sexta-feira, 18 de março de 2011

Pierre Duhem e o método experimental

"O que é uma teoria física? Um grupo de proposições matemáticas cujas consequências devem representar os dados da experiência. A validade de uma teoria é medida pelo número de leis experimentais que ela representa e pelo grau de precisão pelo qual ela as representa; se duas teorias diferentes representam os mesmos fatos com o mesmo grau de aproximação, o método físico considera-as como tendo absolutamente a mesma validade; ele não tem o direito de ditar nossa escolha entre essas duas teorias equivalentes e é obrigado a nos deixar livres. Sem dúvida, o físico vai escolher entre essas duas teorias logicamente equivalentes, mas os motivos que vão guiar sua escolha serão considerações de elegância, de simplicidade, de comodidade, razões de conveniência essencialmente subjetivas, contingentes e variáveis de acordo com o tempo, as escolas e as pessoas. Por mais graves que esses motivos possam ser em alguns casos, eles não serão jamais de tal natureza que a adesão a uma das teorias ou a rejeição da outra sejam consequências necessárias deles." (tradução minha do original em francês)

PIERRE DUHEM, Physique de Croyant


No trecho citado acima o filósofo, físico e historiador da ciência francês Pierre Duhem explica de forma clara sua concepção acerca da natureza da teoria física.

A ciência, longe de poder provar suas asserções por meio de uma derivação lógica de princípios auto-evidentes, tem como seu método derivar predições empíricas de suas teorias e compará-las com o que é observado.

Por esse método, porém, nenhuma teoria pode ser estabelecida definitivamente, pois sempre é possível que mais de uma teoria se adeque satisfatoriamente aos dados empíricos. Ou seja, para qualquer conjunto de dados observacionais, um número indefinido de teorias pode ser adequado a ele.

"O método experimental não pode transformar uma hipótese de física numa verdade incontestável porque não se pode jamais estar certo de que se tenham esgotado todas as hipóteses imagináveis que podem se aplicar a um grupo de fenômenos. O experimentum crucis é impossível." (Duhem, Quelques Réflexions au sujet de la Physique Éxperimentale)

A pedra de toque de uma teoria física será sua adequação ao comportamento observável dos corpos. E essa adequação depende do grau de aproximação apresentado pela teoria. Daí, Pierre Duhem defende, é errado falar de verdade ou de falsidade com relação às teorias físicas. Elas são sempre aproximativas e, por isso, nem falsas e nem verdadeiras, somente mais ou menos adequadas.

"Do ponto de vista da pura lógica, os princípios fundamentais das teorias da mecânica e da física podem ser encarados somente como postulados livremente colocados pela mente. Do conjunto desses postulados o raciocínio dedutivo deduz um conjunto mais ou menos remoto de consequências as quais concordam com os fenômenos observados; essa concordância é tudo o que o físico espera desses princípios postulados." (itálicos no original, carta de Duhem ao Fr. Reginald Garrigou-Lagrange)

E as propriedades que as teorias postulam, compõem elas a natureza última dos fenômenos?

"A esses princípios da física, podemos e devemos fazê-los corresponder a proposições que afirmam certas propriedades reais dos corpos? À Lei da Inércia, por exemplo, devemos fazer corresponder a afirmação de que há, em cada corpo em movimento, uma certa realidade, um impetus, dotado de tais e tais características? Essas proposições se aplicam ou não a seres dotados de livre arbítrio? Estes são problemas que o método do físico é incapaz de solucionar e ele os deixa para a livre discussão dos metafísicos." (itálico no original, carta já citada)

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terça-feira, 8 de março de 2011

Tomás de Aquino, Revelação e Filosofia



"Para qualquer crente sincero que é, ao mesmo tempo, um verdadeiro filósofo, a menor oposição entre a sua fé e a sua razão é um sinal seguro de que algo está errado com sua filosofia. Pois, de fato, fé não é um princípio do conhecimento filosófico, mas um guia seguro para a verdade racional e uma advertência infalível contra o erro filosófico. Um homem que não gosta de crer naquilo que ele pode conhecer, que nunca pretende conhecer aquilo que ele somente pode crer e que é ainda um homem cuja fé e conhecimento crescem numa unidade orgânica porque ambas nascem da mesma fonte divina; este é, se não o retrato, no mínimo o modelo do típico membro da família tomista."

