domingo, 17 de janeiro de 2010

Duhem, Lakatos, teorias e anomalias

"Quando certas conseqüências de uma teoria são refutadas pelo experimento nós aprendemos que essa teoria deve ser modificada, porém não nos é dito pelo experimento o que deve ser mudado. Ele deixa para o físico a tarefa de encontrar o ponto fraco que atrapalha todo o sistema. Nenhum princípio absoluto dirige essa busca, a qual diferentes físicos podem conduzir em formas muito diferentes sem terem o direito de acusar um ao outro de ilogicidade. Por exemplo, alguém pode se obrigar a salvaguardar certas hipóteses fundamentais enquanto tenta restabelecer a harmonia entre as conseqüências da teoria e os fatos complicando o esquematismo no qual essas hipóteses são aplicadas invocando várias causas de erros e multiplicando correções. O outro físico, desdenhando tais complicados procedimentos artificiais, pode decidir mudar algumas das afirmações essenciais que suportam todo o sistema."

PIERRE DUHEM, The Aim and Structure of Physical Theory, pag.217


O que fazer quando as predições de uma teoria são refutadas pelos experimentos? Sem dúvida, essa é uma das questões cruciais da metodologia e da epistemologia. Ela é tão importante que suas implicações alcançam até a questão da possibilidade de uma demarcação entre ciência e pseudo-ciência.

Pierre Duhem demonstrou elegantemente que quando uma predição é refutada pelo experimento todo o sistema da teoria é abalado. Ou seja, como uma teoria é um conjunto logicamente ordenado de hipóteses, axiomas, condições iniciais e hipóteses auxiliares, uma predição deduzida desse conjunto, se falsa, implica na refutação do conjunto inteiro da teoria, pois é como um todo que ela é posta em teste.

Evidentemente não podemos dizer que cada hipótese e afirmação contida na teoria é falsa, mas podemos dizer que o conjunto é falso. E, desse conjunto, o experimento não nos diz qual afirmação ou hipótese é falsa. O problema pode estar em uma hipótese auxiliar, nas condições iniciais ou mesmo nas afirmações mais essenciais da teoria ou em leis aparentemente bem assentadas que lhe servem como background teórico.

A questão então será como lidar com essa anomalia experimental. Pode-se tentar consertar a teoria pela adição de hipóteses ad hoc, ou seja, hipóteses que têm por objetivo solucionar problemas específicos. Por exemplo, pode-se questionar os aparelhos de medição ou as teorias que sustentam os mesmos, postular a existência e atuação de forças além daquelas admitidas primeiramente pela teoria ou mesmo modificar asserções mais ou menos essenciais para a teoria.

O caso é que não há limite lógico para esses consertos na teoria. Assim, um cientista pode se aferrar a uma teoria refutada por experimentos o quanto ele quiser sem poder ser acusado de dogmatismo ilógico. Ele pode passar a vida a retocar sua teoria para fazê-la adaptar-se aos dados e nada o impedirá de continuar nessa busca indefinidamente.

Se a refutação de uma teoria pelo experimento implica somente que o conjunto dado que compõe a teoria está confutado sem com isso indicar qual de seus elementos constituintes deve ser modificado ou substituído, então o cientista deverá testar inúmeras modificações e novas configurações para solucionar o puzzle da adequação empírica.

Duhem admite que logicamente não há como restringir esse processo, mas assevera que em algum momento, pela ação do que ele chama de bom senso, a teoria indefinidamente retocada será por fim abandonada. Entretanto, nenhuma indicação de quando isso deve acontecer pode ser dada.

É Imre Lakatos que tentará fornecer um critério para a admissão de hipóteses ad hoc em teorias científicas. O filósofo da ciência defenderá que as teorias estão sempre diante de um mar de anomalias e que são justamente as modificações ad hoc que constituem um programa de pesquisas. Toda nova hipótese acoplada ao hard core (conjunto de afirmações básicas protegido da refutação) da teoria deve, para ser científica, apresentar um caráter de progressividade, ou em outras palavras, deve prever novos fatos.

Se um determinado programa de pesquisa sempre apresenta novas predições corroboradas pelos experimentos, então ele é progressivo. Se, pelo contrário, um programa de pesquisas não apresenta novos fatos além de seus sucessos antigos, então ele é um programa degenerativo.

O detalhe é que, ainda que se possa escolher um programa progressivo ao invés de um degenerativo, nada impede um cientista de fazer a escolha inversa. Isto pelo simples fato de que essa avaliação acerca da progressividade ou degeneração é sempre momenânea, histórica e tentativa. Não se pode dizer que um dia, por ação de mais modificações, um programa não possa se tornar de novo progressivo depois de um período qualquer de estagnação.

O fato é admitido por Lakatos que acrescenta que nenhum cientista pode ser considerado ilógico por se aferrar a uma teoria estagnada. Desse modo parece que, ainda que um critério de avaliação nos tenha sido dado, a situação permanece em essência a mesma daquela diagnosticada por Duhem.

...

Leia também:
(texto curto de Imre Lakatos sobre sua metodologia dos programas de pesquisa)

Nenhum comentário: