sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Ilíada, IX: Aquiles, as Preces e a recusa da reconciliação



"As Preces são as filhas de Zeus todo-poderoso.
Coxas, enrugadas, de olhos cruzados, elas tentam seguir
Atrás da Loucura, que, por ser forte e rápida,
Corre longe na frente delas, aparecendo
Em todo o mundo, trazendo dano aos homens.
Longe, as Preces continuam a sua cura.
Se um homem homenageia estas filhas de Zeus
Como elas se aproximam, eles vão ajudá-lo grandemente,
Prestando atenção a ele enquanto ele ora.
Se alguém as despreza, rudemente as rejeita,
Elas vão para Zeus, filho de Cronos, implorando
Para a Loucura perseguir aquele homem, que então
Prejudica a si mesmo e sofre punição.
Por essa razão, Aquiles, você deve dar,
Às filhas de Zeus, seu respeito."

HOMERO, Ilíada, IX

"Vede! Os deuses choram, todas as deusas choram,
Que o belo pereça, que o mais perfeito desapareça.
Mas um lamento nos lábios dos amados é glorioso,
Pois o comum desce ao Orco em silêncio."

FRIEDRICH SCHILLER, Nänie


Pressionado pela contra-ofensiva de Heitor, líder das tropas troianas e de seus aliados, que rapidamente empurrava os aqueus de volta a seus navios, Agamemnon vê-se obrigado a buscar a reconciliação com Aquiles a fim de evitar a amarga derrota. Aquiles, contudo, como relata o livro IX da Ilíada, rejeita os presentes generosos oferecidos por Agamemnon por meio de uma embaixada liderada pelo rei de Ítaca, Odisseu.

Os membros da embaixada tentam, em vão, demover o herói de sua decisão de rejeitar os presentes do rei de Micenas e líder da expedição dos aqueus. Não contente em recusar a reconciliação com Agamemnon, Aquiles declara sua intenção de abandonar o cerco a Tróia e retornar à Grécia.

Ademais, sua mãe, a ninfa Tétis, contara-lhe que se ele decidisse permanecer em Tróia, ganharia a imortalidade na memória dos homens por meio de uma morte heróica cuja glória seria eterna. Se, por outro lado, decidisse partir, morreria idoso e feliz em sua terra natal.

Nesse momento, há uma escolha crucial a ser feita: a glória imortal por meio da morte heróica que será lembrada pelos homens para sempre ou a felicidade e a tranquilidade de uma morte serena, mas que condena o homem ao esquecimento. O drama de Aquiles é o drama da imortalidade possível aos homens onde não há ainda a noção de uma alma individual imortal.

Em Homero, a Psychê não é mais que um sopro que se desprende do homem no último suspiro antes da morte. Imortais somente são os deuses benfazejos. Os homens são destinados à morte e suas sombras, espectros totalmente inconscientes da vida do mundo dos vivos, descem ao Hades. A única imortalidade é a da memória coletiva da comunidade.

Como afirma Werner Jaeger na Ingersoll Lecture de 1958, intitulada The Greek Ideas of Immortality:

"(...) havia uma diferença entre a grande massa dos mortais que não tinham nada a esperar após a morte e os valentes e nobre guerreiros que deixavam atrás deles a gloriosa memória de seus feitos vivendo nas canções dos aedos. Nessas canções, os grandes feitos dos deuses e dos homens eram igualmente louvados. A diferença entre mortais e imortais parecia quase desaparecer, e o homem adquiria glória eterna e reputação. Sua personalidade era forte o suficiente para resistir à lei comum do esquecimento."

A imortalidade era alcançada pelo louvor dos aedos que preservavam a memória dos feitos dos heróis do esquecimento. Em outros termos, a paridade com os deuses não poderia vir por nenhuma igualdade ontológica com os olímpicos, já que os homens são irremediavelmente mortais, mas da memória coletiva recolhida e cantada pelo aedo. A poesia é o veículo da imortalidade.

Nesse sentido, Homero, ao cantar as proezas de Aquiles e dos grandes heróis do cerco a Tróia, garante-lhes a imortalidade a que eles têm direito por causa justamente de seus esforços e feitos naquela guerra. A transcendência é merecida pela excelência guerreira e assegurada pelas canções dos aedos.

Essa imortalidade pode ser perdida, contudo. Aquiles está na encruzilhada entre a vida do homem comum que desce ao Hades em silêncio e em oblívio e a vida heróica que conduz à glória da lembrança nas canções dos poetas. Em certo sentido, o dilema da predição de Tétis expressa o conflito entre o desejo pessoal pela tranquilidade da vida comum que culmina em uma morte serena e o anseio pela imortalidade através da memória coletiva que, no entanto, exige trabalhos dolorosos e uma morte violenta.

