quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo II)

"Onde há propriedades de alguma coisa, há alguma coisa, onde há unidade há ser, onde há ser há unidade. Um ser, sem unidade, seria um ser que não é o que é. Nesse caso, seria nada."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, "A Sabedoria da Unidade", p. 11

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, no início do capítulo II de sua obra matética "A Sabedoria da Unidade", retoma o que foi dito no capítulo precedente (Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I) (oleniski.blogspot.com), afirmando que não se pode confundir os diversos logoi da unidade. O logos da unidade em geral (de toda e qualquer unidade) não pode ser confundido com o logos desta unidade (uma maçã, por exemplo), que é um composto (synolon, σύνολο) de uma estrutura eidética (eidos, εἶδος, Forma) e de uma estrutura hilética (hylé, ὕλη, matéria), e nem confundido com a tensão como esforço de coerência entre as partes de um Todo.

Logos da unidade ≠ Logos desta unidade (composto de estrutura eidética e estrutura hilética)  Logos tensional (esforço real de coerência)

Todos esses logoi residem no Ser, e este é a atualidade (Ato, aquilo que é) sem deficiência, o Ser Supremo. Não pode haver outro princípio supremo que o Ser, pois tudo o que é, foi ou pode ser reside e tem sua origem no ato de Ser. O Ser é a absoluta simplicidade, dado que tudo o que é múltiplo tem ser, tem realidade. Mas o múltiplo pode se dissociar e se decompor, contudo permanecendo as partes que o compunham como entes no Ser. Assim, para que multiplicidade exista, é preciso que as partes, estando associadas ou dissociadas, tenham realidade, façam parte do Ser.

O Ser não se multiplica, como se fosse cortado como um bolo em que os pedaços cortados diminuem a quantidade do bolo restante. Ao contrário, a presença do Ser não é quantitativa. Todo o ser que existe, que possui alguma realidade, possui em si mesmo o Ser na sua integralidade como seu fundamento. Da mesma forma, se o Ser está presente em tudo de modo absoluto e simples, não divisões internas no Ser, nem passagem temporal. Ao contrário, são as coisas, ao durarem, ao permanecerem no Ser, que estão no tempo.

O Ser não sofre mutações ou mudanças, pois como mudaria para algo que não fosse o próprio Ser? Mudaria para o Nada? Mas, o Nada não existe, e nem pode existir, uma vez que o Nada é a absoluta ausência de Ser, seja potencial ou atual.*

Os logoi são reais, não são invenções da mente humana. Contrariamente aos nominalistas, que restringem os universais à representações mentais, o realismo moderado, que Mário Ferreira esposa, afirma que há um fundamento in re (nas coisas) para os conceitos que concebemos. Se não houvesse esse fundamento, os conceitos seriam meras ficções. E se os conceitos possuem fundamento in re, apontam para alguma positividade, para algo que é um alius (outro), para uma presença que, por conseguinte, nega a ausência de realidade.

A unidade, diz Mário Ferreira, é clusa (do latim, claudo, tapar, fechar, encerrar), pois ela fecha algo, inclui nela o que é a coisa e exclui aquilo que não é (inclusão e exclusão). Em outros termos, a unidade fecha em si mesma tudo aquilo que é real sobre algo, e, consequentemente, expulsa de si, como o outro (aliud), tudo o que não pertence à sua clausura. Aquilo que a unidade inclui pertence à ela in se, o que implica que não haja divisão interna à unidade.

O que a unidade inclui é idêntico (idem, no latim; autos, no grego) à ela mesma, e é outro (alter, no latim; allós, no grego) para tudo aquilo que lhe for diferente. Toda unidade, com relação a uma unidade diferente dela, é outra que outra, isto é, não pode ser idêntica a qualquer outra, sendo por isso sempre a outra de uma outra unidade.

Tudo aquilo que possui alguma positividade, tem algum ser, tem alguma realidade. E, sendo algo positivo, pelo ato mesmo de ser algo real, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. Algo que é X, no ato mesmo de ser X, nega todas as possibilidades de Não-X, sejam elas A, B, C, D, etc. Tudo o que não seja X, será diferente de X, será outro que X. 

Só se pode captar aquilo que possui alguma realidade, alguma positividade. A ausência de uma positividade é o não-ser, e este não pode ser captado, dado que não possui em si nenhuma positividade. Quando tratamos de uma ausência, não captamos algo, só fazemos referência à falta de algo. Assim, é somente por referência ao positivo que podemos nos referir ao não-positivo, ao negativo, ao que não é, ao que não existe.

