domingo, 2 de fevereiro de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos XII, XIII, XIV - singularidade e individualidade)

 
"O ser existente é aquele que existe fora de suas causas, que tem real atualidade, que está no exercício pleno de si mesmo, na sua atualidade e na sua potencialidade. É, portanto, singular já que nada pode ser termo de ação das causas, ser capaz de existência, senão o que é singular. Portanto, o indivíduo é um ente que não pode, pela mesma razão, ser dividido em muitos."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 81

Os temas do universal, da abstração e da contração tratados por Mário Ferreira dos Santos no capítulo XI conduziram à exposição das posições fundamentais que caracterizam o realismo moderado*. O problema que permanece é saber se há algum modo de existência dos universais fora dos indivíduos que os instanciam concretamente. A resposta parece ser negativa se assumimos que a existência pertence somente aos singulares, a este ente, hic et nuncirrepetível, e que exerce sua própria natureza independentemente dos outros seres.

Pedro é um indivíduo humano. Enquanto indivíduo, ele é uma possibilidade irrepetível que se atualizou, e que vai se esgotar tão logo tenha se extinguido. Enquanto humano, ele compartilha com João a humanidade, a unidade ontológica que constitui essencialmente os seres humanos, uma possibilidade repetível indefinidamente nos indivíduos. Quando nosso intelecto capta essa unidade, tem-se o universal, o esquema eidético-noético que pode ser predicado de todos os humanos.

O universal, portanto, não existe no sentido em que Pedro ou João existem. É certo que os indivíduos possuem as propriedades essenciais de sua espécie, e é certo também que a espécie jamais existe como um ente singular. A forma eidética da humanidade não é, e nem pode ser, um mero nada. Então, alguma realidade ela deve possuir antes da existência dos indivíduos que a instanciam no mundo. Caso contrário, tudo seria reduzido a singularidades.

Os singulares não são compreendidos a não ser pelas características que eles compartilham com outros singulares. Não há, e nem pode haver, uma ciência de Pedro, uma "Pedrologia", pois não há uma "pedreidade" que seja compartilhável por outros seres. Pedro é diferente de qualquer outro humano, e este Pedro é diferente daquele Pedro. A singularidade de Pedro é indizível em termos gerais. 

Ora, se todos os seres fossem absolutamente singulares, como queriam os nominalistas, seria impossível haver qualquer pensamento teórico, filosófico ou científico, como nos casos da Lógica, da Matemática, da Ontologia e da Matese. Tudo seria singularizado ao ponto que estaria confutada de antemão qualquer atribuição de um mesmo nome ou conceito a mais de um singular. A própria linguagem estaria impossibilitada, já que sempre nos referimos a características comuns aos entes. 

Não obstante, é igualmente impossível negar que os seres exibem semelhanças, e que estão estruturados segundo determinadas formas, tipos ou espécies. Captamos noeticamente esses esquemas eidéticos fundamentais nas coisas, e é isso que permite que compreendamos o mundo à nossa volta. Assim, se por um lado não conseguimos atribuir aos universais uma existência individual, por outro temos de admitir alguma realidade para o esquema eidético, que não pode ser um absoluto nada

O universal, na qualidade de esquema eidético-noético, é um ente de razão, e existe somente no intelecto. Fosse exclusivamente isso, não passaria de uma criação de nosso espírito. Todavia, possui fundamento na coisa, dado que reproduz um eidos compartilhado por uma determinada espécie ou tipo de seres. Então, há uma realidade que antecede e fundamenta ontologicamente a própria existência dos singulares. Onde se dá a realidade dos universais? Na mente divina, responderam alguns filósofos. Caso contrário, o nada seria a sua origem.

"A humanidade só existe enquanto existe uma humanidade individual (ex sistere, dar-se fora de suas causas). Sem a humanidade individual, ela seria aptitudinalmente uma forma em uma mente, já que seria impossível ser absolutamente nada. Necessariamente, há uma mente que antecede à do homem, porque se a humanidade há, ela não era absolutamente nada, mas algo que antecedia à do homem, já que este começou." (p.75)

O ente concreto, embora seja incomunicável naquilo que é singular, em alguma medida tem de se comunicar como parte de um Todo, a exemplo dos membros de um ser vivo. O aspecto afirmativo dessa incomunicabilidade é a sua singularidade, ele é este ente e não aquele outro. O aspecto negativo é que ao ser este ente, ele não pode ser aquele outro. Mário Ferreira observa que a incomunicabilidade não pode ser o princípio de individuação, isto é, aquilo pelo qual algo se torna um ente individual. 