Aquiles tem esse dilema na mente quando recebe a embaixada enviada por Agamemnon, pois o cita expressamente diante dos embaixadores reais. Agamemnon é o cabeça da comunidade que vem exigir/pedir que ele cumpra seus deveres para com o coletivo. Afinal, todos sofrem enquanto ele recusa-se a lutar. Aquiles falha em perceber como sua atitude põe em risco o equilíbrio das coisas, já que ele mesmo é um rei, um guerreiro. O que acontece quando os guerreiros recusam-se a guerrear?

Aquiles apega-se à ofensa de Agamemnon e recusa as suas ofertas de reconciliação por causa de sua cólera (cholos). Eis, de novo, o centro da Ilíada: a cólera de Aquiles que tanto mal causou aos aqueus no cerco da sagrada Ílion. E essa cólera pode privá-lo da imortalidade da canção do aedo.

O texto homérico, por meio do discurso do sábio Fenice, refere-se à recusa de Aquiles em termos de um cenário de relações divinas. As ofertas de Agamemnon são sagradas, pois são da parte das Litai (Preces), deusas filhas de Zeus que vivem a perseguir e a tentar alcançar a Ate (loucura, desatino), para neutralizar seus efeitos sobre os homens. Não obstante, aquele que recusa as Litai é castigado, pois elas sobem a Zeus e pedem que sobre o recalcitrante desça a Ate e que esta o castigue perseguindo-o para sempre.

Isto é, as Preces - expressões da reconciliação, da restauração da justiça e da harmonia -, estão sempre atrás do desatino e da loucura tentando consertar seus efeitos deletérios nos homens. Há uma cura para o erro: a prece, o pedido, a oferta de reconciliação com o ofendido. O problema é que as Preces estão sempre atrasadas em relação à Ate. 

Essa perseguição reflete simbolicamente o conflito interior do homem. O desatino humano parece sempre estar fora do alcance da oferta de paz. Ou melhor, o próprio da loucura e do desatino é justamente fugir das preces, das tentativas de acomodação dos conflitos. Se o homem recusa as Preces, recusa a reconciliação, escolhe a permanência na discórdia (Eris). Escolhe a cólera (cholos) quando ela não é mais justa. É a hubris, a desmedida.

A consequência é que as Preces, recusadas e desprezadas, apelam à justiça (dikê) de Zeus e condenam o homem a ser presa da Ate. Em outros termos, a oferta de apaziguamento, quando recusada, torna-se condenação. O homem fica entregue ao desatino, já que a cura não está mais ao encalço da loucura.

A cólera de Aquiles era justa enquanto Agamemnon recusava-se a devolver Briseis, poi sua honra guerreira estava em questão. Agora que Agamemnon não somente promete devolvê-la, mas também oferece presentes tão numerosos quanto valiosos, a cólera de Aquiles deveria ser apaziguada. As Preces deveriam ser aceitas, já que a honra de Aquiles foi reconhecida e restaurada.

Aquiles as rejeita, contudo. Ele rejeita o remédio para a Ate, para o desatino. Note-se que a Ate é filha de Eris, a discórdia. Aquiles, em seu desatino, ameaça retornar à Grécia e deixar os aqueus à mercê da fúria do grande Heitor, defensor de Tróia. Ele cria a discórdia. O herói não aceita pôr fim à cólera ao rejeitar as ofertas de amizade e de reconciliação.

Como Eric Voegelin assinala no segundo volume de seu Order and History, há uma fratura na elite daquela sociedade. A alma do herói, patologicamente centrada em si mesma e em sua própria noção de satisfação e de honra, recusa os liames que reúnem os homens depois das desavenças, divide a comunidade e a põe em risco de destruição.

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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Plotino, união mística e apofatismo



''Em verdade, o Uno está para além de toda sentença, pois qualquer afirmação se faz de alguma coisa. Mas o Todotranscendente, estando acima mesmo do augustíssimo divino Intelecto, possui ele somente todo o ser e não é uma coisa entre outras coisas. Não podemos dar-lhe nenhum nome, pois isso implicaria predicação. Podemos somente tentar indicar, de nossa forma débil, algo com relação a Ele.'' 

PLOTINO, Enéadas, V,III,13 

''Assim, Deus apareceu-lhe e ele teve comunicação íntima com esse Ser supremo que não tem figura, do qual não é possível criar qualquer representação e que é incompreensível. Eu fui muito feliz por aproximar-me uma vez em minha vida desse Ser divino e por me unir a Ele. Eu tinha em torno de sessenta e oito anos. Era essa união que constituía a totalidade dos desejos de Plotino. Ele alcançou quatro vezes esse gozo divino durante o tempo em que com ele estive. O que acontece então é inefável.''

PORFÍRIO, Vida de Plotino, XXIV

Plotino (205-270 D.C.), grego egípcio, discípulo de Amonius Saccas em Alexandria, segundo seu discípulo Porfírio escreve no início de sua Vida de Plotino, ''parecia ter vergonha de possuir um corpo.'' Em busca de conhecimento, o filósofo tentou alcançar a Índia tomando parte em uma expedição militar do imperador Gordiano contra a Pérsia Sassânida. Todavia, Gordiano foi derrotado e morto e Plotino, sem jamais chegar à Índia, acabou por instalar-se definitivamente em Roma.

