sábado, 28 de fevereiro de 2009

Biologia aristotélica


Aristóteles acreditava que podemos conhecer a essência das coisas abstraindo-a da matéria de seus exemplares concretos. Assim, do que é mais evidente e acessível para nós, os exemplares concretos, subimos ao grau universal da Forma ou essência da coisa.

Conhecendo a Forma de um ser vivo pode-se entender então as funções e a organização de seus órgãos. Isto porque a Forma é a causa eficiente e a causa final que determina o desenvolvimento do ser vivo cuja atualização completa se encontra justamente na realização da Forma.

Se conheço a essência de um sapo posso entender então a função de cada orgão na disposição geral do organismo que, em última instância, visa realizar a Forma. Esta é o princípio regulador e organizador. Por isso, por um raciocínio chamado necessidade hipotética, podemos traçar a função de cada órgão na medida em que ele contribui para a realização do ser plenamente desenvolvido.

O raciocínio é análogo ao do construtor que tem uma casa em mente. O que é necessário para realizar essa casa? Quais materiais são adequados? Qual a função de cada parte? Como cada parte deve estar disposta para que se realize a casa?

O estudo biológico inicia-se por uma observação direta de vários exemplares de um genus seguida da apreensão abstrativa da essência ou Forma do mesmo. A partir desse conhecimento seguro, estuda-se a conformação material do ser vivo de acordo com esse princípio regulador e organizador, causa eficiente e causa final da estrutura orgânica.

Para Aristóteles todas as partes materiais estão organizadas e funcionam para a realização da Forma que é, por fim, a essência imutável e inteligível de cada coisa e de cada ser vivo.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Aristóteles: conhecimento a partir do conhecimento


Aristóteles, pintura anônima, Catedral da Transfiguração, Moscou


Aristóteles, nos Analíticos Posteriores, afirma que "toda instrução dada ou recebida por meio de argumento procede de conhecimento pré-existente". Em outros termos, toda argumentação se baseia em algo que já sabemos. Um pouco mais à frente o filósofo assevera que nem todo conhecimento pode ser demonstrativo e que, ao contrário, o conhecimento das premissas é independente de demonstração.

Para Aristóteles essas premissas são fornecidas precipuamente de duas formas. Pela indução, de um contato repetido com instâncias particulares abstraímos a Forma ou a essência da qual aquelas são os exemplares. De vários sapos conhecidos abstrai-se a matéria (o que individua) e apreende-se a forma, a essência do sapo.

Ou ainda pelo processo dialético em que, confrontando diversas opiniões de grandes mestres, podemos reconhecer o que cada um diz de verdade e apreender a verdadeira essência da coisa discutida que será depois fielmente refletida numa definição.

Em ambos os casos há um processo de abstração no qual o diverso dá luz ao uno. Ou seja, somos capazes de apreender a verdadeira natureza das coisas a partir de instâncias múltiplas ou de opiniões variadas. Uma vez em posse dessas premissas seguras, poderemos realizar demonstrações.

Assim, o conhecimento se dá pelo conhecimento. E como nenhuma conclusão dedutiva pode dizer algo além do que é dito nas premissas, o conhecimento é como uma explicitação daquilo que já se conhece. Como dizia Aristóteles, em um certo sentido já sabemos e em outro não.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Os céus e a terra

Bede Griffiths, em seu livro "Return to the Centre", afirma que "o céu que se estende imenso acima de sua cabeça, seu espaço infinito e sua constância são um testemunho de eternidade, enquanto todas as coisas lá embaixo estão mudando."

É interessante notar que Aristóteles mantém uma divisão ontológica entre o mundo supralunar e o mundo sublunar. Tal divisão se encontra no cerne de uma estrutura hierárquica que permite a idéia de um Cosmos organizado com lugares naturais e, portanto, inteligível.

