"Onde há propriedades de alguma coisa, há alguma coisa, onde há unidade há ser, onde há ser há unidade. Um ser, sem unidade, seria um ser que não é o que é. Nesse caso, seria nada."
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, "A Sabedoria da Unidade", p. 11
O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, no início do capítulo II de sua obra matética "A Sabedoria da Unidade", retoma o que foi dito no capítulo precedente (Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I) (oleniski.blogspot.com), afirmando que não se pode confundir os diversos logoi da unidade. O logos da unidade em geral (de toda e qualquer unidade) não pode ser confundido com o logos desta unidade (uma maçã, por exemplo), que é um composto (synolon, σύνολο) de uma estrutura eidética (eidos, εἶδος, Forma) e de uma estrutura hilética (hylé, ὕλη, matéria), e nem confundido com a tensão como esforço de coerência entre as partes de um Todo.
Logos da unidade ≠ Logos desta unidade (composto de estrutura eidética e estrutura hilética) ≠ Logos tensional (esforço real de coerência)
Todos esses logoi residem no Ser, e este é a atualidade (Ato, aquilo que é) sem deficiência, o Ser Supremo. Não pode haver outro princípio supremo que o Ser, pois tudo o que é, foi ou pode ser reside e tem sua origem no ato de Ser. O Ser é a absoluta simplicidade, dado que tudo o que é múltiplo tem ser, tem realidade. Mas o múltiplo pode se dissociar e se decompor, contudo permanecendo as partes que o compunham como entes no Ser. Assim, para que multiplicidade exista, é preciso que as partes, estando associadas ou dissociadas, tenham realidade, façam parte do Ser.
O Ser não se multiplica, como se fosse cortado como um bolo em que os pedaços cortados diminuem a quantidade do bolo restante. Ao contrário, a presença do Ser não é quantitativa. Todo o ser que existe, que possui alguma realidade, possui em si mesmo o Ser na sua integralidade como seu fundamento. Da mesma forma, se o Ser está presente em tudo de modo absoluto e simples, não divisões internas no Ser, nem passagem temporal. Ao contrário, são as coisas, ao durarem, ao permanecerem no Ser, que estão no tempo.
O Ser não sofre mutações ou mudanças, pois como mudaria para algo que não fosse o próprio Ser? Mudaria para o Nada? Mas, o Nada não existe, e nem pode existir, uma vez que o Nada é a absoluta ausência de Ser, seja potencial ou atual.*
Os logoi são reais, não são invenções da mente humana. Contrariamente aos nominalistas, que restringem os universais à representações mentais, o realismo moderado, que Mário Ferreira esposa, afirma que há um fundamento in re (nas coisas) para os conceitos que concebemos. Se não houvesse esse fundamento, os conceitos seriam meras ficções. E se os conceitos possuem fundamento in re, apontam para alguma positividade, para algo que é um alius (outro), para uma presença que, por conseguinte, nega a ausência de realidade.
A unidade, diz Mário Ferreira, é clusa (do latim, claudo, tapar, fechar, encerrar), pois ela fecha algo, inclui nela o que é a coisa e exclui aquilo que não é (inclusão e exclusão). Em outros termos, a unidade fecha em si mesma tudo aquilo que é real sobre algo, e, consequentemente, expulsa de si, como o outro (aliud), tudo o que não pertence à sua clausura. Aquilo que a unidade inclui pertence à ela in se, o que implica que não haja divisão interna à unidade.
O que a unidade inclui é idêntico (idem, no latim; autos, no grego) à ela mesma, e é outro (alter, no latim; allós, no grego) para tudo aquilo que lhe for diferente. Toda unidade, com relação a uma unidade diferente dela, é outra que outra, isto é, não pode ser idêntica a qualquer outra, sendo por isso sempre a outra de uma outra unidade.
Tudo aquilo que possui alguma positividade, tem algum ser, tem alguma realidade. E, sendo algo positivo, pelo ato mesmo de ser algo real, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. Algo que é X, no ato mesmo de ser X, nega todas as possibilidades de Não-X, sejam elas A, B, C, D, etc. Tudo o que não seja X, será diferente de X, será outro que X.
Só se pode captar aquilo que possui alguma realidade, alguma positividade. A ausência de uma positividade é o não-ser, e este não pode ser captado, dado que não possui em si nenhuma positividade. Quando tratamos de uma ausência, não captamos algo, só fazemos referência à falta de algo. Assim, é somente por referência ao positivo que podemos nos referir ao não-positivo, ao negativo, ao que não é, ao que não existe.
