quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I)

"É verdade que não é possível dar-se um ontos qualquer, sem que ele tenha unidade. Percebemos que a lei da unidade rege as coisas, de modo que todas dependem dela, porque só se dão quando são também unidades, de maneira que esta é pertencente, portanto, àqueles logoi arkhai, de que falavam os pitagóricos; ou seja, uma lei, que constitui o princípio da coisa."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.5 (itálicos no original)

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em seu livro A Sabedoria da Unidade, parte integrante da Matese (cujo primeiro volume, A Sabedoria dos Princípios, apresentamos anteriormente: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios (oleniski.blogspot.com)), dedica suas reflexões ao tema fundamental da unidade. Tudo aquilo que é uno depende do logos da unidade, isto é, há uma estrutura eidética, formal e principial, que funda a realidade da unidade.

O logos da unidade pode ser acidental ou substancial. No primeiro caso, corresponde aos artefatos, os entes que são produzidos ou construídos pela organização de partes preexistentes segundo um padrão imposto extrinsecamente pelo produtor. Por exemplo, uma mesa de madeira é o produto da imposição do padrão "mesa" a um ente que já existia, a madeira. Esta não se tornaria uma mesa por si mesma, de modo espontâneo. Ao contrário disso, o ente substancial se caracteriza pelo caráter intrínseco de sua unidade, que não lhe é imposta de fora, mas, por assim dizer, o constitui "de dentro".

Não há um ontos, não há um ser que não seja constituído pelo logos da unidade. Por essa razão, a lei da unidade é absoluta, independente de toda e qualquer coisa. É um dos logoi arkhai, princípios originários de toda e qualquer realidade possível. Mário Ferreira distingue ainda entre a unidade como lei da unidade eidética da coisa, o que a distingue de tudo o que não é ela, e a lei da unidade matética, o logos matético da unidade.

A fim de dirimir possíveis confusões, é preciso dizer de início que não se trata aqui de unidade no sentido matemático do termo (pelo menos não principalmente). A unidade em discussão é o caráter daquilo que é indiviso, unificado, completo e substancial. A unidade de uma cadeira é muito mais do que a simples junção de suas partes materiais. A cadeira é una primordialmente porque "cadeira" é um padrão, um arranjo específico das partes segundo um determinado objetivo. 

O que torna a cadeira uma cadeira não é ser feita ou não de madeira (poderia ser feita de plástico ou de outro material adequado), mas sim o fato de que há na cadeira um padrão repetível que caracteriza toda e qualquer cadeira a despeito de suas particularidades como cor, tamanho, modelo, etc. Isto é, há um conjunto mínimo de características que têm de ser cumpridas para que a cadeira seja uma cadeira viável. 

É esse conjunto que torna algo uma cadeira e não uma mesa. Mas essas características não são de modo algum arbitrárias. O conjunto tem que ser ordenado, deve haver sentido nas características das partes da coisa e entre a disposição da partes para que haja de fato uma coisa, um ente, e não simplesmente um amontoado. Utilizando a expressão de Mário Ferreira, tem de haver uma lei de proporcionalidade intrínseca, uma regra, um logos. O que concede unidade a algo é um padrão que torna a coisa aquilo que ela é. 

Nesse sentido, a unidade é ontológica, e não simplesmente matemática. A unidade matemática é quantitativa apenas. Esta maçã é uma porque ela se distingue numericamente de outras maçãs, mas ela é una por ser "maçã", e, enquanto "maçã" ela não se distingue de todas as outras maçãs porque, assim como as outras, ela apresenta o mesmo padrão. Só aqui temos já dois aspectos fundamentais da unidade: a unidade como aspecto qualitativo, o que torna a coisa o que ela é, e o aspecto quantitativo, o que distingue numericamente os entes de um mesmo tipo.

Há ainda a lei da unidade que fundamenta e reúne em si os dois aspectos acima apresentados. Não se trata mais desta maçã enquanto unidade numérica, e nem mesmo de "maçã" como aquela unidade de características essenciais que definem o que é uma maçã. A lei da unidade não corresponde a este ou àquele padrão (cadeira, maçã, etc.), mas se refere ao, se podemos expressar desse modo, "padrão máximo" segundo o qual tudo aquilo que pode existir, seja o que for, será sempre unidade (por isso a lei da unidade é absoluta).

Mário Ferreira mostra ainda que, se é verdade que a unidade está presente em todos os entes, é também certo que os entes diferem quanto à sua constituição. Quando falamos de unidade absolutamente simples (sem partes), tratamos do henos (o que vem do "um", ἓν, no grego). Quando se trata de entes complexos (com partes), temos o holos ("todo", όλος, no grego) e o plethos (πλῆθος, no grego). O holos é um Todo cujas partes estão reunidas e ordenadas segundo uma regra geral intrínseca. 