Um dos feitos da revolução científica galilelaica do século XVII foi justamente abolir essa diferença ontológica entre os céus e a terra. As leis do supralunar não são essencialmente diversas daquelas do sublunar. O plano geométrico-matemático nivela tudo.

Simbolicamente o feito é enorme. Os céus, o divino, se alcançam por meios terrestres e humanos. Há como uma imanentização do divino feita por meios matemáticos. O livro da Natureza escrito em caracteres matemáticos fornece ao homem a chave para alcançar o divino e este não é diferente do humano senão na capacidade infinita de seguir todas as consequências matemáticas de todos os postulados como afirmou Galileu.

Se as leis dos céus foram trazidas à terra, por qual razão não seria também o Reino de Deus? O que poderia impedir uma nova imanentização do divino, agora política e social? O homem não poderia também ser capaz de encontrar a chave do seu destino histórico e, planejando de acordo com este conhecimento, trazer ao mundo o reino da felicidade perpétua?

Entretanto, toda imanentização do divino é sempre o divino nivelado, por força, ao humano. Este permanece o mesmo, embora com a ilusão de haver abarcado aquele.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sufi


"Ele chegou... Chegou aquele que nunca partiu;

Esta água nunca faltou a este riacho.

Ele é a substância do almíscar e nós o seu perfume.

Alguma vez se viu o almíscar separado de seu cheiro?"


Jalaluddin Rumi

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O divino, a mística e a utopia








Creio que a verdade de toda religiosidade legítima reside na compreensão e não na rejeição. Não é o abandono deste mundo por um outro, mas a compreensão da topologia do Ser. Quando conhece-se, por experiência mística, o lugar do homem no plano do Ser, há libertação (Moksa) da ilusão (Avdya) e conseguimos integrar-nos neste mundo sabendo exatamente o que ele significa, como Arjuna na batalha.

Fora dessa compreensão, a busca da felicidade desemboca numa constante fuga para as coisas, na ilusão de que a multiplicidade possa passar pelo infinito. Como cada coisa é finita e passageira, passa-se de uma à outra sempre projetando na próxima o dever de nos abrir o Éden.

Ou tenta-se criá-lo por força. A própria idéia utópica é expressão dessa incompreensão. Projeta-se, num futuro, o surgimento de algo (cuja vinda geralmente demanda esforços no presente) que será a realização máxima da felicidade humana. De novo, da decepção das coisas presentes se salta para a promessa das coisas futuras.

Entretanto, a satisfação neste mundo é impossível. Os projetos utópicos inevitavelmente prometem um futuro que é sempre expressão de uma simplificação grosseira do homem. O que pode satisfazer o desejo humano está no divino. E Este não atende pela gramática das coisas. Ele não é "algo", nenhuma das coisas em particular.

Como uma vez tentei descrever, embora de forma sempre inadequada e equívoca, o divino é lótus florescendo, é florescimento infinito. Parafraseando René Guénon, é o princípio imanifestado da manifestação. É o que a manifestação, em manifestando-se, pressupõe.

E a compreensão, estando fora da dinâmica usual da satisfação, encontra seu lugar somente na mística.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Koyré e a revolução científica


"A dissolução do Cosmo, repito, me parece a revolução mais profunda realizada ou sofrida pelo espírito humano desde a invenção do Cosmo pelos gregos. É uma revolução tão profunda, de consequências tão remotas, que, durante séculos, os homens (...) não lhe apreenderam o alcance e o sentido. Ainda agora, ela é muitas vezes subestimada e mal compreendida."
ALEXANDRE KOYRÉ

(Koyré, de terno escuro, ao lado de Berdiaev)

O fim do mundo antigo e medieval, governado e estruturado hierarquicamente numa ordem ontológica que se exprimia, entre outras coisas, na divisão entre as leis do supralunar e as leis do sublunar e numa física que privilegiava o lugar natural determinado pela essência ou Forma de cada coisa, e sua subseqüente substituição por uma física cuja ontologia se identificava com o plano geométrico indiferenciado e infinito em que todo movimento se resume ao deslocamento entre pontos arbitrariamente determinados, teve conseqüências as mais cruciais e surpreendentes.