ÉTIENNE GILSON, Reason and Revelation in the Middle Ages


Após o longo esforço de tradução das obras de filósofos gregos, principalmente de Aristóteles, levado à cabo no século XII, o século XIII desponta como a época de absorção do saber dos pensadores da Grécia clássica pelos mestres das universidades européias.

É também a era de uma síntese original entre as exigências racionais, representadas pelos tratados peripatécos, e os deveres da fé, apresentados pelas Escrituras e pela Tradição.

A síntese aqui referida é obra da pena de um frade mendicante dominicano da Itália chamado Tomás de Aquino. Inteligência das mais radiantes, o Doctor Angelicus é, sem dúvida alguma, o maior filósofo da Idade Média, seja pela amplidão de sua obra monumental, seja pela profundidade e rigor lógico que testemunha no tratamento das mais espinhosas questões da filosofia e da teologia.

Sobre as relações entre fé e conhecimento, Tomás inicia definindo os termos em disputa. Pela consideração das suas natureza, expostas nas suas definições, será possível dizer, sem erro, o lugar de cada uma na vida humana.

A fé é o assentimento a conteúdos revelados diretamente por Deus. O conhecimento é o assentimento àquilo que se demonstra verdadeiro por meio da luz da razão natural.

Em termos estritos, não sabemos que os conteúdos da fé são verdadeiros. Não chegamos a eles por meio de raciocínios dedutivos a partir de premissas verdadeiras ou evidentes. Nesse sentido, não sabemos e nem conhecemos.

Por outro lado, o crente confia que tais conteúdos sejam verdadeiros por causa da fonte do testemunho, o próprio Deus. O autor do testemunho testemunha a Si mesmo revelando-se ao homem em afirmações que não poderiam ser alcançadas pela luz natural da razão humana.

O crente não sabe, por vias dedutivas naturais, que há a Encarnação do Verbo eterno de Deus e nem que há uma Trindade consubstancial e indivisível. E nem poderia saber, ainda que se esforçasse por milênios em elucubrações filosóficas. O que Deus revela é algo que, por sua própria natureza, não pode ser alcançado pelo homem.

Mas existem algumas coisas sobre Deus que podem ser conhecidas por meios naturais.

O filósofo pode saber que Deus existe, conhecer alguns de seus atributos e afirmar o conhecimento de que há uma alma imortal. Mas nem todos os homens são filósofos, e é por isso que estes conteúdos, ainda que naturalmente alcançáveis pela razão humana, são também objeto da Revelação, a fim de que nenhum homem se perca por não os haver conhecido.

Outros conteúdos há que nem o homem comum, incapaz de empreender investigações filosóficas, e nem o filósofo propriamente dito podem alcançar. Tais são as verdades de fé divinamente reveladas. E verdades, sejam elas quais forem, não podem se contradizer.

Por isso, as verdades da fé e aquelas da filosofia necessariamente concordam. Se há discordância, ela é aparente e se deve a uma falha da filosofia. As Escrituras são a Palvra de Deus e jamais estão enganadas. O erro só pode ser atribuído às falhas da razão humana limitada.

Mas as Escrituras não determinarão as premissas corretas para os argumentos filosóficos. Filosofia não é teologia, ciência que baseia suas cadeias demonstrativas em premissas cujo conteúdo é revelado por Deus diretamente.

A filosofia, enquanto ciência, é independente. Suas demonstrações não partem de conteúdos de fé, mas de premissas evidentes hauridas pela experiência comum. Quando uma discordância se apresenta entre a fé e a filosofia, então isso é sinal de que esta se enganou, que está em erro.

A tarefa, contudo, de apontar o erro e corrigí-lo, pertence à própria filosofia. Nenhum apelo às Escrituras deve ser permitido. Cabe à filosofia reparar seus erros com os meios que lhe são próprios. Ela deve rever seus argumentos e encontrar o erro, substituindo-o pelo acerto. Sozinha, sem ajuda da teologia.

A discordância com a fé revelada aparece então como um sinal claro e inequívoco de que foi cometido um erro filosófico.