A divisão ocorre justamente quando há ausência de uma positividade em que está presente em Y. Por exemplo, basta que percebamos que uma maçã é colorida para sabermos que ela é diferente de um conceito, que não possui cor. Ambos possuem positividade, cada um a seu modo, mas o que está presente em um e ausente no outro é o que os torna diferentes. Só posso distinguir as coisas se encontro nelas alguma diferença, alguma positividade que está presente em uma e não na outra.

"O que é um é outro que outro, e o mesmo que si mesmo", afirma o filósofo brasileiro. É preciso ver na fraseologia de Mário Ferreira, que parece somente reafirmar coisas que são óbvias, o esforço de esclarecer, dentro do âmbito da linguagem, o que está no fundamento da própria linguagem. Não à toa, por ser um esforço de reconhecer e de apresentar os fundamentos da realidade, a linguagem parece dar voltas em torno de si, tentando morder a própria cauda como uma serpente.

Em certo sentido, a identidade é indizível, e todo esforço de dizê-la esbarra em dificuldades imensas. A identidade é tão fundamental que não conseguimos representá-la a não ser pela linguagem do múltiplo. Representamos a identidade pela fórmula lógica A=A. Ocorre que, ao igualarmos um A a outro A, querendo representar a identidade, fazemos uso da diferença. Não obstante, ninguém consegue realmente negar a realidade fundamental da identidade, isto é, o ser isso que se é e não outra coisa.

Como a linguagem depende do Ser e o Ser é unidade, não é de se surpreender que aquilo que é derivado seja, em alguma medida, incapaz de expressar o seu próprio fundamento. Mário Ferreira quer expressar aqui o caráter absolutamente fundamental da unidade. Não é o um que nasce do múltiplo. É o múltiplo que, ontológica e logicamente, é subordinado ao um. 

A unidade é também uma estrutura, ou, como Mário Ferreira denomina, uma tectônica. A razão disso já foi exposta anteriormente. A unidade pode ser composta interiormente, isto é, compreender em si um conjunto de positividades, ou pode ser absolutamente simples. A unidade absolutamente simples corresponde ao Ser, cuja simplicidade decorre do fato de que nada há que seja oposto ao Ser, ou diferente dele, enquanto fundamento de tudo o que é e pode ser.

A unidade é composta interiormente quando reúne em si as positividades essenciais de um certo ente. Toda maçã possui as mesmas características (cor, cheiro, tamanho, sabor, etc.) que, embora sejam diferentes entre si, compõem uma unidade que é mais do que a soma dessas características, e se constitui em um Todo. Embora múltiplo internamente, o Todo é Um, uma unidade indivisa, invariável e coerente. 

Mário Ferreira mostra que há aqui cinco esquemas fundamentais:

1) Ser, que é positividade, afirmação positiva;

2) Não-ser, recusa de positividade, negação;

3) Unidade, que é indiviso in se e divido ab alio, isto é, indiviso em si e distinto de outro;

4) Divisão idem et alter, o si mesmo e o outro;

5) Multiplicidade, que é o outro que outro.

Note-se como esses esquemas se encadeiam do fundamental até o fundamentado. Em primeiro lugar, há que haver a positividade. Algo deve ter presença, ou, de acordo com o que o princípio da Filosofia Concreta afirma, algo há. A primeira evidência insofismável é que alguma coisa existe. Seja o que for essa coisa que existe, ao existir, afirma-se a si mesma, e, por isso mesmo, nega tudo o que não é ela ou poderia não ser ela. Desse modo, ao ser X, exclui-se ontológica e logicamente tudo o que é não ser X.

Não ser X é negar a positividade de X, ou seja, significa não possuir em si mesmo todas as positividades que caracterizam X. Nada impede que haja coincidência parcial, que um não-X possua algumas das positividades de X. Mas pelo próprio fato de que não há coincidência total, algo está ausente em não-X que está presente em X. 

Havendo X, afirma-se uma unidade, e é enquanto unidade que X se distingue de não-X. Considerado como um Todo, X é indiviso em si. Sendo indiviso como uma unidade de composição, X necessariamente está dividido (é diferente) de toda outra unidade de composição que não seja X. Ele é idem para si e alter para outro. A multiplicidade, portanto, só pode ter o seu fundamento na unidade, dado que aquilo que é positivo em uma unidade e que está ausente em outra é que determina a divisão.