Na capital imperial, o filósofo logo cercou-se de discípulos, tornando-se tutor dos filhos de diversas famílias patrícias romanas. Compôs (e ditou) tardiamente cinquenta e quatro tratados que foram corrigidos e reunidos por seu discípulo Porfírio sob o nome de Enéadas.

Plotino, discordando de Aristóteles, concebia que o uno e o ser não são modos diferentes de expressar a mesma realidade. Tudo aquilo que é só pode ser o que é na medida em que é uno. Dito de outro modo, ser algo é antes de tudo ser uno. Por essa razão, não é o ''ser enquanto ser'', o objeto de estudo da Metafísica segundo Aristóteles, o fundamento último da realidade, mas sim o Uno

Consequentemente, o primeiro princípio é o Uno (Hen) ou Primeiro, no qual não existe qualquer divisão. Ele é o Bem, a fonte de todas as coisas, concede o ser a todo ser. Está para além do ser, já que ser é sempre ser algo. É, portanto, inefável, indizível, realidade supraessencial e eterna.

Como o calor procede ou emana do fogo, do Uno procede ou emana o Ser ou o Intelecto (Nous). Nesse ''mundo das Idéias'' estão, desde toda a eternidade, os modelos individuais de cada coisa que existe no mundo sensível. É um verdadeiro mundo, completo, perfeito ao qual a mundo sensível imita e não acrescenta absolutamente nada. 

O Intelecto é como uma mente idêntica a seus pensamentos e que contempla eternamente a unidade que subjaz a todos eles, o Uno. O Intelecto é o Ser, pois nele estão contidas as essências eternas de tudo o que há. Ali estão os verdadeiros existentes. Acima dele só o Bem, o Uno supraessencial.

Analogamente, do Intelecto emana ou procede a Alma (Psyché), intermediária entre o Intelecto e o mundo sensível. É como o Demiurgo platônico do Timeu de Platão. Sua essência é gerar, produzir, ordenar e reger a vida. Por conseguinte, da Alma emanam ou procedem a Alma do Mundo e as almas individuais. A Alma está igual e integralmente presente na Alma do Mundo tanto quanto nas almas individuais. 

Segundo Giovanni Reale, em seu Plotino e Neoplatonismo, ''a novidade de Plotino, com relação à tradição grega clássica, consiste em ter projetado a possibilidade de realizar a separação do sensível e do corpóreo e de realizar plenamente a união com o Uno, já nesta vida, mediante a unificação místico-estática com o Absoluto.''

Porfírio assevera que seu mestre tivera essa experiência de união mística com o Uno quatro vezes durante sua vida. Como o Uno está para além de toda e qualquer palavra ou conceito humanos, para além do Ser (pois ele é a fonte do Ser), ele só pode ser descrito negativamente, isto é, por exclusão daquilo que ele não é. É a via apofática. 

O apofatismo nega a imperfeição para afirmar a perfeição e nega a perfeição para não afirmar a imperfeição. Isto é, nenhuma imperfeição pode ser atribuída ao princípio último da realidade, só a perfeição. Contudo, qualquer perfeição dos entes limitados é, por definição, também limitada. Por essa razão, a atribuição de uma perfeição limitada acarretaria na atribuição de uma limitação e, por conseguinte, de uma imperfeição.

''Não podemos, é verdade, captá-Lo pelo conhecimento, mas isso não significa que estamos totalmente vazios d'Ele. Tratamos d'Ele não para enunciar o que Ele é, mas para falar sobre Ele. E podemos enunciar e efetivamente enunciamos aquilo que não é, enquanto permanecemos em silêncio acerca do que é. Estamos, de fato, falando d'Ele à luz de seus efeitos. Incapazes de enunciá-Lo, podemos contudo possuí-Lo.'' Enéadas, V, III, 14

O Uno não cabe em nenhuma categoria ou gênero e a união com ele desafia toda e qualquer descrição. Nenhuma experiência comum pode adequadamente descrevê-la. Mas os limites da linguagem obrigam a usar termos imperfeitos para tratar da realização da união perfeita com a perfeição última:

''(…) Sem dúvida, não devemos falar de visão. Contudo, não podemos deixar de falar em dualidades, visão e o que é visto, ao contrário de, ousadamente, falar de realização da unidade. Nessa visão, não temos um objeto e nem traçamos distinção. Não há dois. O homem é mudado, não mais é ele mesmo e nem mais pertence a si mesmo. Ele é fundido no Supremo, submerso n'Ele, um com Ele. O centro coincide com o centro, pois nesse plano mais alto, as coisas que se tocam são unas. Somente na separação há dualidade. Pelo nosso afastamento, o Supremo é posto para o exterior. É por isso que a contemplação desconcerta o falar. Não podemos nos afastar do Supremo e defini-lo. Se contemplamos algo dessa forma separado, então não contemplamos o Supremo o qual só pode ser conhecido como uno conosco.'' Enéadas, VI, IX,10

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