Ser incomunicável é uma propriedade do indivíduo que se fundamenta no aspecto afirmativo da singularidade. Não é a incomunicabilidade que torna algo um indivíduo. É o indivíduo que por ser singular não é comunicável. Pedro é incomunicável porque é este ente, não é este ente porque é incomunicável. A individuação é positiva, põe algo na realidade, constitui a natureza de algo. Portanto, seu princípio não pode ser uma negação como a incomunicabilidade. A incapacidade de ser comunicável é o outro lado do fato positivo fundamental de ser um indivíduo. A afirmação precede ontologicamente a negação.

Além da incomunicabilidade, o indivíduo se caracteriza pela unidade (é um Todo), pela indivisibilidade (deixa de existir se for dividido), pela distinguibilidade (distinto de todo e qualquer outro ente) e pela irredutibilidade (não pode ser identificado à sua espécie e nem ao seu gênero). Pedro é um indivíduo que se distingue de João, e que compartilha da mesma humanidade de João sem ser idêntico a ela. Pedro é um synolon (σύνολον), um Todo informado e indiviso, concreto, com uma estrutura hilética e uma estrutura eidética, no qual se enraízam todas as suas potencialidades, as que já foram atualizadas, as que serão e as que não serão atualizadas jamais. 

Alguns tomistas defendem que o princípio de individuação é a materia signata quantitate, isto é, a matéria assinalada pela quantidade. Mário Ferreira discorda dessa tese, e levanta dúvidas sobre se Tomás de Aquino a teria realmente defendido. De todo modo, ele diz, a matéria não pode individuar porque a quantidade é um acidente necessário das coisas já informadas, é um fator cooperante da individuação. A matéria assinalada pela quantidade fornece às coisas materiais as suas medidas.

Que a quantidade seja necessária à individuação não se discute. A pergunta é se ela é suficiente para individuar os entes. Pedro e João certamente são numericamente distintos. Pedro é um e João é um. Cada um deles possui suas medidas próprias: João é mais alto que Pedro, etc. Tais aspectos quantitativos, em que pese serem necessários, segundo Mário Ferreira, já seriam distintos em Pedro e em João por causa da individuação, e não o contrário. 

Não é a quantidade enquanto tal que individua, pois a quantidade aqui (em Pedro) e a quantidade ali (em João) já se encontram individuadas. A quantidade é um acidente necessário do composto, e contribui para a individuação sem ser o seu princípio. O que individualiza é o composto. A matéria e a forma, consideradas ontologicamente, são fatores de universalidade, não individuam as coisas. Entretanto, quando consideradas ônticamente, ou seja, enquanto matéria e forma presentes neste composto (Pedro, por exemplo), são fatores cooperantes da individuação.

Na Tese 62 da Filosofia Concreta, Mário Ferreira explica que a aquilo por meio do qual uma coisa é singular, esta e não aquela, é a heceidade (haec, haecceitas), a unicidade que é incomunicável. As coisas têm em comum a unicidade formalmente, porém não a unicidade que singulariza. Os seres se determinam pelo gênero, pela espécie, pela individualidade e encontram sua última determinação na unicidade.

Em outros termos, o filósofo mostra que há uma contração na estrutura da realidade que vai do mais geral até o individual. O Ser é a generalidade mais universal possível, cabendo a todo e qualquer ente pelo mero fato de ser, sem determinar nada em seu conteúdo. Os seres encontram suas determinações, seus limites primários, no gênero ao qual pertencem (animal, por exemplo). E, dentro do gênero, são determinados pela espécie (racional), e na espécie são determinados pela unicidade que os torna indivíduos (Pedro). 