Toda divisão está ligada ao não-ser relativo, ou seja, ao fato de que toda ausência é relativa a uma positividade. A unidade, contudo, pode ser absoluta, uma vez que o Ser é a unidade simples que reúne em si toda e qualquer positividade sem nenhuma diferença.

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* Para uma discussão mais detalhada da unidade absoluta do Ser, recomenda-se a leitura das obras "Filosofia Concreta" e "Filosofia da Crise". 

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Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de natureza

"Seria absurdo tentar provar que a natureza existe, pois é evidente que há muitas coisas desse gênero. E provar o que é evidente por meio do inevidente é a marca do homem incapaz de distinguir o que é certo daquilo que é incerto."

ARISTÓTELES, Física, livro II, parte 1, 193a

No âmbito da Física, das coisas que existem, algumas existem por natureza e algumas por outras causas. Aristóteles, já no início do livro II, apresenta sua distinção fundamental entre aquilo que é natural e aquilo que é artificial. Entes que existem por natureza, são, por exemplo, os animais as plantas e os corpos simples (terra, fogo, ar e água). O que reúne todos esses entes é o fato de eles possuem "dentro de si" o princípio de suas mudanças e de seu repouso (local, de crescimento, decréscimo ou alteração).

O animal move a si mesmo, a planta cresce por si mesma, o fogo se dirige para o alto, assim como a terra se dirige para baixo. Em todos esses casos, não há nenhuma interferência externa para que essas operações aconteçam. Elas nascem, por assim dizer, "de dentro" desses entes sem que nenhuma ajuda exterior seja necessária. Isso significa que as operações de um ser natural se devem exclusivamente a tendências intrínsecas àquele ser, e que variam segundo o tipo de ser que ele é.

As chamas do fogo, não havendo obstáculos, sempre sobem. Uma pedra, se retirada do chão e depois deixada a si mesma, desce na direção do solo. As plantas crescem e se nutrem. O animal, além de crescer e se nutrir, também se locomove e possui apetite. Todas essas operações acontecem como manifestação de uma tendência que é interior a esses entes. Nenhuma delas é produto da ação causal de um ser externo agindo sobre eles.

O traço definidor daquilo que é natural é justamente esse caráter intrínseco das operações típicas dos entes naturais. Em outro sentido, a natureza de um ser define o conjunto de potencialidades que ele possui simplesmente por ser aquele tipo de ser. A planta possui um conjunto definido de características que lhe pertencem simplesmente por ser planta. Ela só pode realizar aquilo que está contido na sua natureza. A planta pode crescer, mas não pode voar.

A natureza, então, é "a fonte ou a causa de ser movido e de estar em repouso naquilo que pertence a ele primariamente, em virtude de si mesmo e não em virtude de um atributo concomitante". O ente natural tem em si mesmo, não em outro, o poder de mudar. Uma mesa, au contraire, não possui o poder de mudar por si mesma. Aliás, o seu próprio vir a ser, isto é, sua vinda à realidade, se dá justamente pela ação transitiva de uma causa que lhe é externa, o carpinteiro, que junta partes materiais independentes segundo um plano ou uma ideia que é externa e sem relação com o material empregado. 

Obviamente, as coisas naturais também possuem causas externas. Um animal só vem à realidade pela ação causal de seus progenitores. O fogo tem que ser aceso por alguém ou por algo. O ponto de distinção entre o natural e o artificial reside na espontaneidade intrínseca e regular da mudanças que o ser natural apresenta. A distinção não está em ter ou não uma causa para a sua existência, mas, sim, no tipo de ser que o ente natural é.

Aristóteles acrescenta que o ser natural é uma substância (οὐσία), aquilo que, groso modo, existe por si mesmo e não em outro. O ser natural possui nele mesmo o seu "princípio ordenador", que define o tipo de ser que ele é. A natureza, consequentemente, além de ser um princípio intrínseco, define o que é a coisa. Por isso, perguntar sobre a natureza de algo é perguntar o que é a coisa. Saber o que é uma coisa é saber um conjunto essencial de características fixas que são intrínsecas a essa coisa e que permitem identificar ou antecipar as capacidades e as incapacidades que se seguem desse conjunto.