A divisão ocorre justamente quando há ausência de uma positividade em X que está presente em Y. Por exemplo, basta que percebamos que uma maçã é colorida para sabermos que ela é diferente de um conceito, que não possui cor. Ambos possuem positividade, cada um a seu modo, mas o que está presente em um e ausente no outro é o que os torna diferentes. Só posso distinguir as coisas se encontro nelas alguma diferença, alguma positividade que está presente em uma e não na outra.
"O que é um é outro que outro, e o mesmo que si mesmo", afirma o filósofo brasileiro. É preciso ver na fraseologia de Mário Ferreira, que parece somente reafirmar coisas que são óbvias, o esforço de esclarecer, dentro do âmbito da linguagem, o que está no fundamento da própria linguagem. Não à toa, por ser um esforço de reconhecer e de apresentar os fundamentos da realidade, a linguagem parece dar voltas em torno de si, tentando morder a própria cauda como uma serpente.
Em certo sentido, a identidade é indizível, e todo esforço de dizê-la esbarra em dificuldades imensas. A identidade é tão fundamental que não conseguimos representá-la a não ser pela linguagem do múltiplo. Representamos a identidade pela fórmula lógica A=A. Ocorre que, ao igualarmos um A a outro A, querendo representar a identidade, fazemos uso da diferença. Não obstante, ninguém consegue realmente negar a realidade fundamental da identidade, isto é, o ser isso que se é e não outra coisa.
Como a linguagem depende do Ser e o Ser é unidade, não é de se surpreender que aquilo que é derivado seja, em alguma medida, incapaz de expressar o seu próprio fundamento. Mário Ferreira quer expressar aqui o caráter absolutamente fundamental da unidade. Não é o um que nasce do múltiplo. É o múltiplo que, ontológica e logicamente, é subordinado ao um.
A unidade é também uma estrutura, ou, como Mário Ferreira denomina, uma tectônica. A razão disso já foi exposta anteriormente. A unidade pode ser composta interiormente, isto é, compreender em si um conjunto de positividades, ou pode ser absolutamente simples. A unidade absolutamente simples corresponde ao Ser, cuja simplicidade decorre do fato de que nada há que seja oposto ao Ser, ou diferente dele, enquanto fundamento de tudo o que é e pode ser.
A unidade é composta interiormente quando reúne em si as positividades essenciais de um certo ente. Toda maçã possui as mesmas características (cor, cheiro, tamanho, sabor, etc.) que, embora sejam diferentes entre si, compõem uma unidade que é mais do que a soma dessas características, e se constitui em um Todo. Embora múltiplo internamente, o Todo é Um, uma unidade indivisa, invariável e coerente.
Mário Ferreira mostra que há aqui cinco esquemas fundamentais:
1) Ser, que é positividade, afirmação positiva;
2) Não-ser, recusa de positividade, negação;
3) Unidade, que é indiviso in se e divido ab alio, isto é, indiviso em si e distinto de outro;
4) Divisão idem et alter, o si mesmo e o outro;
5) Multiplicidade, que é o outro que outro.
Note-se como esses esquemas se encadeiam do fundamental até o fundamentado. Em primeiro lugar, há que haver a positividade. Algo deve ter presença, ou, de acordo com o que o princípio da Filosofia Concreta afirma, algo há. A primeira evidência insofismável é que alguma coisa existe. Seja o que for essa coisa que existe, ao existir, afirma-se a si mesma, e, por isso mesmo, nega tudo o que não é ela ou poderia não ser ela. Desse modo, ao ser X, exclui-se ontológica e logicamente tudo o que é não ser X.
Não ser X é negar a positividade de X, ou seja, significa não possuir em si mesmo todas as positividades que caracterizam X. Nada impede que haja coincidência parcial, que um não-X possua algumas das positividades de X. Mas pelo próprio fato de que não há coincidência total, algo está ausente em não-X que está presente em X.
Havendo X, afirma-se uma unidade, e é enquanto unidade que X se distingue de não-X. Considerado como um Todo, X é indiviso em si. Sendo indiviso como uma unidade de composição, X necessariamente está dividido (é diferente) de toda outra unidade de composição que não seja X. Ele é idem para si e alter para outro. A multiplicidade, portanto, só pode ter o seu fundamento na unidade, dado que aquilo que é positivo em uma unidade e que está ausente em outra é que determina a divisão.
Toda divisão está ligada ao não-ser relativo, ou seja, ao fato de que toda ausência é relativa a uma positividade. A unidade, contudo, pode ser absoluta, uma vez que o Ser é a unidade simples que reúne em si toda e qualquer positividade sem nenhuma diferença.
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* Para uma discussão mais detalhada da unidade absoluta do Ser, recomenda-se a leitura das obras "Filosofia Concreta" e "Filosofia da Crise".
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