Uma célula é holos (da onde vem o termo holística) porque constitui-se em um todo regido por uma lei de proporcionalidade intrínseca que não foi imposta de fora por um agente externo, mas que corresponde à sua natureza, ao que ela é. Além disso, Mário Ferreira identifica na célula uma tensão, um tónos (τόνος), esforço tensional para manter as partes subordinadas ao interesse do Todo. As partes da célula são formadas por diferenciação interna para que cada uma delas tenha uma função específica para a realização e para a manutenção do Todo.

A cadeira é um plethos, pois suas partes são unidas extrinsecamente segundo uma lei de proporcionalidade cuja tensão é produzida pela disposição mecânico-geométrica das partes. Um relógio, por exemplo, é feito de partes independentes que são reunidas por um agente produtor em um determinado padrão a fim de realizar e de manter um Todo funcional. O que mantém essa unidade não é um impulso orgânico e sim uma tensão que se deve à disposição das partes segundo suas características geométricas (comprimento, altura, profundidade, forma) e mecânicas (contato, massa, peso, etc).

Ora, o ser humano é capaz de captar intelectivamente essas leis de proporcionalidade intrínseca presentes em cada ente da realidade. Tal capacidade é o que define o homem distinguindo-o de todos os outros entes, sejam animais, vegetais ou inanimados. Aptamente, Mário Ferreira distingue o esquema eidético-noético, presente no intelecto humano, da estrutura eidética, presente nas coisas. A inteligência capta o logos eidético (a lei de proporcionalidade intrínseca) de cada coisa. 

Por isso, é possível falar de "maçã" como um conjunto limitado de características essenciais que, a um só tempo, está presente em cada maçã sem jamais se restringir ou ser esgotado por nenhuma delas em particular, e nem mesmo pelo conjunto de todas as maçãs do presente. O logos eidético da "maçã" é tomado in abstracto, ou seja, como um conteúdo abstraído das maçãs existentes. Essa estrutura eidética da maçã, embora válida para todas as maçãs, é sempre captada no intelecto de um ser humano individual. 

Assim, o que temos no nosso intelecto é o esquema eidético-noético da maçã. Ele é eidético porque se refere ao Eidos (εἶδος, em grego), a Ideia, a essência da maçã. Esse conteúdo é objetivo, corresponde àquilo que realmente a coisa é. Ele é noético (νόησις, em grego) porque esse esquema eidético da maçã é captado em um intelecto, é um conteúdo informativo presente em uma mente. O noético se refere à compreensão, ao conhecimento, e, portanto, pertence a um sujeito cognoscente. Nesse sentido, está em um sujeito (subjectum, no latim), é subjetivo.*

O esquema eidético-noético é o logos eidético quando recebido e contemplado no intelecto de um ser humano. Todavia, o esquema eidético da maçã não pertence à mente humana. Em certo sentido, pertence somente às maçãs. Por outro lado, esta ou aquela maçã, e nem o conjunto de todas as maçãs, esgota ou limita o esquema eidético da maçã. É certo que ele está em todas as maçãs existentes, assim como esteve nas maçãs do passado e estará nas maçãs do futuro. 

Em outros termos, as maçãs no mundo exemplificam concretamente o logos eidético (a lei, a unidade, o padrão) da maçã. A questão é saber se o logos eidético possui alguma existência fora das maçãs concretas. Obviamente, não pode ser uma existência material e singular, como a existência desta ou daquela maçã concreta. Nem poderia ser uma existência universal, como se fosse um ente concreto e ao mesmo tempo uma universalidade.

Na excelente formulação de Mário Ferreira, 

"se as coisas repetem este logos in re, e como há entre elas algo comum, que é a presença do mesmo logos, deve haver uma forma ante rem, que é fórmula do logos concreto, já que este é algo que repete o logos concreto de outro ser da mesma espécie que ele."

O ponto em questão é que o logos (a lei, a fórmula, o padrão, a unidade) é uma comunidade de características que define o tipo de ser que diversos seres são. Todas as maçãs são maçãs porque possuem em comum uma série de atributos essenciais que definem o que é ser uma maçã. O logos, o conjunto comum de características, é repetido, in re, em cada maçã. Mas, ao mesmo tempo, o logos não depende das maçãs, pois nenhuma quantidade delas pode encerrar a possibilidade de novas maçãs.

Então, o logos possui alguma existência ante rem, anterior às coisas, no sentido ontológico (não temporal) de anterioridade, isto é, na qualidade de fundamento, de princípio. O logos não é uma coisa como uma maçã é uma coisa, este ente aqui e agora. Também não pode ser um nada, pois o nada não fundamenta e nem é princípio de coisa nenhuma. Tampouco se trata de uma ficção da mente humana, dado que, se assim fosse, não haveria nenhuma semelhança real entre duas maçãs.** 

Recorramos, novamente, à formulação de Mário Ferreira:

"A identidade estaria na proporção intrínseca, que é a mesma em todos, distinta por distinção numérica neste ou naquele, por que se dá em vários, e distinta concretamente in re, por que se dá naquele."