Em seguida, o filósofo macedônio afirma que o termo "de acordo com a natureza" é aplicado a todas as coisas e atributos que pertençam a elas em virtude do que elas são. Por exemplo, a propriedade das chamas do fogo de subir em direção ao céu é algo de acordo com a natureza, pois é intrínseca ao fogo, sendo uma de suas características típicas. 

Note-se que uma cadeira também é definida por um determinado "princípio ordenador" que a define como uma cadeira. O ponto é que, antes de ser uma cadeira, havia uma matéria (seja ela qual for) que, por si mesma, não tinha a característica de ser cadeira. Um pedaço de madeira, sendo algo natural, tem as propriedades típicas de toda e qualquer porção de madeira. Mas nenhum pedaço de madeira tem a capacidade de se tornar uma cadeira exclusivamente por seus meios

Enquanto madeira, tornar-se uma cadeira por si mesma não está entre as suas capacidades naturais. Decerto, a madeira possui a potencialidade de ser moldada como uma cadeira. Existe nela uma moldabilidade natural que permite que certas mudanças (algumas, não todas) sejam realizadas nela por um agente externo. Mas ela, sozinha, espontaneamente e de forma regular, jamais se torna uma cadeira. O ato de ser uma cadeira é imposto na madeira por um agente externo, fazendo-a assumir uma forma que ela jamais assumiria por sua própria capacidade.

Um embrião humano, apesar de ter tido causas externas (seus pais), desenvolve-se completamente independente de seus progenitores na direção fixa e regular de um ser humano completo. As mudanças que sofre são internas, são diferenciações que acontecem dentro do organismo segundo um princípio ordenador que lhe é intrínseco, e que manifesta o tipo de ser que ele é. O desenvolvimento de um feto humano difere do de um feto de pato. 

Em ambos os casos, contudo, o que se está formando não é fruto da imposição externa de uma forma à uma matéria que, por si mesma, não teria aquela forma imposta de fora. A cadeira é o produto da junção de partes materiais já existentes e que são unidas segundo o plano de um agente exterior. O embrião se desenvolve pela diferenciação interna dos órgãos que se formam espontaneamente segundo um plano que é intrínseco ao próprio embrião, e que manifesta assim a sua natureza.

É inegável que existam naturezas, afirma Aristóteles. Seria absurdo tentar provar o que é evidente, e quem exige uma prova desse tipo de coisa não sabe distinguir entre o que é evidente e o que não é. Um homem cego pode muito bem falar sobre cores como quem fala sobre palavras sem conhecer o seu significado. Ninguém pode consistentemente negar a existência de naturezas. Basta olhar para o mundo para se ter a certeza de que há coisas naturais.

Alguns pontos podem ser salientados nesse ponto. O primeiro e óbvio é que Aristóteles não está afirmando que tudo é natural. Basta que haja alguma coisa natural para que a sua afirmação seja verdadeira. O segundo ponto é que, para o físico, cujo objeto de estudo é o natural, não pode haver dúvida de que existem entes naturais. Uma ciência, qualquer que ela seja, tem como primeira exigência a identificação da existência de seu objeto de estudo. Se não houvesse natureza, não haveria Física como uma ciência.

O terceiro é que a existência de naturezas é evidente pela experiência (ἐμπειρία, empeiria), isto é, é um fato empírico. Negar as naturezas seria negar a experiência direta do mundo e de nós mesmos. Ninguém em sã consciência espera que a água na panela congele sob o fogo ou que do embrião humano resulte uma girafa. É fato que os resultados esperados naturalmente nem sempre acontecem por conta da ação de fatores intervenientes. O embrião de um gato, por diversos motivos, pode se desenvolver insuficientemente ou defeituosamente.

Perceba-se, no entanto, que só conhecemos o insuficiente, o defeituoso, o imperfeito e a exceção graças ao conhecimento prévio do comportamento regular. Em si mesma, a exceção não pode ser conhecida a não ser pelo conhecimento prévio da regra, isto é, ela supõe a regra. 

O fundamento primeiro da Física como ciência (e de todas as ciências naturais), é a existência daquilo que é natural, que, como Aristóteles aponta, "acontece sempre ou na maior parte das vezes". Negar a existência da natureza é negar a possibilidade da própria ciência. Como pode haver ciência deste mundo sensível e empírico se não houver a mínima ordem, a mínima previsibilidade? A existência das naturezas não é uma descoberta da ciência, mas é seu pressuposto mais básico. 

