juízos e conceitos, e o conhecimento intuitivo, de primeira ordem, a percepção imediata do objeto em sua unicidade metalógica e indivisível. Existe semelhança e correspondência entre os dois, mas não identidade. Daí que, na sua fonte primitiva, a realidade é indizível e incognoscível. Os conceitos podem, no máximo, traduzir a unidade metalógica das coisas como a música é traduzida numa partitura.

Nada disso significa que a realidade seja absolutamente incognoscível ou que nossa capacidade cognitiva não tenha acesso à ela por conta de alguma insuficiência ou limitação intrínseca. Nossos juízos são verdadeiros na medida em que correspondem ao que há na realidade. Sob esse ângulo, o realismo conceitual é verdadeiro. O filósofo russo não defende o nominalismo, isto é, a negação absoluta da realidade dos universais. 

A partitura traduz uma peça musical numa linguagem diferente, mas é inegável que existe uma correspondência entre uma e outra. Não fosse assim, um pianista não conseguiria ler uma partitura e executar um Noturno de Chopin. Não obstante, a tradução e a música são essencialmente diferentes. A partitura expressa, em símbolos gerais e conceituais, a unidade da peça musical. Nossos conceitos e juízos expressam a realidade tal como ela é em seus aspectos mais universais sem que a unidade metalógica de cada coisa seja jamais esgotada. 

O Todo que primordialmente constitui as coisas não pode ser senão "traduzido", "transposto" ou "expresso" em conceitos. Seria errôneo, entretanto, conceber que se trate de duas realidades independentes, uma metalógica e outra lógico-conceitual. O pensamento separa em dois elementos aquilo que concretamente é uma só e a mesma realidade. Por meio de um "pensamento negativo", no qual as qualidades definidas do objeto são deixadas de lado, o conhecimento alcança a unidade transdefinida do objeto.

Não obstante seja inegável a realidade dos universais, os entes deste mundo são singulares, isto é, únicos e irrepetíveis. Este cavalo, hic et nunc, é diferente daquele outro cavalo. Nunca haverá dois cavalos idênticos. Essa individualidade é incompreensível para o pensamento que depende de conceitos que expressam universalidades. Temos o conceito do que é cavalo sem jamais conhecer conceitualmente um único cavalo na sua singularidade

Todo ente é único, não pode ser outro a não ser ele mesmo. Expressamos logicamente essa verdade ontológica pelo princípio de não-contradição: não é possível afirmar e negar um atributo qualquer a um mesmo ente ao mesmo tempo e num mesmo sentido. E cada ser é o que é e não outro justamente por seu caráter finito. O objeto A não é o objeto B porque A os dois estão "contidos" dentro de seus respectivos limites

Ora, se subimos na escala dos seres, percebemos que a unidade metalógica se expande cada vez mais até alcançar a totalidade dos entes. Quando deixa de considerar a diferença intrínseca entre os objetos A e B, o pensamento busca uma unidade superior que os reúna sem contradição. No seu grau máximo, todas as coisas estão reunidas na Realidade, unidade metalógica omniabarcante que transcende as diferenças entre as coisas finitas. 

A Realidade é transfinita. Engloba não somente aquilo que existe, mas também aquilo que ainda existirá. Sob esse prisma, é transbordamento, poder infinito, inabarcável, e, portanto, essencialmente incognoscível para o pensamento conceitual que só pode captar o que é distinto e limitado. O incessante vir a ser e deixar de ser das coisas constitui o aspecto temporal da Realidade para o qual não há nenhum limite ou fim. 

O dinamismo próprio do tempo escapa à estabilidade dos conceitos. A ciência somente consegue lidar com a passagem temporal transformando-a em algo encerrado. O movimento e o tempo medidos são sempre aqueles que já terminaram. Óbvio, há elementos de estabilidade em ambos, caso contrário nenhuma medição ou pensamento seria possível. Ocorre que a elusiva essência da duração temporal permanece incognoscível para o conceito.

O tempo exige a admissão do aspecto potencial da Realidade. O que não existia e passou a existir não pode vir do nada. Tudo o que vem a ser, não importa sob quais condições, era algo que residia no seio indefinido das possibilidades. Dado que só conhecemos aquilo que já existe (o que está limitado e definido), esse Urgrund dos possíveis é também incognoscível. 

A tentação racional é negar ou escamotear esse âmbito indefinido concebendo tudo como existente, estável e imutável. Assim, as doutrinas deterministas, físicas ou metafísicas, pretendem que o real é idêntico ao atual, e que todas as mudanças são aparentes. O que existe estava contido definidamente nas suas causas, semelhante à conclusão de um silogismo que está contida nas premissas. Do ponto de vista científico, que concebe a mudança somente como o que está terminado e definido, não há prejuízo para seus objetivos práticos.

futuro, enquanto não se atualiza, é indefinido e incognoscível. A predição do que acontecerá é possível porque o pensamento se concentra sobre os aspectos estáveis do real. Encarada sob o ângulo da produção de coisas novas, singulares e irrepetíveis, a Realidade exibe uma liberdade primordial da qual as coisas participam na medida em que são capazes de trazer à existência novos aspectos nelas mesmas ou em outros.

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