terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Huang Po, budismo, o ordinário e o extraordinário


"Ordinário e extraordinário são indistintos. Tudo é perfeito!"

SENGZHAO (384/414 D.C.)

O grande mestre budista Ch'an chinês do século IX D.C., Huang Po, exortava seus discípulos a distinguir o que era o espírito ordinário e o que era o espírito extraordinário. Vendo, porém, que estes não compreendiam suas palavras e que, com isso, tornavam o vazio algo concreto, o sábio insistia sobre o fato de que no momento que eles não tivessem mais "sentimentos ordinários sobre o extraordinário" não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos.

O problema era que os discípulos se apegavam aos conceitos mesmos de ordinário e de extraordinário, e, assim, afastavam-se cada vez mais do espírito. Em um só instante em que prevalecesse uma emoção, cairia o discípulo em um outro destino. Os aprendizes insistem querendo saber o princípio pelo qual desde sempre o espírito é o Buddha. E o mestre responde que não é nada que, ao buscá-lo, o buscador se distinga dele.

Mas, se não há distinção, por que o mestre usa a cópula "é"? Huang Po responde que se os discípulos não discriminam entre o ordinário e o extraordinário, quem usa a cópula? Quando tiverem os discípulos esquecido tudo o que concerne ao espírito, onde eles ainda o buscarão?

Huang Po parece brincar com o conceito de distinção do extraordinário e do ordinário, ora exortando os discípulos a realizarem essa distinção, ora criticando-os por realizarem essa distinção. O discurso do mestre, contudo, se encontra em dois níveis. No nível humano, ou melhor, no nível da realidade fenomênica, há diferença entre a experiência ordinária e a experiência extraordinária do Boddhisattva. Ninguém negaria que a experiência do Buddha Sakyamuni difere daquela do homem comum, submetido como está ao ciclo do Saṃsāra.

Não obstante, do "ponto de vista" do espírito puro (que não é um ponto de vista, posto que é absoluto), as distinções mesmas de ordinário e extraordinário perdem o seu sentido. Todavia, o apego a essas formas duais de pensamento, por válidas que sejam no plano fenomênico da experiência comum, entravam a verdadeira compreensão do espírito puro (que é o próprio Buddha, para além de toda e qualquer distinção). 

O espírito puro, nesse sentido, não é dizível dentro do vocabulário dual do mundo fenomênico. Sim, o espírito puro não é uma experiência ordinária, e, portanto, se distingue dela pelo seu caráter extraordinário. Mas ao chamar o espírito puro de "extraordinário", arriscamo-nos a torná-lo algo cuja estranheza depende dos parâmetros da experiência ordinária. Ou seja, se o ordinário é o mundo das coisas, o extraordinário será o mundo das coisas fora do comum, mas ainda assim no âmbito das coisas.

Por isso Huang Po acusa os discípulos de transformarem o vazio em "algo concreto", isto é, algo encontrável, semelhante a qualquer coisa da experiência ordinária. Os termos "ordinário" e "extraordinário" são inadequados para descrever o espírito puro justamente porque pertencem à experiência fenomênica. O "ordinário" é o comum, o que sempre acontece da mesma forma. O "extraordinário" é aquilo que foge à regra, o incomum, o que não acontece de modo regular.

O espírito puro, porém, não é "algo" e nem uma "coisa", seja ela comum ou incomum, ordinária ou extraordinária. Chamar o espírito puro de "extraordinário" é diminuí-lo, é transformá-lo em uma coisa entre outras coisas. Em uma linguagem filosófica, isso significa hipostasiar o que não é um ente de fato. Comumente, o ser humano hipostasia aquilo que não é realmente uma coisa. Por exemplo, quando trata como coisas conceitos abstratos (Nação, Estado, etc.). Nesses casos, dá-se substancialidade àquilo que não é substancial ou àquilo que só existe na dependência de algo substancial.