Recordando a definição de Aristóteles, ciência (epistēmē, ἐπιστήμη), é tudo aquilo que se deriva a partir de princípios (que não são, eles mesmos, derivados de outros princípios). Cada ciência tem seu objeto de estudo, e, portanto, tem seus princípios próprios correspondentes a seu objeto. Contudo, o princípio de toda e qualquer ciência empírica é o reconhecimento da existência das naturezas. Uma ciência não pode provar a existência de seu objeto de estudo, ela reconhece como evidente a sua existência.

Um físico não pode provar, com os meios da Física, que as coisas têm naturezas. Seria como alguém querendo sair da água puxando os próprios cabelos. A Física só pode se instalar como ciência no reconhecimento prévio da existência de seu objeto de estudo: a natureza. Precedendo o trabalho científico está a evidência empírica direta e inegável do seu objeto. 

Portanto, a regularidade natural é o princípio indemonstrável a partir do qual toda a ciência física vai ser erigida. "Indemonstrável", no presente contexto, significa aquilo que não necessita de demonstração ou de prova por ser sabidamente verdadeiro ou autoevidente. Negar a natureza seria negar a previsibilidade dentro do mundo. Não somente das coisas exteriores, mas também de nós mesmos. 

Imaginar que as maçãs podem amanhã não ser mais doces não parece ser tão problemático. Outra coisa bem diferente é imaginar que todos os comportamentos regulares de todas as coisas naturais podem amanhã mudar, e depois disso mudar de novo incessantemente. Negar a regularidade natural é negar qualquer previsibilidade, inclusive a de nosso corpo. Se não há regularidade, então nada impede que no próximo segundo meu próprio cérebro deixe de funcionar como tem funcionado até hoje.

Eis um ponto interessante, pois a conditio sine qua non das ciências naturais, quaisquer que elas sejam, é o reconhecimento da existência daquilo que é extra-científico, isto é, do que está fora do âmbito da própria ciência. Nenhum cientista pode provar, com os dados e os métodos de sua ciência, que haverá sempre uma regularidade natural. Ou bem isso é assumido como verdadeiro ou bem não há ciência empírica. 

Se a existência de naturezas for assumida como uma hipótese, então, logicamente, tudo o que a ciência diz sobre o mundo será meramente hipotético. Entretanto, dessa forma, seria impossível explicar por qual razão as coisas naturais se comportam de modo regular. Se não há nada que seja intrinsecamente regular, nenhuma explicação será possível para nada no mundo, dado que explicar algo cientificamente é identificar as suas causas. E causas irregulares não explicam cientificamente nada.

Mesmo David Hume, do alto de seu ceticismo acerca da regularidade natural, foi incapaz de encontrar outra explicação para a nossa tendência de esperar regularidade no comportamento das coisas que não fosse algo também regular, a saber, o hábito. Se é o hábito que explica que nós sempre esperamos regularidade no comportamento das coisas, então essa explicação repousa sobre a suposição do efeito regular do próprio hábito como uma tendência natural de formar certas convicções. A explicação supõe exatamente aquilo que ela deveria explicar.

Aristóteles segue a sua exposição asseverando que alguns identificaram a natureza ou a substância de um ente natural com o seu constituinte imediato. Por exemplo, o bronze seria a natureza da estátua e a madeira a natureza da cama. A favor dessa visão, Antífon observava que se alguém enterrasse uma cama de madeira, e se algo dela viesse a nascer, seria uma árvore e não uma cama. O que mostraria que o arranjo feito pelo artista seria meramente acidental, enquanto a madeira, a sua natureza, seria o elemento permanente.

Dessa forma, alguns defenderam que o constituinte material é a natureza da coisa. Os primeiros físicos identificaram a natureza com a matéria da qual todas as coisas seriam feitas. Aristóteles refere-se à tradição pré-socrática de identificar a physis, a natureza, com algum elemento primordial (terra, água, ar, átomos, etc.) e encarar todas as coisas que se apresentam aos nossos sentidos como modificações e estados desse elemento primordial.

Poderíamos denominar esse gênero de explicação de materialismo, uma vez que toda a diversidade e todas as operações das coisas dentro do mundo seriam derivadas da matéria da qual elas são feitas. O que equivale a dizer, o fim e ao cabo, que todas as coisas que testemunhamos (e nós mesmos) não são nada mais do que o material do qual são constituídas (seja esse material qual for). 