Conquistada no século XIII pelo tomismo, a síntese entre fé e razão será duramente criticada por uma onda de reação teológica contra a filosofia inaugurada pelas condenações de 1277, poucos anos após a morte de Tomás, e finalmente perdida nos séculos XIV e XV.

domingo, 6 de março de 2011

Filosofia medieval e a "doutrina da dupla verdade".




O que fazer quando as conclusões escrupulosamente deduzidas de princípios evidentes hauridos da própria experiência comum discordam dos conteúdos mais importantes da Revelação divina? O que acontece quando a filosofia diz que é rigorosamente impossível aquilo que afirmam as Escrituras como verdade indubitável?

É óbvio que o conflito entre a sabedoria filosófica pagã e a Revelação cristã já era sentido e debatido desde o segundo século depois de Cristo - talvez desde as cartas de São Paulo - e que soluções já haviam sido propostas, mas é nos séculos XII e XIII que a discussão tem, sem dúvida, seu ápice.

Enquanto os cristãos viveram sob a égide do império romano, eles foram obrigados a conviver com uma gama crescente de seitas, cultos de mistério, sociedades esotéricas e religiões de diversos gêneros. É nesse ambiente que os primeiros filósofos cristãos, os apologistas, desenvolveram seu pensamento, em geral para defender a fé nascente das perseguições movidas pela ignorância das autoridades pagãs acerca de sua real doutrina ou para expressá-la da forma mais clara possível a fim de impedir o engano e a heresia dentro de suas próprias fileiras.

A queda do império do ocidente trouxe caos, destruição e, como consequência, a perda quase total da cultura clássica. Até o século XII, os europeus ocidentais ignoravam quase a totalidade da obra de Aristóteles e Platão. Contudo, homens como Wilhelm von Morbecke e outros realizaram um grande empreendimento de tradução de obras da filosofia grega trazidas dos domínios árabes na Espanha.

Junto com inúmeros apócrifos - como o Secretum Secretorum, atribuído a Aristóteles - começou a circular pelas universidades um conjunto formidável de obras do Estagirita que, rapidamente se tornaram o centro dos estudos dos mestres de artes, filósofos sem treino em teologia.

Ora, com Aristóteles vieram também as doutrinas de seu maior comentador, Ibn Rushd ou Averróes, que defendia a total independência e implícita superioridade da filosofia com relação à teologia. Seria tal doutrina compatível com a fé cristã?

E mais, se Aristóteles se mostrava tão convincente em seus argumentos a ponto de suas conclusões serem inegáveis e se estas entravam em conflito direto com a Revelação, que decisão um filósofo poderia tomar? Abraçar a fé ou o silogismo, Jerusalém ou Atenas?

Diante desse impasse, alguns pensadores passaram a defender a "doutrina da dupla verdade". Étienne Gilson afirma que essa é uma designação ruim, pois nenhum medieval poderia admitir que duas verdades realmente pudessem se contradizer mutuamente. Posto que há contradição evidente entre aquilo que a filosofia afirma ser necessariamente verdadeiro e aquilo que a fé revelada aponta como absolutamente verdadeiro, então uma das duas deve ceder seus direitos.

Que seja então a filosofia a fazê-lo. Assim, tudo o que se sabe por meios racionais é o que se poderia saber se Deus não se houvesse revelado. Deus é a razão infinita, além de todo e qualquer conceito ou argumento e, por conseguinte, ultrapassa infinitamente nossa razão humana limitada.

É nesse espírito que diversas teses de Averróes e Aristóteles serão condenadas pelo bispo de Paris Étienne Tempier em 1277. O que é necessário filosoficamente não constrange Deus em nenhum grau, isto é, ainda que algo seja racionalmente provado como impossível, Deus sempre poderá realizá-lo pois Ele é onipotente e fonte de tudo o que há.

O que o homem pretende saber é somente o que ele pode saber a partir de sua mente limitada. Mais alta é a sabedoria que vem diretamente da Revelação contida nas Escrituras. O papel do filósofo seria raciocinar independentemente de qualquer conteúdo de fé, como se o mundo não fosse cristão, e apresentar suas conclusões sem se imiscuir nos assuntos pertencentes à esfera de estudo dos mestres de teologia.