A individualidade é a determinação última, e, por isso mesmo, é incomunicável. Não existe e nem jamais existirá outro Pedro a não ser este Pedro. Não existe uma "Pedreidade" a ser compartilhada por outros homens. João não pode ser Pedro e vice-versa. Isso demonstra a distinção entre o indivíduo e a sua essência. Pedro repete a humanidade, o arithmos que também é compartilhado com João, mas o seu esquema concreto, que torna Pedro este (haec), é seu arithmos individual e irrepetível. "Os seres ontologicamente (no logos do ente) se repetem, mas são ônticamente (como entes) únicos".

Na Tese 167 da Filosofia Concreta, é dito no mesmo espírito que a essência de uma singularidade distingue-se do seu quid (quididade, essência), e que a natureza de uma coisa individual é o conjunto de todas as leis e de sua heceidade, o arithmos de sua singularidade. Ao ser este (haec), a essência e a existência se identificam ônticamente sem que se identifiquem ontologicamente. O ato de existir de Pedro é a efetivação de um indivíduo possível (Pedro). Somente nesse sentido, uma essência individual se identifica com uma existência individual. 

A sutileza consiste em encarar o indivíduo sob dois ângulos diferentes. Considerado ônticamente, no plano deste ente, a essência de Pedro é totalmente individualizada em Pedro, de tal modo que é possível falar de uma "essência individual" que pertence única e exclusivamente a Pedro. Assim, a essência de Pedro é ele mesmo existindo como Pedro. Considerado ontologicamente, a essência de Pedro não é idêntica a ele no sentido de que Pedro é um indivíduo que repete (ou imita) uma Forma, a humanidade, que é repetida igualmente por outros (João, Maria, Carlos, etc.).

O termo essência (ou o ser da coisa) adquire dois sentidos diversos, porém intimamente ligados. No primeiro, refere-se à Forma, ao esquema eidético, que é repetido nos indivíduos, e que fornece a eles os aspectos determinantes de sua espécie, do tipo de ser que eles são. No segundo, refere-se à individualidade, a este ente singular que é irrepetível e incomunicável, no qual a espécie está contraída, e da qual se distingue ônticamente, mas não ontologicamente. 

Os dois modos são reais e válidos, não havendo contradição entre eles. Por um lado, o indivíduo só pode existir repetindo (sendo uma instância de) uma espécie. Pedro só existe como ser humano. Por outro lado, o ser humano (a humanidade) só pode existir nos indivíduos que exemplificam concretamente o que é o ser humano. Os seres humanos são sempre Pedro, Maria, Carlos, etc. A essência de Pedro corresponde, portanto, a esses dois sentidos. Convém distingui-los sem jamais separá-los absolutamente quando consideramos o indivíduo.

Retornando ao livro A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro sumariza sua tese afirmando que "cada coisa individualiza-se por si mesma, e não precisa de nenhum princípio de individuação, senão a sua própria entidade. (...) Não há princípio de individuação fora do próprio ser. A individuação de um ser começa no próprio ser, começa na sua individualidade. Não se pode colocar esta matéria de outro modo." (p. 84)

A matéria assinalada pela quantidade é um fator de individualidade, mas não pode o ser exclusivamente. Se há seres imateriais individuais (anjos, por exemplo), então a matéria somente contribui, por meio da distinção quantitativa, na individuação dos seres materiais. A individualidade de Deus não é material ou quantitativa, ela se segue de sua absoluta infinitude. Não pode haver outro que seja igualmente infinito, caso contrário haveria uma contradição. Sob essa ótica, Deus é o indivíduo perfeito.
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Leia também: 
Capítulos anteriores de A Sabedoria da UnidadeΝεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
Comentário completo de A Sabedoria dos PrincípiosΝεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios

sábado, 11 de janeiro de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro V) - sobre o Ser

 

"Agora devemos proceder ao nome de 'Ser', o qual é verdadeiramente aplicado pela Ciência Divina a Ele que é realmente. Porém, e isso deve ser dito, não é o propósito de nosso discurso revelar o Ser Supraessencial em Sua Supraessencial natureza (pois é indizível, incognoscível e transcende a Unidade), mas somente celebrar a emanação da Absoluta Essência no universo das coisas."

DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, Livro V, 1

No Livro V de Os Nomes Divinos explica-se por qual razão o Ser, tão importante na filosofia grega desde Parmênides, em especial no platonismo/aristotelismo, é um dos nomes atribuídos a Deus. Seguindo a tradição neoplatônica, Dionísio esclarece de início que não pretende expressar a natureza divina em si mesma, pois ela é supraessencial (ὑπερούσιος), acima de toda e qualquer essência (οὐσία). A piedade (εὐσέβεια) exige que se respeite o inefável, o indizível (άρρητων) do mistério divino.

Ora, o que é possível afirmar sobre Deus é o que conhecemos a partir das coisas, sabendo que Ele as transcende infinitamente. Então, conhecemos mesmo o Ser na qualidade de uma emanação da natureza divina nos seres limitados. Nosso conceito ordinário de existência não alcança a maneira simples e indefinível na qual Deus existe, abarcando e antecipando todos os existentes em Si mesmo.

O Eterno antecede todas as coisas não no tempo, como algo que vem antes de outro, mas na qualidade de seu fundamento último e imutável. Deus recebe o nome Ser porque a existência é o primeiro dom que Ele concede às coisas. Quaisquer outros princípios ou características dos seres necessitam primeiro existir. Um gato existente possui todas as qualidades e propriedades comuns ao tipo de ser que ele é, porém antes de existir como gato, ele precisa existir. Óbvio, o seu ato de existir e o seu ser gato não se separam temporalmente, mas o ato de existir tem prioridade metafísica com relação a seu ser gato.

Os universais assim como os entes singulares têm na existência a qualidade primordial da qual participam, ensina Dionísio. Deus contém todas as coisas semelhantemente à unidade que indivisivelmente contém e antecede todo e qualquer número. A unidade é o princípio no qual os números estão contidos como possibilidades, e que se tornam atuais quando repetem limitadamente a unidade formando uma multiplicidade qualquer. Não obstante, a unidade permanece a mesma sem sofrer qualquer mudança.

Todos os raios de todas as circunferências possíveis estão contidos no centro adimensional, e só existem atualmente com referência a ele. O ponto central é o princípio que os antecede nele mesmo sem que jamais sofra qualquer mudança. Se retornamos do raio de uma circunferência existente na direção do centro, passamos por indefinidos raios de circunferências possíveis, todas igualmente contidas no ponto central do qual elas poderiam partir.

"E, então, não é surpreendente que, quando ascendemos das imagens obscuras à Causa Universal, contemplemos com olhos sobrenaturais todas as coisas, inclusive as que são mutuamente contrárias, existindo como uma  indivisa Unidade na Causa Universal." (V,7)

O trecho acima repete o tema constante no platonismo do conhecimento que parte das imagens (εἰκασία) e da opinião (δόξα), ascende ao pensamento calculativo (διάνοια) e alcança a ciência (ἐπιστήμη ou νόησις) das Formas (ἰδέα) eternas. Ultrapassando as Formas, chega-se à ideia do Bem (Ἀγάθων), origem e fundamento daquelas. Dionísio dá à ascensão um sentido precipuamente ontológico. Subindo a partir dos sensíveis, a alma reconhece que as coisas inferiores estão contidas nas realidades que lhes são superiores, e estas, assim como todas as possibilidades não efetivadas, residem na fonte última e absoluta de todo e qualquer ser.

Tudo provêm do Uno (ou Bem), ensinava Plotino nas Enéadas, alguns séculos antes de Dionísio. As Formas são traços do Uno, e, em conjunto, formam o paradigma eterno em imitação (μίμησις) do qual é feito este Cosmos sensível das coisas cambiantes e perecíveis. Ora, o Cosmos contém contrários que são ordenados numa harmonia. O Uno, o poder supremo, contém em si eminentemente todas as coisas, mesmo aquelas que são mutuamente contrárias. 

A mesma doutrina será exposta por Nicolau de Cusa, quase um milênio depois, na sua obra A Douta Ignorância. As coisas residem em Deus, enquanto possibilidades, numa coincidentia oppositorum, coincidência dos opostos. Não há contradição porque ali as coisas são meros possíveis dentro da Possibilidade Absoluta. Todos os raios de todas as circunferências possíveis estão contidos no seu centro, o ponto adimensional do qual partem, em referência ao qual eles existem, e para o qual retornam.