Não é difícil reconhecer aqui uma tendência bastante presente na ciência moderna, qual seja, a tentativa de explicar a realidade física pela mera interação das porções de matéria de acordo com suas propriedades básicas. A concepção do que é a matéria pode variar (corpúsculos, pura extensão, etc.), mas a ideia geral é a mesma: tudo o que se pode conhecer e tudo o que é necessário para explicar os fenômenos naturais reside nas propriedades básicas da matéria.

A questão, contudo, é saber o que é mais primordial para a coisa ser o que ela é. O que faz com que uma coisa seja uma cadeira? Acaso é o fato de ser feita de madeira? Fosse assim, não haveria distinção real entre um armário, uma mesa e uma cadeira feitos de madeira. Que isso é absurdo ninguém duvida. Uma cadeira é realmente distinta de uma mesa, ainda que ambas sejam feitas de madeira. Mais do que isso, aquilo que explica o que é uma cadeira não é o seu material, pois é fato que ela pode ser feita de vários materiais: plástico, metal, etc.

A distinção entre uma mesa e uma cadeira não está em nenhuma qualidade ou propriedade da madeira, do plástico ou do metal do qual elas são feitas. Assim como a estátua não pode ser explicada por qualquer característica do bronze do qual ela é feita. Um Apolo não pode ser reduzido a quaisquer das propriedades do bronze do qual foi feito. É claro que o material pode ser adequado ou inadequado para produzir a estátua, mas isso explicaria somente a razão pela qual foi utilizado este material e não aquele para a sua produção.

Vê-se que, ainda que se trate de artefatos (objetos que devem sua existência ao desígnio de um artífice), o elemento que determina o que a coisa é não reside na matéria da qual ela é feita. O que distingue uma cadeira de uma mesa é o tipo de coisa que ela é, e não aquilo do qual é constituída. Isso não significa que o elemento material seja desimportante ou dispensável. Significa apenas que aquilo que torna uma coisa o que ela é, a sua substância, não se encontra na matéria.

A tentação de explicar tudo pela matéria constituinte das coisas decorre da percepção errônea daquilo que são as coisas primordialmente. Se é inegável que a matéria é um elemento indispensável para a explicação de diversos aspectos das coisas deste mundo, é igualmente verdade que ela é incapaz de explicar tudo o que essas coisas são. Ou melhor, a matéria é insuficiente para explicar o que são essas coisas. A pergunta "o que é isso?" não é respondida pela indicação do material do qual as coisas são constituídas.

Então, qual é o elemento que explica o que são as coisas? Se tomamos uma cadeira, o que explica o fato de que se trata de uma cadeira é o seu princípio de ordenação que foi imposto à matéria por um artífice consciente. É o elemento formal, isto é, a Forma (εἶδος, eidos, em grego) que torna a coisa o que ela é. Uma cadeira tem uma Forma diferente de uma mesa, apesar de ambas serem feitas de madeira. É bom que se diga que Forma não se refere somente ao formato exterior da coisa, mas, primordialmente, à ordenação da coisa segundo uma regra.

No caso dos artefatos, a ordenação vem de fora, é extrínseca. Nos entes naturais, a ordenação vem de dentro, é intrínseca. Um cavalo, um ser humano e um pinguim são todos, no fim das contas, constituídos pelo mesmo tipo de matéria fundamental (ossos, músculos, sangue, ou algo ainda mais fundamental, seja o que for), mas o que os diferencia é o tipo de ser que cada um é. A distinção se encontra no âmbito formal, e é isso que determina a natureza de cada um deles.

Aristóteles conclui que a natureza está antes na Forma do que na matéria. O homem nasce do homem, mas a cama não nasce da cama. Isso se deve ao fato de que a cama é construída de fora por um artífice. A sua Forma não lhe é intrínseca, ela é imposta, implantada em uma matéria já existente. Já no ser humano, a Forma determina o que é o ser humano desde o seu início, intrinsecamente, de modo que a matéria e a Forma vêm unidas indissoluvelmente em uma única substância.

A natureza se manifesta no crescimento do ente natural. Aristóteles usa um exemplo curioso para distinguir esse desenvolvimento natural daquilo que é artificial. A arte da medicina conduz não a ela mesma, mas à saúde. Isto é, a arte da medicina, como qualquer arte, conduz a um objetivo distinto dela mesma. O médico não trata o paciente para alcançar a arte da medicina. O médico utiliza a medicina como meio para um fim outro, a saber, a reconstituição da saúde do paciente.