Essa solução lança, intencionalmente ou não, uma grave suspeita sobre a validade ou a utilidade da própria filosofia, além de implicar uma interpretação fideísta da Revelação. Nessa mesma época, entretanto, surge ainda uma outra possibilidade se fazer justiça às pretensões da filosofia e às exigências da fé. Ela estará plenamente desenvolvida no pensamento de São Tomás de Aquino.

sábado, 5 de março de 2011

Um frade poeta contra Sócrates e Platão


"Platão e Sócrates podem se dedicar a contendas
E gastar todo o fôlego de seus corpos
Discutindo sem fim -
O que é isso tudo para mim?

Somente um coração puro e uma mente simples
Seu caminho direto para o céu podem encontrar;
Louva o Rei - enquanto deixa para trás
O mundo da filosofia."

BEATO JACOPONE DA TODI (1236-1306)



No post anterior tratamos da corrente medieval - representada pelo personagem Venerável Jorge de Burgos do romance O Nome da Rosa - que não via com bons olhos a relação entre a Revelação e a filosofia grega estabelecida pelo pensamento tomista.

Essa reação contrária ao saber dos filósofos não era nova. Ela nasceu já no século II, o momento em que o cristianismo nascente começou a atrair para seu redil pagãos de sólida formação filosófica.

A disputa ocasionada pela questão acerca dos direitos da filosofia não se limitou aos primórdios do cristianismo, mas se estendeu pelos séculos seguintes da chamada Idade Média.

Aqueles que negavam qualquer utilidade da filosofia para o cristão, vendo em suas elucubrações sofisticadas não mais do que uma indulgência aos pecados da vaidade e da curiosidade vã, o faziam respaldados por uma tradição que remontava às invectivas de Tertuliano contra a sabedoria pagã.

Dessa corrente "tertuliana", como a designou o medievalista francês Étienne Gilson, pertenceram místicos, monges, clérigos e poetas da estatura de São Bernardo de Clairvaux, de São Pedro Damião e do beato Jacopone da Todi, cujo poema acima traduzimos.

Jacopone era membro do grupo dos "espirituais", um segmento dentro da ordem franciscana que pregava um retorno à simplicidade e à pobreza que marcaram a vida do seu fundador São Francisco de Assis.

Os "espirituais" não encaravam com simpatia os estudos filosóficos e teológicos a que se dedicavam cada vez mais seus confrades desde a morte do poverello em 1226.

Os versos resumem os traços básicos dessa corrente: o caráter vão das discussões filosóficas, os fundamentos da salvação e a consequente rejeição da filosofia.

Platão e Sócrates representam o conjunto da sabedoria pagã que se resume a uma história de contendas infindas que duram até a morte de seus participantes. Eles gastam até seu último fôlego, morrem discutindo porque não chegam a nenhum resultado positivo. Nenhum conhecimento é alcançado por essa via.

Ao utilizar dois grandes mestres como personagens de seu poema, Jacopone parece querer insinuar que se os mais dotados contradizem-se mutuamente sem chegar a qualquer solução, o mesmo fardo está destinado a todos aqueles que, sem os mesmos dotes, vierem porventura a se aventurar pelas elucubrações filosóficas.

Mas o que é isso para ele, o cristão? Não recebeu ele a graça da fé e do entendimento da vontade de Deus por meio das Escrituras? Então que significado pode ter para ele esse espetáculo triste apresentado pelos sábios pagãos?

O prêmio da salvação, o único bem absoluto, só pode ser alcançado por um coração puro e uma mente simples. O caminho já está revelado, basta ao homem trilhá-lo. E ao fazê-lo, louvando o criador e sustentáculo do universo, ele necessariamente deixa para trás o mundo confuso em que habitam aqueles seres infelizes e amantes da contenda, os filósofos.

Os "tertulianos" não são a única força dentro do cristianismo medieval. Na verdade, representam uma posição extremada que tende a minimizar o conteúdo especulativo da própria tradição cristã e a ignorar as claras afirmações dos direitos da razão contidas nas próprias Escrituras.

Em geral, o pensador da Idade Média busca uma compatibilidade de alguma ordem entre sua fé, mantida como o porto seguro de sua vida, e suas necessidades de entendimento racional. E é nessa perspectiva que o pensamento medieval apresenta suas mais instigantes realizações teóricas.