"Pois Ele não é isto sem ser aquilo, nem deve Ele possuir este modo de ser sem aquele. Ao contrário, Ele é todas as coisas enquanto causa de todas elas, possuindo e antecipando Nele todos os princípios e todos os fins de todos os entes. Está acima de todos eles porque, sendo-lhes anterior, transcende-os supraessencialmente. Por isso todos os predicados podem ser a Ele atribuídos simultaneamente, ainda que Ele não seja algo." (V,8)

Enquanto causa de tudo, e contendo em Si tudo o que há e pode haver, Deus não pode ser isto ou aquilo. Ser algo, não importa o que esse algo seja, significa ser limitado, pois ser um humano necessariamente exclui a possibilidade de ser um gato. Dionísio não está dizendo que Deus é um gato ao mesmo tempo que é um homem. Não se trata tampouco de um panteísmo, a afirmação de que tudo é Deus. As coisas não são Deus, mas Ele é todas as coisas no sentido de que as contém na qualidade de causa e princípio universal.

Ele é todas as coisas porque é o princípio das possibilidades do que pode ou não haver no mundo. Nesse sentido, e somente nesse sentido, podemos atribuir-Lhe todos os predicados que encontramos nas coisas. Mas isso não faz com que Ele seja algo. este ente e não aquele. Então, num aparente paradoxo, Deus possui todos os nomes e nenhum deles. Quando a alma ascende até o Princípio derradeiro, contempla ali tudo o que há e pode haver numa unicidade suprema anterior a qualquer identidade, diferença e multiplicidade, e percebe que tudo pertence a Ele sem que Ele se identifique com nada em particular.*

Plotino, nas Enéadas, admite que essa experiência, enquanto dura, não pode ser dita, nem há tempo para fala. Só depois se consegue raciocinar sobre ela. Não obstante, naquele momento, a alma iluminada tem completa confiança da presença do Uno. Não é possível dizer nada justamente porque ali não há nada distinto, separado, identificado como isto ou aquilo. Só há o Absoluto na sua unicidade originária  incompreensível a qualquer ser limitado.

"Quando é iluminada, a alma possui o que buscava, e esse é o seu fim real: entrar em contato e ver essa luz por ela mesma, e não por qualquer outro, enxergar aquilo mesmo que torna possível que ela enxergue. Pois os meios de sua iluminação é o que a alma deve ver. Não vemos o Sol pela luz de outra coisa. Como, então, isso (essa experiência) se dá? Faça abstração de tudo." (Enéadas, V, 3 - 17)

A alma vê o Sol por meio do qual as coisas podem ser vistas. Dionísio usa também a analogia do Sol e diz que, embora permanecendo um, ele lança uma luz indivisa que faz aparecem as coisas, age sobre elas nutrindo-lhes, renovando-lhes, guardando-lhes, atualizando-lhes, fazendo-lhes crescer, mudar, frutificar, viver. Se o Sol contém antecipadamente nele mesmo na forma da unidade as causas das coisas que participam dele, Deus contém eminentemente tudo, inclusive as Essências das coisas existentes, em uma Unicidade Supraessencial.

Ele está presente em todas as coisas tal qual o som que permanece inalteradamente um e o mesmo apesar de ser ouvido por muitos. Porém, nenhum conceito e nenhuma medição interiores a este mundo, que tem a sua origem e sua sustentação Nele, podem ser aplicados adequadamente ao Princípio que é também o Fim de tudo. Segue-se disso que nem o nome Ser pode ser atribuído a Ele, e se o chamamos assim é porque o ser ou a existência é o dom primordial que todos os entes recebem ao entrar na realidade.

Deus está acima do próprio Ser se considerarmos que o Ser é o princípio que torna as coisas existentes como isto ou como aquilo, já sob as condições da identidade e da diferença. Portanto, o Ser é o princípio da limitação e da multiplicidade. Plotino considera o Ser (ou o Nοῦς) o começo de toda a multiplicidade, o Um-Muitos, pois nele se encontram reunidas todas as Formas, os verdadeiros Seres. Acima do Ser só há o Uno absoluto sobre o qual só é possível falar negativamente.
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* O mesmo tema é apresentado no Corpus Hermeticum, obra fundamental da tradição hermética: 
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aristóteles, Física e a natureza do vazio (Livro IV) - parte 1