O problema é que o espírito puro não é algo que não seja real ou que dependa de algo real. Ao contrário, são as coisas reais que dele têm a sua existência. Desse modo, o espírito puro não pode ser considerado algo por estar abaixo da linha da realidade, mas, sim, por transcender infinitamente todas as coisas do mundo fenomênico. O Princípio não pode apresentar as limitações próprias daquilo do qual ele é o princípio.

No momento em que os discípulos tivessem abandonado todo "sentimento ordinário sobre o extraordinário", não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos, dizia Huang Po. No momento em que os discípulos ultrapassassem as dualidades do tipo ordinário/extraordinário, não haveria mais diferenças entre o Buddha e eles mesmos. Em outros termos, saberiam que, desde sempre e para sempre, sempre foram o Buddha, pois o Buddha é o espírito.

Ultrapassar o estado das distinções é realizar o estado búdico do qual estamos "separados" somente por ignorância. É realizar a absoluta equanimidade diante de todas as coisas. No entanto, sem apego, sem desprezo e sem negação. Nada é obstáculo se o espírito é livre. Por um lado, tudo é reunido no Buddha sem distinções de qualquer tipo. Por outro lado, nada se destaca como objeto de desejo ou de aversão. A mesma equanimidade do espírito puro que reúne em si todas as coisas distintas. também torna-as todas um vazio indistinto.

Se em um só instante alguma emoção prevalecesse, diz Huang Po, o discípulo cairia em outro destino. Se uma só coisa se tornasse objeto de atenção especial, de desejo ou de aversão, o discípulo sairia do espírito búdico da unidade absoluta e retornaria ao mundo fenomênico da distinção e das dualidades. Não são duas realidades (o espírito búdico de um lado e o mundo fenomênico do outro), mas uma só e idêntica realidade que só se manifesta em termos de separação por conta da ignorância que nasce do apego a este ou àquele ente ou estado de espírito.

No limite, até os meios de transmissão e de ensino empregados pelos mestres podem se converter em obstáculos à iluminação. As respostas de Huang Po, do modo como são filtradas pelos anseios e apegos dos discípulos, longe de esclarecerem o caminho, tornam-se fins em si mesmos, ocasiões para a mente se entreter como novos objetos de atenção. Tal qual um prisioneiro que, de posse da chave da porta de sua cela, em vez de abrí-la, se dedica a estudar a chave e suas relações com a fechadura.

O espírito puro não é algo que, ao buscá-lo, o buscador dele se distinga, ensina Huang Po. Aquele que busca algo é diferente daquilo que ele busca. A unidade fundamental do Buddha não pode ser algo que se busca. Não há, tampouco, qualquer relação "X é Y", na qual X é diferente de Y. Portanto, mesmo o uso da cópula "é" se deve aos limites intrínsecos de nossa linguagem. Se Huang Po usa a linguagem dual do mundo fenomênico, ele o faz somente para indicar aos discípulos a Via (道). 

É preciso que o discípulo não se apegue às limitações da linguagem, e enxergue a realidade suprema para além dos meios usuais de expressão. É a Lua que importa, não o dedo que para ela aponta. Fora do mundo fenomênico das distinções e das dualidades, não resta quem use a linguagem dual. Se os discípulos houvessem ultrapassado a distinção entre o ordinário e o extraordinário, não haveria sequer o mestre a quem fazer suas questões.

Aliás, não faria sentido sequer formular questões. Não há pergunta onde não há o "outro" que se desconhece. Só há o "mesmo", eternamente sem diferenças. Quando o discípulo esquecer do próprio espírito (com suas agitações, desejos e aversões), nada restará a ser buscado. Tudo estará ali porque tudo é desde sempre reunido no espírito búdico indiferenciadamente. E, ao fim, nada terá sido encontrado.

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2 comentários:

Maurício Santos disse...

Todo fenômeno seja desejado ou indesejado é impermanente...ter esse pensamento ajuda a não se apegar a eles ... Parabéns pelo texto 👍

Immanuel Rosenkreuz disse...

Obrigado, Maurício! Abraços!