"As Preces são as filhas de Zeus todo-poderoso.
Coxas, enrugadas, de olhos cruzados, elas tentam seguir
Atrás da Loucura, que, por ser forte e rápida,
Corre longe na frente delas, aparecendo
Em todo o mundo, trazendo dano aos homens.
Longe, as Preces continuam a sua cura.
Se um homem homenageia estas filhas de Zeus
Como elas se aproximam, eles vão ajudá-lo grandemente,
Prestando atenção a ele enquanto ele ora.
Se alguém as despreza, rudemente as rejeita,
Elas vão para Zeus, filho de Cronos, implorando
Para a Loucura perseguir aquele homem, que então
Prejudica a si mesmo e sofre punição.
Por essa razão, Aquiles, você deve dar,
Às filhas de Zeus, seu respeito."
HOMERO, Ilíada, IX
"Vede! Os deuses choram, todas as deusas choram,
Que o belo pereça, que o mais perfeito desapareça.
Mas um lamento nos lábios dos amados é glorioso,
Pois o comum desce ao Orco em silêncio."
FRIEDRICH SCHILLER, Nänie
Pressionado pela contra-ofensiva de Heitor, líder das tropas troianas e de seus aliados, que rapidamente empurrava os aqueus de volta a seus navios, Agamemnon vê-se obrigado a buscar a reconciliação com Aquiles a fim de evitar a amarga derrota. Aquiles, contudo, como relata o livro IX da Ilíada, rejeita os presentes generosos oferecidos por Agamemnon por meio de uma embaixada liderada pelo rei de Ítaca, Odisseu.
Os membros da embaixada tentam, em vão, demover o herói de sua decisão de rejeitar os presentes do rei de Micenas e líder da expedição dos aqueus. Não contente em recusar a reconciliação com Agamemnon, Aquiles declara sua intenção de abandonar o cerco a Tróia e retornar à Grécia.
Ademais, sua mãe, a ninfa Tétis, contara-lhe que se ele decidisse permanecer em Tróia, ganharia a imortalidade na memória dos homens por meio de uma morte heróica cuja glória seria eterna. Se, por outro lado, decidisse partir, morreria idoso e feliz em sua terra natal.
Nesse momento, há uma escolha crucial a ser feita: a glória imortal por meio da morte heróica que será lembrada pelos homens para sempre ou a felicidade e a tranquilidade de uma morte serena, mas que condena o homem ao esquecimento. O drama de Aquiles é o drama da imortalidade possível aos homens onde não há ainda a noção de uma alma individual imortal.
Em Homero, a Psychê não é mais que um sopro que se desprende do homem no último suspiro antes da morte. Imortais somente são os deuses benfazejos. Os homens são destinados à morte e suas sombras, espectros totalmente inconscientes da vida do mundo dos vivos, descem ao Hades. A única imortalidade é a da memória coletiva da comunidade.
Como afirma Werner Jaeger na Ingersoll Lecture de 1958, intitulada The Greek Ideas of Immortality:
"(...) havia uma diferença entre a grande massa dos mortais que não tinham nada a esperar após a morte e os valentes e nobre guerreiros que deixavam atrás deles a gloriosa memória de seus feitos vivendo nas canções dos aedos. Nessas canções, os grandes feitos dos deuses e dos homens eram igualmente louvados. A diferença entre mortais e imortais parecia quase desaparecer, e o homem adquiria glória eterna e reputação. Sua personalidade era forte o suficiente para resistir à lei comum do esquecimento."
A imortalidade era alcançada pelo louvor dos aedos que preservavam a memória dos feitos dos heróis do esquecimento. Em outros termos, a paridade com os deuses não poderia vir por nenhuma igualdade ontológica com os olímpicos, já que os homens são irremediavelmente mortais, mas da memória coletiva recolhida e cantada pelo aedo. A poesia é o veículo da imortalidade.
Nesse sentido, Homero, ao cantar as proezas de Aquiles e dos grandes heróis do cerco a Tróia, garante-lhes a imortalidade a que eles têm direito por causa justamente de seus esforços e feitos naquela guerra. A transcendência é merecida pela excelência guerreira e assegurada pelas canções dos aedos.