"Aqueles que sustentam que o vazio existe o concebem como um tipo de lugar ou recipiente que estaria pleno quando contivesse todo o volume de que é capaz, e vazio quando estivesse completamente desocupado."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 6, [15] (itálicos meus)

O corpo que está em outro corpo independente dele está em um lugar. As coisas podem estar num lugar potencialmente ou atualmente. Quando há uma substância homogênea contínua, as suas partes estão potencialmente em lugares. A razão é que as partes de um Todo não são partes que existam de forma independente e separada, então não podem por elas mesmas ocupar algum espaço. Ao passo que o Todo está localizado por ser uma substância una e contínua. 

Todo contínuo é uma extensão, então possui partes extra partes, um ponto qualquer é seguido sem descontinuidade por outro ponto contíguo de mesma natureza. Um livro é um objeto extenso, e qualquer porção de sua superfície que se queira apontar é contiguamente seguida de outra porção até que os limites do livro sejam alcançados. O contínuo homogêneo caracteriza-se pela uniformidade material. Uma barra de ferro é inteiramente constituída de ferro.

As partes do contínuo homogêneo só são partes potencialmente, não são entes substanciais e independentes unidos uns aos outros formando um Todo artificial. Se as partes são realmente separadas e independentes, embora unidas por contato, como no caso do feixe de gravetos ou das peças de um mecanismo, as partes são atuais e, por conseguinte, estão atualmente em lugares diferentes. Nesse caso, o feixe considerado com um Todo está num só lugar, mas dada sua composição acidental, são as suas partes que estão cada uma delas em lugares diferentes.

Algumas coisas estão per se num lugar, caso dos corpos que se movem localmente ou que sofrem diminuição ou aumento. O Céu, contudo, não está em nenhum lugar considerado como um Todo. Aristóteles refere-se ao Céu na qualidade de envoltório último dentro do qual todas as coisas materiais estão, e que não está contido em nenhum outro corpo maior que ele. O Cosmo grego antigo terminava nos Céus, para além do qual nada havia. 

A fim de compreender o que Aristóteles quer dizer basta que se entenda que, independente de quais sejam seus limites, o universo tomado como um Todo não está em nenhum lugar. Se assim podemos definir a tese, o continente universal não está contido noutro continente. O Céu não se encontra em nenhum lugar, mas suas partes sim, na medida em que uma não é a outra. Cada coisa localizada tem outra que é contígua a ela, e o Céu, sendo o Todo, não tem nada contíguo a ele.

Aristóteles em seguida indica as considerações que resolvem todos os problemas concernentes ao lugar. Não é necessário que o lugar cresça com o corpo que ele contém, nem que o ponto esteja num lugar, nem que dois corpos ocupem o mesmo lugar, nem que este seja um intervalo corporal. O lugar só pode estar localizado no sentido de que o limite está no limitado. Os corpos possuem seus lugares naturais para os quais se dirigem quando não são impedidos e nos quais permanecem se dali não são retirados violentamente.*

Após discutir os problemas relativos ao lugar, ao físico cabe examinar o vazio (κενός): se existe, como existe e qual sua natureza. Alguns defendem que se trata de uma espécie de lugar ou recipiente que seria capaz de conter as coisas, cheio quando estas estão nele, e propriamente vazio quando está privado delas. Dentre as opiniões relevantes, alguns tentaram negar a sua existência argumentando que o ar está presente mesmo quando um lugar é esvaziado. Essa estratégia não funciona porque o que querem dizer os defensores do vazio é que existe um intervalo privado de qualquer corpo sensível. 

O que deve ser provado pelos negadores do vazio é a inexistência de um intervalo diferente dos corpos, separável ou atual, que os divide interrompendo sua continuidade, talvez algo que existe fora de todo corpo. Os defensores argumentam que o movimento local e o crescimento não seriam possíveis se não houvesse algum espaço sem corpos para onde eles poderiam mover-se ou aumentar. Na ausência do vazio, os corpos estariam todos em contato imediato uns com os outros, de modo que cada um deles ficaria para sempre preso ao lugar onde está, cercado por outros corpos.