A arte se define como um raciocínio reto na produção de algo, um meio para alcançar um fim. A natureza, por outro lado, não persegue objetivos externos à ela mesma. O crescimento, ou desenvolvimento, de algo natural não tem um fim externo. O ente natural se desenvolve, por assim dizer, para se tornar o que ele é. Ou seja, ao se desenvolver, ou ao operar, o ente natural manifesta exatamente aquilo que ele é. 

O ato de desenvolvimento não se dá na direção da qual ele iniciou, mas sim na direção à qual a coisa tende. A planta, por exemplo, cresce e se desenvolve para se tornar plenamente uma planta. Todas as potencialidades que ela vai atualizando realizam o que significa ser uma planta. O objetivo final, se assim podemos dizer, é a própria planta, e não a produção de algo externo à ela (como na arte). A natureza constitui o que é a coisa, e por isso rege o seu desenvolvimento e as suas operações. A coisa natural tende a realizar a sua regra interna.

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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Huang Po, budismo, o ordinário e o extraordinário


"Ordinário e extraordinário são indistintos. Tudo é perfeito!"

SENGZHAO (384/414 D.C.)

O grande mestre budista Ch'an chinês do século IX D.C., Huang Po, exortava seus discípulos a distinguir o que era o espírito ordinário e o que era o espírito extraordinário. Vendo, porém, que estes não compreendiam suas palavras e que, com isso, tornavam o vazio algo concreto, o sábio insistia sobre o fato de que no momento que eles não tivessem mais "sentimentos ordinários sobre o extraordinário" não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos.

O problema era que os discípulos se apegavam aos conceitos mesmos de ordinário e de extraordinário, e, assim, afastavam-se cada vez mais do espírito. Em um só instante em que prevalecesse uma emoção, cairia o discípulo em um outro destino. Os aprendizes insistem querendo saber o princípio pelo qual desde sempre o espírito é o Buddha. E o mestre responde que não é nada que, ao buscá-lo, o buscador se distinga dele.

Mas, se não há distinção, por que o mestre usa a cópula "é"? Huang Po responde que se os discípulos não discriminam entre o ordinário e o extraordinário, quem usa a cópula? Quando tiverem os discípulos esquecido tudo o que concerne ao espírito, onde eles ainda o buscarão?

Huang Po parece brincar com o conceito de distinção do extraordinário e do ordinário, ora exortando os discípulos a realizarem essa distinção, ora criticando-os por realizarem essa distinção. O discurso do mestre, contudo, se encontra em dois níveis. No nível humano, ou melhor, no nível da realidade fenomênica, há diferença entre a experiência ordinária e a experiência extraordinária do Boddhisattva. Ninguém negaria que a experiência do Buddha Sakyamuni difere daquela do homem comum, submetido como está ao ciclo do Saṃsāra.

Não obstante, do "ponto de vista" do espírito puro (que não é um ponto de vista, posto que é absoluto), as distinções mesmas de ordinário e extraordinário perdem o seu sentido. Todavia, o apego a essas formas duais de pensamento, por válidas que sejam no plano fenomênico da experiência comum, entravam a verdadeira compreensão do espírito puro (que é o próprio Buddha, para além de toda e qualquer distinção). 

O espírito puro, nesse sentido, não é dizível dentro do vocabulário dual do mundo fenomênico. Sim, o espírito puro não é uma experiência ordinária, e, portanto, se distingue dela pelo seu caráter extraordinário. Mas ao chamar o espírito puro de "extraordinário", arriscamo-nos a torná-lo algo cuja estranheza depende dos parâmetros da experiência ordinária. Ou seja, se o ordinário é o mundo das coisas, o extraordinário será o mundo das coisas fora do comum, mas ainda assim no âmbito das coisas.

Por isso Huang Po acusa os discípulos de transformarem o vazio em "algo concreto", isto é, algo encontrável, semelhante a qualquer coisa da experiência ordinária. Os termos "ordinário" e "extraordinário" são inadequados para descrever o espírito puro justamente porque pertencem à experiência fenomênica. O "ordinário" é o comum, o que sempre acontece da mesma forma. O "extraordinário" é aquilo que foge à regra, o incomum, o que não acontece de modo regular.

