"A condenação [de 1277] enfraqueceu a influência da ciência e da filosofia aristotélicas sobre o mundo letrado. A certeza e a confiança que haviam caracterizado os filósofos naturais aristotélicos no século XIII foram abaladas. A ênfase no poder absoluto de Deus acoplada à críticas legítimas aos fundamentos da certeza filosófica e científica alteraram consideravelmente o caráter e o campo da discussão científica. Alternativas e possibilidades que não eram sonhadas ou discutidas no século XIII foram consideradas e exploradas no século XIV. (...) Entretanto, embora a confiança no sistema físico de Aristóteles tenha certamente decrescido, isso se deu principalmente por uma ampla desconfiança acerca das explicações físicas em geral."
EDWARD GRANT, Physical Science in the Middle Ages, p.84
Há ainda os que, por ignorância ou preguiça, defendem que não havia discussão científica na Idade Média. Através de diversos estudos históricos dos quais Pierre Duhem foi o pioneiro no início do século XX se sabe hoje que nada disso pode ser dito com justiça. Os debates acerca da física aristotélica estiveram na lista dos temas mais importantes daqueles tempos.
Esses debates, realizados nas grandes universidades, não só pretendiam esclarecer o sentido das proposições de Aristóteles, mas também contribuir com novas questões e críticas. É preciso lembrar que o bojo da educação universitária na Idade Média era a Lógica e a filosofia natural.
Nada mais natural então que a Física fosse um dos mais comentados e discutidos livros de Aristóteles naquele período. Contudo, a recepção da obra do Estagirita não aconteceu de forma plácida e sem conflitos. Há um erro em se afirmar, como tão freqüentemente se ouve em nossos dias, que "Tomás 'batizou' Aristóteles e este se tornou a autoridade indiscutível na Idade Média."
A questão é muito mais complexa do que isso e neste espaço não é possível analisá-la em todos os seus aspectos. Mas é possível apontar para alguns fatos importantes da história científica medieval para que se torne mais matizado o caráter das relações entre o pensamento grego e a revelação cristã na Idade Média.
No século XII houve um incremento inédito das traduções das obras dos gregos clássicos. Incentivados pelas traduções árabes, monges e outros eclesiásticos ocidentais se dedicaram à tradução dessas obras para o latim. Poucas vezes na história humana houve um esforço tão grande e concentrado em resgatar e preservar a cultura herdada dos antigos.
O século XIII continuou essa empreitada e nele iniciou-se as grandes discussões acerca da absorção do saber dos antigos dentro da civilização cristã. É o século de Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, os grandes defensores de Aristóteles. Mas porque o grego necessitava de defensores?
Ora, a filosofia aristotélica era um conjunto formidavelmente coeso, coerente e compreensivo de saber que se aplicava às mais diversas áreas do conhecimento*. Isso impressionou vivamente o espírito dos medievais. Contudo, apesar de tanta sabedoria inegável, algumas das teses da Física e de outros escritos estavam em franca contradição com pontos importantes da Revelação.
Aristóteles negava, por exemplo, a imortalidade da alma e afirmava a eternidade do mundo. A tarefa que se seguiu foi a de buscar uma harmonização entre essa ciência antiga e os conteúdos da fé. Sem dúvida, o maior luminar dessa era e desse projeto foi o frade mendicante dominicano Tomás de Aquino.
Mas nem todos estavam convencidos da conveniência e das vantagens desse projeto. Em 1277, três anos após a morte de Tomás, Etienne Tempier, bispo de Paris, reunido com os mestres de teologia da respeitada universidade parisiense condenou 219 proposições defendidas pelos mestres de artes (filósofos sem treino em teologia).
Entre essas proposições haviam diversas que pertenciam ao corpo científico do pensamento aristotélico. A motivação dessas condenações seria a de preservar a liberdade de Deus. Segundo os teólogos daquela época, as teses condenadas restringiriam inapropriadamente a onipotência divina.