Aquilo que está pleno não pode comportar a adição de mais nada. Se no mundo só houvesse corpos seria impossível que algum deles se movesse localmente ou que aumentasse sem que isso implicasse estar no mesmo lugar que outro corpo. Caso se admitisse a possibilidade de ocupação de um mesmo lugar por mais de um corpo, a consequência lógica seria a impossibilidade de determinar quaisquer limites dos corpos. Um mesmo lugar seria ocupado simultaneamente por tantos corpos quanto se quisesse, já que seus limites não implicam impenetrabilidade.

vazio é condição necessária para haver movimento. Sendo evidente que há movimento, então a sua conditio sine qua non tem que ter sido satisfeita. Portanto, o vazio existe. Ademais, a compressão e a contração que exibem certos corpos só são explicáveis pela existência do vazio. O crescimento não aconteceria se não existisse o vazio, dado que a nutrição é corpo e dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar

Os defensores da existência do vazio assumem que o que existe é corpo, que o corpo é tangível, leve ou grave, e está num lugar. Seguindo essas premissas, Aristóteles pergunta se um intervalo com cor ou com som poderia ser considerado vazio, uma vez que não haveria nada ali tangível. Alguns identificam o vazio com a matéria, mas esta é inseparável das coisas e a questão é justamente saber se o vazio possui alguma existência separada (χωριστόν). 

Se o vazio é um lugar desprovido de corpos, e já foi determinado o que é o lugar, e em qual sentido ele existe, então a conclusão é que o vazio não existe nem como coisa separada e nem inseparada. Aristóteles pensa aqui no sentido de existência própria, substancial (οὐσία), separada ou separável (χωριστόν) e independente. O vazio não é algo substancial separado dos corpos da mesma forma que o lugar não o é. A definição de vazio é de algo que não é corpo, e sim intervalo no corpo. 

O erro dos defensores da existência do vazio é concebê-lo ao modo daqueles que acham que o lugar é algo que existe além e independentemente dos corpos que podem ocupá-lo. Assim, entendem que se a locomoção precisa do lugar, então o vazio deve existir. Considerando que o lugar não é mais do que o limite imóvel mais interno do corpo continente, o argumento perde toda a sua validade. 

Erram também na crença de que o vazio é condição necessária para o movimento. Escapou-lhes o fato de que essa não é uma condição para todos os seus tipos, já que o pleno pode sofrer alteração. Cumpre recordar que para Aristóteles a aquisição ou a perda de qualidades também é um tipo de movimento ou mudança (κίνησις). Nada impede, por conseguinte, que haja movimento no pleno sem a necessidade do vazio. Por exemplo, o vinho que ocupa totalmente uma garrafa pode virar vinagre sem que haja o vazio.

A questão seguinte é saber se para as mudanças local e de crescimento é indispensável a existência do vazio. A resposta é negativa. Para que a mudança de lugar aconteça basta que os corpos substituam-se uns aos outros, o que não exige nenhum intervalo separado entre eles. A rotação das coisas contínuas, como os líquidos, exemplifica essa verdade. Aristóteles aparentemente se refere ao redemoinho ou ao movimento giratório da água num recipiente. Em ambos, as partes do líquido cedem seu lugar às anteriores e ocupam o lugar das posteriores sucessivamente sem que nenhum intervalo se interponha entre as partes. 

Tomás de Aquino, em seu comentário à Física, apresenta uma interpretação diferente dessa passagem:

"Isso é evidente na geração dos corpos contínuos, especialmente nos líquidos, como é visto no caso da água. Pois se uma pedra é lançada em uma extensão grande de água, está claro que alguns círculos desenvolvem-se em torno do lugar da percussão de modo que uma parte da água deslocada move outra e a substitui. Dado que uma parte menor de água entra numa parte maior por uma certa difusão, os círculos acima mencionados procedem do menor ao maior até serem totalmente dissipados."

A interpretação de Tomás não menciona a rotação do líquido. Em que pese as ondas deslocadas na água pelo arremesso da pedra serem círculos concêntricos, elas não giram em torno de um centro como no caso de um redemoinho. Por outro lado, o exemplo dado por Tomás está de acordo com o argumento central exposto por Aristóteles na medida em que as ondas sucessivas substituem-se sucessivamente, uma empurrando a subsequente e tomando seu lugar até a dissipação. 