Tal mudança foi possível, como assevera Koyré, graças não a uma simples crítica de teorias errôneas e sua substituição por outras melhores. Necessária foi uma reestruturação da própria inteligência. Uma mudança na visão sobre o Ser, sobre o conhecimento e a ciência, uma substituição das mais intuitivas idéias e concepções por outras absolutamente afastadas da experiência comum.

Os axiomas, princípios e definições mais intuitivos que eram a base segura e inquestionável da qual se deduziam todo e qualquer conhecimento científico foram rejeitados e substituídos por outros que, aos olhos dos antigos, pareceriam uma coleção de nonsenses.

Esse episódio inspira uma das mais interessantes perguntas epistemológicas: se o agente se vê diante de uma nova teoria que reinterpreta completamente a experiência mais cotidiana, oferece uma ontologia radicalmente contra-intuitiva e, sobretudo, necessita de uma mudança nos parâmetros mesmos da racionalidade e da ciência, deve ele se apegar ao intuitivo e evidente e rejeitar a novidade ou deve investir tempo no desenvolvimento de um programa de pesquisa que, no início, tem tudo contra ele?

Dar uma resposta adequada a essa questão é o desafio formulado por Feyerabend. Um desafio que não se restringe ao passado. Ele é nosso também.

Rumi


"Alguém bateu à porta da Bem-Amada, e uma Voz lá de dentro perguntou:- Quem está aí?
E ele respondeu - Sou eu.
A Voz então disse:- Esta casa não conterá nós dois.
E a porta continuou fechada. Então o Amante foi para o deserto e na solidão jejuou e orou. Retornou depois de um ano e bateu novamente à porta.
E de novo a Voz perguntou:- Quem é?
E o Amante respondeu:- És tu mesma!E a porta lhe foi aberta."


RUMI, poeta sufi persa (1207-1273)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Pierre Duhem, metafísica e ciência



O físico, filósofo e historiador da ciência francês Pierre Duhem afirmava que toda explicação implica em asserções acerca da constituição última do fenômerno a ser explicado.

Por exemplo, as explicações dos newtonianos, dos cartesianos e dos aristotélicos acerca do movimento são diferentes devido às idéias de cada escola sobre a constituição última desse fenômeno.

Para um newtoniano o movimento pode ser resultado da ação à distância da força atrativa que um corpo de massa maior exerce sobre um de massa menor. Para um cartesiano isso seria absurdo, pois o movimento só se dá pelo choque.

Um aristotélico concebe o movimento como um processo qualitativo, atualização de uma potência em uma ordem cósmica tendente ao extático e não somente como um deslocamento quantitativo num espaço geometricamente idealizado.

As diferenças aqui são metafísicas. E se essas diferenças são importantes, então a física se subordinará à metafísica. Segundo Duhem, "se a física teórica é subordinada à metafísica, as divisões separando os diversos sistemas metafísicos vão se estender ao domínio da física. Uma teoria física aceita como satisfatória pelos seguidfores de uma escola metafísica vai ser rejeitada pelos partidários de outra."

Duhem sugere, como solução, uma prática científica que, tanto quanto possível, seja isenta de pressupostos metafísicos que gerem conflitos entre os praticantes de certo campo de pesquisa. A idéia central seria a adoção consensual entre os participantes da pesquisa de uma teoria física que seja a representação matemática das constantes físicas observáveis.

Não se trata de uma teoria que afirme a natureza dos objetos físicos , mas sim de uma que descreva as relações entre essas grandezas em linguagem matemática e de acordo com a experiência. O critério de verdade dessa teoria não será mais a natureza do objeto físico, mas a conformação entre as hipóteses que a compõem e o experimento.