Para Aristóteles todas as coisas obedecem a uma necessidade específica dada pela essência (Forma ou Eidos) que, internamente, faz com que cada coisa se torne o que ela deve ser. São essas essências ou naturezas que determinam o comportamento e o lugar de cada coisa no cosmos fechado e hierarquicamente ordenado.
A partir da perspectiva aristotélica, aquilo que é fisicamente impossível é necessariamente impossível. Tempier e os mestres de teologia da Universidade de Paris consideraram que essa filosofia era restritiva demais, pois, ainda que algo fosse impossível no mundo natural pelos meios naturais, não seria Deus capaz de fazê-lo sendo Ele onipotente?
Aristóteles negava a possibilidade do vácuo, do movimento retilíneo do mundo (o que implicaria o vácuo) e a pluralidade dos mundos. Se para o grego era necessariamente impossível que essas coisas se dessem, não seriam elas possíveis Àquele que sustou o curso do Sol para ajudar Josué?
As teses aristotélicas acima citadas estavam entre aquelas condenadas em 1277. Por causa dessa ofensiva teológica de defesa de Deus, o edifício aristotélico foi abalado e desacreditado e o século XIV assistiu a um período de engenhosas e sutis discussões acerca de hipóteses sobre possibilidades antes totalmente proibidas pela filosofia natural do Estagirita.
Grandes pensadores como Jean Buridan e Nicolas Oresme se dedicaram a questionar, modificar e propor alternativas às soluções dadas por Aristóteles. Mas o faziam como simples hipóteses sem valor real. Qual o motivo para tal comportamento?
A resposta é simples: por causa da liberdade divina. Se Deus é livre a ponto de fazer aquilo que a filosofia natural julga ser necessariamente impossível, resta que nenhum conhecimento real do mundo é possível. Tudo o que pensamos, nossas teorias acerca do mundo só têm valor conjectural, pois qualquer que seja nossa hipótese, por mais certa que pareça, não pode constranger Deus na Sua onipotência.
Para qualquer teoria que se apresente, com qualquer grau de certeza que se queira, Deus sempre pode fazer diferente do que se pensa. As teorias então são encaradas como hipóteses que, embora concordantes com os fatos, nunca podem ser consideradas verdadeiras.
Todas as especulações de Buridan e Oresme são consideradas como construções mentais (secundum imaginationem) que somente "salvam os fenômenos" ou seja, são adequadas ao observado, mas nada dizem sobre a real natureza das coisas.
Dessa forma, as condenações de 1277 afrouxaram os laços do aristotelismo e acabaram por incentivar uma atividade teórica rica e diversificada no campo do estudo dos fenômenos naturais onde floresceram inúmeras hipóteses que antecipavam teses importantes da revolução científica do século XVII.
Por outro lado, essas mesmas inovações teóricas não são encaradas como nada além de construções mentais interessantes e adequadas aos fenômenos, mas incapazes de serem afirmadas como verdadeiras.
A despeito do prefácio de tom conciliador e instrumentalista que o luterano Andreas Osiander escreveu para o De Revolutionibus, o polonês Copérnico ciosamente afirmava a verdade de seu sistema heliocêntrico. É somente aí que a revolução começa. E começa porque novamente se ousa falar em verdades acerca de assuntos concernentes ao mundo natural.
A ciência moderna se fundará na rejeição de Aristóteles e na afirmação da verdade de suas teorias. Para que isso seja possível, uma vez abandonada a ontologia essencialista aristotélica, uma nova ontologia do real é construída.
Ela será quantitativa, ideal e geométrica. Expulsará do real as qualidades cotidianamente observadas e se fiará na necessidade que caracteriza a matemática. Doravante, se considerará a ordem somente a partir de seu aspecto quantitativo e mesmo Deus será convertido num matemático.
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*(Em diversos posts anteriores nós tratamos das características e teses principais da ciência aristotélica, principalmente com relação às diferenças que estas apresentam frente à ciência moderna. Pedimos ao leitor que se remeta a esses posts para maiores esclarecimentos.)