Essa imortalidade pode ser perdida, contudo. Aquiles está na encruzilhada entre a vida do homem comum que desce ao Hades em silêncio e em oblívio e a vida heróica que conduz à glória da lembrança nas canções dos poetas. Em certo sentido, o dilema da predição de Tétis expressa o conflito entre o desejo pessoal pela tranquilidade da vida comum que culmina em uma morte serena e o anseio pela imortalidade através da memória coletiva que, no entanto, exige trabalhos dolorosos e uma morte violenta.
Aquiles tem esse dilema na mente quando recebe a embaixada enviada por Agamemnon, pois o cita expressamente diante dos embaixadores reais. Agamemnon é o cabeça da comunidade que vem exigir/pedir que ele cumpra seus deveres para com o coletivo. Afinal, todos sofrem enquanto ele recusa-se a lutar. Aquiles falha em perceber como sua atitude põe em risco o equilíbrio das coisas, já que ele mesmo é um rei, um guerreiro. O que acontece quando os guerreiros recusam-se a guerrear?
Aquiles apega-se à ofensa de Agamemnon e recusa as suas ofertas de reconciliação por causa de sua cólera (cholos). Eis, de novo, o centro da Ilíada: a cólera de Aquiles que tanto mal causou aos aqueus no cerco da sagrada Ílion. E essa cólera pode privá-lo da imortalidade da canção do aedo.
O texto homérico, por meio do discurso do sábio Fenice, refere-se à recusa de Aquiles em termos de um cenário de relações divinas. As ofertas de Agamemnon são sagradas, pois são da parte das Litai (Preces), deusas filhas de Zeus que vivem a perseguir e a tentar alcançar a Ate (loucura, desatino), para neutralizar seus efeitos sobre os homens. Não obstante, aquele que recusa as Litai é castigado, pois elas sobem a Zeus e pedem que sobre o recalcitrante desça a Ate e que esta o castigue perseguindo-o para sempre.
Isto é, as Preces - expressões da reconciliação, da restauração da justiça e da harmonia -, estão sempre atrás do desatino e da loucura tentando consertar seus efeitos deletérios nos homens. Há uma cura para o erro: a prece, o pedido, a oferta de reconciliação com o ofendido. O problema é que as Preces estão sempre atrasadas em relação à Ate.
Essa perseguição reflete simbolicamente o conflito interior do homem. O desatino humano parece sempre estar fora do alcance da oferta de paz. Ou melhor, o próprio da loucura e do desatino é justamente fugir das preces, das tentativas de acomodação dos conflitos. Se o homem recusa as Preces, recusa a reconciliação, escolhe a permanência na discórdia (Eris). Escolhe a cólera (cholos) quando ela não é mais justa. É a hubris, a desmedida.
A consequência é que as Preces, recusadas e desprezadas, apelam à justiça (dikê) de Zeus e condenam o homem a ser presa da Ate. Em outros termos, a oferta de apaziguamento, quando recusada, torna-se condenação. O homem fica entregue ao desatino, já que a cura não está mais ao encalço da loucura.
A cólera de Aquiles era justa enquanto Agamemnon recusava-se a devolver Briseis, poi sua honra guerreira estava em questão. Agora que Agamemnon não somente promete devolvê-la, mas também oferece presentes tão numerosos quanto valiosos, a cólera de Aquiles deveria ser apaziguada. As Preces deveriam ser aceitas, já que a honra de Aquiles foi reconhecida e restaurada.
Aquiles as rejeita, contudo. Ele rejeita o remédio para a Ate, para o desatino. Note-se que a Ate é filha de Eris, a discórdia. Aquiles, em seu desatino, ameaça retornar à Grécia e deixar os aqueus à mercê da fúria do grande Heitor, defensor de Tróia. Ele cria a discórdia. O herói não aceita pôr fim à cólera ao rejeitar as ofertas de amizade e de reconciliação.
Como Eric Voegelin assinala no segundo volume de seu Order and History, há uma fratura na elite daquela sociedade. A alma do herói, patologicamente centrada em si mesma e em sua própria noção de satisfação e de honra, recusa os liames que reúnem os homens depois das desavenças, divide a comunidade e a põe em risco de destruição.
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