O espírito puro, porém, não é "algo" e nem uma "coisa", seja ela comum ou incomum, ordinária ou extraordinária. Chamar o espírito puro de "extraordinário" é diminuí-lo, é transformá-lo em uma coisa entre outras coisas. Em uma linguagem filosófica, isso significa hipostasiar o que não é um ente de fato. Comumente, o ser humano hipostasia aquilo que não é realmente uma coisa. Por exemplo, quando trata como coisas conceitos abstratos (Nação, Estado, etc.). Nesses casos, dá-se substancialidade àquilo que não é substancial ou àquilo que só existe na dependência de algo substancial.

O problema é que o espírito puro não é algo que não seja real ou que dependa de algo real. Ao contrário, são as coisas reais que dele têm a sua existência. Desse modo, o espírito puro não pode ser considerado algo por estar abaixo da linha da realidade, mas, sim, por transcender infinitamente todas as coisas do mundo fenomênico. O Princípio não pode apresentar as limitações próprias daquilo do qual ele é o princípio.

No momento em que os discípulos tivessem abandonado todo "sentimento ordinário sobre o extraordinário", não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos, dizia Huang Po. No momento em que os discípulos ultrapassassem as dualidades do tipo ordinário/extraordinário, não haveria mais diferenças entre o Buddha e eles mesmos. Em outros termos, saberiam que, desde sempre e para sempre, sempre foram o Buddha, pois o Buddha é o espírito.

Ultrapassar o estado das distinções é realizar o estado búdico do qual estamos "separados" somente por ignorância. É realizar a absoluta equanimidade diante de todas as coisas. No entanto, sem apego, sem desprezo e sem negação. Nada é obstáculo se o espírito é livre. Por um lado, tudo é reunido no Buddha sem distinções de qualquer tipo. Por outro lado, nada se destaca como objeto de desejo ou de aversão. A mesma equanimidade do espírito puro que reúne em si todas as coisas distintas. também torna-as todas um vazio indistinto.

Se em um só instante alguma emoção prevalecesse, diz Huang Po, o discípulo cairia em outro destino. Se uma só coisa se tornasse objeto de atenção especial, de desejo ou de aversão, o discípulo sairia do espírito búdico da unidade absoluta e retornaria ao mundo fenomênico da distinção e das dualidades. Não são duas realidades (o espírito búdico de um lado e o mundo fenomênico do outro), mas uma só e idêntica realidade que só se manifesta em termos de separação por conta da ignorância que nasce do apego a este ou àquele ente ou estado de espírito.

No limite, até os meios de transmissão e de ensino empregados pelos mestres podem se converter em obstáculos à iluminação. As respostas de Huang Po, do modo como são filtradas pelos anseios e apegos dos discípulos, longe de esclarecerem o caminho, tornam-se fins em si mesmos, ocasiões para a mente se entreter como novos objetos de atenção. Tal qual um prisioneiro que, de posse da chave da porta de sua cela, em vez de abrí-la, se dedica a estudar a chave e suas relações com a fechadura.

O espírito puro não é algo que, ao buscá-lo, o buscador dele se distinga, ensina Huang Po. Aquele que busca algo é diferente daquilo que ele busca. A unidade fundamental do Buddha não pode ser algo que se busca. Não há, tampouco, qualquer relação "X é Y", na qual X é diferente de Y. Portanto, mesmo o uso da cópula "é" se deve aos limites intrínsecos de nossa linguagem. Se Huang Po usa a linguagem dual do mundo fenomênico, ele o faz somente para indicar aos discípulos a Via (道). 

É preciso que o discípulo não se apegue às limitações da linguagem, e enxergue a realidade suprema para além dos meios usuais de expressão. É a Lua que importa, não o dedo que para ela aponta. Fora do mundo fenomênico das distinções e das dualidades, não resta quem use a linguagem dual. Se os discípulos houvessem ultrapassado a distinção entre o ordinário e o extraordinário, não haveria sequer o mestre a quem fazer suas questões.

Aliás, não faria sentido sequer formular questões. Não há pergunta onde não há o "outro" que se desconhece. Só há o "mesmo", eternamente sem diferenças. Quando o discípulo esquecer do próprio espírito (com suas agitações, desejos e aversões), nada restará a ser buscado. Tudo estará ali porque tudo é desde sempre reunido no espírito búdico indiferenciadamente. E, ao fim, nada terá sido encontrado.

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