A compressão acontece, no caso da água que entra num recipiente, pela expulsão do ar que ali se encontrava sem que a existência de nenhum vazio precise ser postulada. O aumento de tamanho não acontece somente pela adição de um corpo a outro corpo, mas também por mudança qualitativa. A água que se transforma em ar aumenta a sua ocupação de lugar, por exemplo. Quanto à nutrição, Aristóteles responde melhor a questão no seu Geração e Corrupção, onde argumenta que o alimento transforma-se na substância do ser vivo.

Os argumentos até aqui apresentados pelos defensores do vazio não se sustentam, diz Aristóteles. Os casos de aumento de tamanho e das cinzas que absorvem tanta água quanto é capaz o recipiente no qual ela é depositada, o mesmo tipo de respostas pode ser dado. Nem toda e cada parte do corpo precisa ter aumentado, o aumento pode ser devido não à adição de partes e sim à mudança qualitativa, pode haver dois corpos no mesmo lugar (essa dificuldade não estabelece a existência do vazio). Se o corpo todo aumenta por causa do vazio, então o corpo inteiro é vazio. E se um recipiente com cinzas comporta a mesma quantidade de água que comportaria se estivesse desocupado, então o todo (recipiente e cinzas) deve ser o vazio.

Os corpos possuem movimentos naturais, o fogo sobe na direção do céu, a terra desce na direção do centro do universo, etc, e são essas tendências intrínsecas aos corpos as reais condições do movimento local, não o suposto vazio. Ademais, não havendo corpos no vazio, um corpo poderia ocupar todo o lugar onde está? Viu-se anteriormente que o lugar é o limite imóvel mais imediato do continente, e que o corpo e o lugar onde ele está coincidem. No vazio não há limites corporais, o que impossibilita que um corpo coincida inteiramente com o seu lugar. 

Outrossim, não é possível no vazio que um corpo esteja em movimento ou em repouso, nem que ele suba ou desça. A locomoção é a mudança de lugar, o repouso é a permanência num lugar. O vazio não admite corpos, portanto não admite limites. Sendo assim, um corpo não pode mudar de lugar ou permanecer nele. Se não há nada, fica impossível determinar algo que seja externo ao corpo e no qual esteja posto ou para o qual se dirija. O mesmo se aplica aos lugares naturais. Se o lugar é o vazio, o fogo sobe na direção do quê?

O vazio não admite diferenças, por conseguinte inexiste um lugar diferente de outro. Nessa absoluta indistinção, um corpo não pode mudar deste lugar por preferência a outro, nem se dirigir a este lugar e não àquele outro. Tudo é indiferente, resultando daí que o corpo permaneceria para sempre estacionado. Isso também não é possível, dado que o repouso implica a ocupação de um lugar, o que é negado pelo vazio.

O movimento violento depende do movimento natural das coisas. No vazio não haveria movimento natural pela razão aduzida acima. A ausência de diferença é uma privação, não um ente. Na indistinção absoluta não haveria qualquer lugar para onde os corpos se dirigiriam preferencialmente. Sem o movimento natural o movimento violento não existe. Toda ação externa e violenta pressupõe as tendências naturais dos corpos. 

Eliminada a moção natural, a moção violenta é concomitantemente eliminada. Essas condições impossibilitariam o arremesso de um disco, por exemplo. Arremessar um disco é agir violentamente em algo cujo movimento natural é descer e repousar no solo. Seguindo o que foi visto, no vazio não existem lugares preferenciais para os quais os corpos se dirijam ou nos quais permaneçam. Desse modo, a inexistência das tendências naturais do disco impede que qualquer moção que viole essas mesmas tendências aconteça. Não é possível violar o que não existe.

(continua em postagem futura)
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* Violência é a ação externa contrária à natureza e às inclinações intrínsecas de uma coisa. Por exemplo, se o lugar natural dos corpos graves é a terra (ou o solo), então impedir que um grave alcance seu lugar ou, se ele já estiver em repouso, retirá-lo de seu lugar, corresponde a violar suas tendências naturais. Tão logo a ação violenta cesse, o corpo voltará a seu movimento próprio. A natureza descensional de certos corpos foi denominada gravitas (gravidade), termo que antecede de muito a física de Isaac Newton. 
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