Pitágoras, Platão e os platônicos formularam a questão sore o modo de existência do logos, que denominaram como Ideia, Forma ou mesmo fórmula. Não podendo ser um ente concreto, singular, como esta maçã, qual o tipo de ser do logos da maçã? Semelhante a todos os logoi, sua existência só pode ser aptudinal, responde o filósofo brasileiro. Os logoi são aptidões do Ser, ou seja, possibilidades de existência que antecedem e fundam ontologicamente a existência concreta das coisas. 

Devemos distinguir entre a possibilidade ontológica de algo e as condições para a sua existência. A possibilidade, enquanto uma aptidão real para a existência de determinado tipo de seres, não varia e nem está submetida a quaisquer condições materiais. Os logoi são possibilidades intrínsecas da Realidade, fora do plano temporal e material. Para que o ser humano pudesse existir concretamente, o logos humano sempre foi intrinsecamente possível. 

Não se segue absolutamente daí que o ser humano existiria necessariamente. A fim de que os humanos existam concretamente, certas condições tem que ser satisfeitas no mundo material. Por exemplo, dado que o homem é um animal, era necessário que a Terra fosse capaz de abrigar e sustentar a vida para que o homem pudesse surgir. Porém, nada impede logicamente que o ser humano jamais pudesse existir de facto em algum lugar do universo. Se todas as condições materiais não estivessem presentes na Terra, o homem não existiria concretamente.

Nada do que foi dito acima significa que a Terra fosse "obrigada" de algum modo a se tornar habitável por causa da possibilidade do ser humano. Não é uma relação segundo a qual a mera possibilidade de algo existir implicasse logicamente que as condições materiais para a sua existência efetiva necessariamente fossem dadas no mundo. Sem embargo, há uma relação de necessidade hipotética entre a possibilidade de algo e as condições para a sua existência efetiva. 

Se a possibilidade X for se realizar concretamente, então as condições Y necessariamente tem que estar presentes no mundo (a relação é somente condicional). Um construtor tem uma ideia de uma casa em sua mente. Nada exige que necessariamente as condições para a realização da casa (materiais, terreno, ferramentas, etc.) estarão presentes e disponíveis. Mas, isso não muda o fato de que se (condicional) o construtor quiser realmente construir a casa, necessariamente tais condições deverão ser atendidas, sob pena de impossibilidade material de construção da casa. 

Independentemente do construtor querer ou não construí-la, aquelas condições são exigidas pela própria lógica da casa. Dito de outro modo, o logos da casa possível exige uma série de condições materiais (que podem ou não existir no mundo) para a sua realização concreta. Não são, tampouco, as condições materiais que tornam a coisa possível. A ausência das condições torna materialmente ou empiricamente impossível (seja momentaneamente ou não) a existência efetiva de algo que é, em si, essencialmente possível.

Em suma, do ponto de vista da Matese***, os logoi são realidades aptitudinais no seio do poder absoluto do Ser. Em termos teológicos, de acordo com Agostinho, são os pensamentos de Deus, os modelos a partir dos quais todas as coisas são criadas. Indo um pouco além do que ensina o filósofo brasileiro, comparativamente, os logoi constituiriam o cosmos noético de Plotino que, por sinal, era denominado Nοῦς e Ser. Acima dele, estaria o Hen, o Uno que dá origem a toda e qualquer unidade. O Logos de todos os logoi, por assim dizer.

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* O conhecimento está em um sujeito cognoscente no sentido de que se trata de um conteúdo que se apresenta "dentro" do intelecto daquele que conhece. Nada disso implica algum tipo de subjetivismo, a doutrina filosófica que, grosso modo, defende que o conhecimento jamais é realmente universal e objetivo, mas que sempre é subjetivo, totalmente relativo ao sujeito. A verdade do conhecimento é objetiva porque corresponde àquilo que é a coisa conhecida. A diferença é que essa verdade é contemplada, compreendida, inteligida de "dentro" de um intelecto humano vivo.

** Nenhuma delas seria, portanto, maçã em nenhum sentido compreensível da palavra maçã. Nem poderia haver maçãs, pois não haveria nenhuma comunidade de sentido que pudesse reunir quaisquer duas coisas sob um mesmo conceito.

*** A Matese, segundo Mário Ferreira a define no livro A Sabedoria dos Princípios, estuda não somente a ontologia, a doutrina do Ser, mas também a meontologia, a doutrina do Não-Ser. 

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

Um comentário:

Maurício Santos disse...

Texto muito bom ...as formas são diferentes entre si ...mas o questão é da onde vem as formas por que elas são do jeito que são...Apenas a analise da matéria não responde essa questão Sempre tem algo bom p se ver aqui no blog