domingo, 6 de março de 2011

Filosofia medieval e a "doutrina da dupla verdade".




O que fazer quando as conclusões escrupulosamente deduzidas de princípios evidentes hauridos da própria experiência comum discordam dos conteúdos mais importantes da Revelação divina? O que acontece quando a filosofia diz que é rigorosamente impossível aquilo que afirmam as Escrituras como verdade indubitável?

É óbvio que o conflito entre a sabedoria filosófica pagã e a Revelação cristã já era sentido e debatido desde o segundo século depois de Cristo - talvez desde as cartas de São Paulo - e que soluções já haviam sido propostas, mas é nos séculos XII e XIII que a discussão tem, sem dúvida, seu ápice.

Enquanto os cristãos viveram sob a égide do império romano, eles foram obrigados a conviver com uma gama crescente de seitas, cultos de mistério, sociedades esotéricas e religiões de diversos gêneros. É nesse ambiente que os primeiros filósofos cristãos, os apologistas, desenvolveram seu pensamento, em geral para defender a fé nascente das perseguições movidas pela ignorância das autoridades pagãs acerca de sua real doutrina ou para expressá-la da forma mais clara possível a fim de impedir o engano e a heresia dentro de suas próprias fileiras.

A queda do império do ocidente trouxe caos, destruição e, como consequência, a perda quase total da cultura clássica. Até o século XII, os europeus ocidentais ignoravam quase a totalidade da obra de Aristóteles e Platão. Contudo, homens como Wilhelm von Morbecke e outros realizaram um grande empreendimento de tradução de obras da filosofia grega trazidas dos domínios árabes na Espanha.

Junto com inúmeros apócrifos - como o Secretum Secretorum, atribuído a Aristóteles - começou a circular pelas universidades um conjunto formidável de obras do Estagirita que, rapidamente se tornaram o centro dos estudos dos mestres de artes, filósofos sem treino em teologia.

Ora, com Aristóteles vieram também as doutrinas de seu maior comentador, Ibn Rushd ou Averróes, que defendia a total independência e implícita superioridade da filosofia com relação à teologia. Seria tal doutrina compatível com a fé cristã?

E mais, se Aristóteles se mostrava tão convincente em seus argumentos a ponto de suas conclusões serem inegáveis e se estas entravam em conflito direto com a Revelação, que decisão um filósofo poderia tomar? Abraçar a fé ou o silogismo, Jerusalém ou Atenas?

Diante desse impasse, alguns pensadores passaram a defender a "doutrina da dupla verdade". Étienne Gilson afirma que essa é uma designação ruim, pois nenhum medieval poderia admitir que duas verdades realmente pudessem se contradizer mutuamente. Posto que há contradição evidente entre aquilo que a filosofia afirma ser necessariamente verdadeiro e aquilo que a fé revelada aponta como absolutamente verdadeiro, então uma das duas deve ceder seus direitos.

Que seja então a filosofia a fazê-lo. Assim, tudo o que se sabe por meios racionais é o que se poderia saber se Deus não se houvesse revelado. Deus é a razão infinita, além de todo e qualquer conceito ou argumento e, por conseguinte, ultrapassa infinitamente nossa razão humana limitada.

É nesse espírito que diversas teses de Averróes e Aristóteles serão condenadas pelo bispo de Paris Étienne Tempier em 1277. O que é necessário filosoficamente não constrange Deus em nenhum grau, isto é, ainda que algo seja racionalmente provado como impossível, Deus sempre poderá realizá-lo pois Ele é onipotente e fonte de tudo o que há.

O que o homem pretende saber é somente o que ele pode saber a partir de sua mente limitada. Mais alta é a sabedoria que vem diretamente da Revelação contida nas Escrituras. O papel do filósofo seria raciocinar independentemente de qualquer conteúdo de fé, como se o mundo não fosse cristão, e apresentar suas conclusões sem se imiscuir nos assuntos pertencentes à esfera de estudo dos mestres de teologia.

Essa solução lança, intencionalmente ou não, uma grave suspeita sobre a validade ou a utilidade da própria filosofia, além de implicar uma interpretação fideísta da Revelação. Nessa mesma época, entretanto, surge ainda uma outra possibilidade se fazer justiça às pretensões da filosofia e às exigências da fé. Ela estará plenamente desenvolvida no pensamento de São Tomás de Aquino.

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