quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte 2

"Com tais rugidos, do fundo da cova a Sibilia cumana
conta mistérios terríveis em termos escuros, de envolta
com verdadeiros sucessos. Destarte a deidade dirige
seus arrebatos e o peito ofegante com rédeas lhe açoita."

VIRGÍLIO, Eneida, Livro VI, 100 (tradução de Carlos Alberto Nunes)

O centro do livro VI da Eneida é a catábase (κατάβασις), o tradicional tema simbólico da descida do herói ao mundo subterrâneo dos mortos. O piedoso Eneias, seguindo os conselhos da sombra (umbra) de seu pai Anquises, dirige-se pressuroso à Cuma tão logo desembarca na Itália, sobe o monte onde Apolo tem seu templo, e vai até à enorme caverna onde vive a sibila que o conduzirá pelo Orco. 

Virgílio chama Apolo de "vate de Delos" que inspira a sibila a profetizar o futuro. A figura do vate desempenha na religião romana funções análogas ao "mantis" (μάντις, vidente, profeta) da religião grega. Nascido na ilha de Delos, Apolo era o deus helênico da poesia, da música, da cura, das purificações (kαθαρμοί) e da inspiração proféticaApolo é vate porque o vidente inspirado por ele tem o "deus dentro" (ἔνθεος), está tomado pelo "entusiasmo" (ἐνθουσιασμός), e pode então proclamar a vontade dos deuses e predizer os acontecimentos vindouros.*

O oráculo (μαντεῖον) apolíneo de Delfos era um dos centros religiosos mais importantes da Grécia antiga, e sua fundação se dá quando Apolo mata a serpente Python (Πύθων) que dominava o sítio dedicado à sua mãe Gaia. O mito remete ao simbolismo da luta cosmogônica do deus (ou herói) solar contra a serpente (dragão, besta), isto é, a ação do princípio ordenador sobre as potências caóticas e amorfas. Apolo mata a besta e toma para si o oráculo, ato que destitui divindades arcaicas e titânicas (Python Gaia) de seus postos ancestrais e funda a nova ordem dos olímpicos (vide a Teogonia de Hesíodo).

Eneias sobe ao templo do Apolo solar antes de descer à escuridão do reino subterrâneo. Tal qual o deus matador da serpente, Eneias é também um ordenador (fundador de cidade) que enfrentará as monstruosidades do Orco para iniciar uma nova era (Roma). Para tanto, o herói precisou deixar para trás as forças recalcitrantes que não terão lugar no ciclo que se avizinha, e agora é mister a purgatio completa, a morte iniciática sob a égide do deus das purificações (kαθαρμοί) que elimina todo o miasma (pollutio, polução, impureza) e faculta ao homem a participação digna nos ritos sagrados.

Considerada sob o ângulo do simbolismo das iniciações, a catábase significa "uma reintegração dos contrários, uma regressão ao indistinto primordial. Em suma, trata-se da restauração simbólica do 'caos', da unidade não diferenciada  que precedeu à Criação, e esse retorno ao indistinto se traduz pela suprema regeneração, por um crescimento prodigioso de potência".** O descenso ao mundo subterrâneo equivale à morte e à regeneração rituais. O homem dissolve-se no caldo primordial caótico e renasce imbuído de um novo status ontológico.

No nível macrocósmico, o novo ciclo é precedido pela retração e pela reabsorção das formas antigas, pela dissolução completa do Cosmos até então vigente. Em seguida, regeneradas as forças produtivas pelo "retorno ao Caos précosmogônico, com a imersão no reservatório ilimitado de poder que existia antes da Criação do mundo", o ciclo seguinte começa a sua auspiciosa manifestação. No nível microcósmico, o iniciado morre para a sua existência anterior e posteriormente retorna num patamar ontológico superior que faculta seu acesso a conhecimentos e a poderes que antes lhe eram vetados.

Eneias chega ao templo de Apolo, cujas portas foram belamente adornadas por Dédalo quando este pousou em Cuma fugindo com seu filho Ícaro da Creta do rei Minos. As imagens entalhadas nas portas davam conta da façanha de Teseu que matou o Minotauro com a ajuda de Ariadne. O símbolo celeste/solar de Apolo é reforçado pela referência a Dédalo, o homem que foge do labirinto ascendendo aos céus. O tema de Teseu representa os trabalhos do herói que enfrenta a besta/monstro no labirinto guiado pela mulher, o que antecipa o próprio Eneias conduzido pela sibila nos Infernos.

Deífobe, a sibila, aparece e conclama o troiano a deixar de lado as imagens gravadas nas portas do templo e a realizar os ritos sacrificiais prescritos imolando sete touros e sete ovelhas. A vate é sacerdotisa da Trivia e de Febo. A Trivia é a Hecate, deusa terrível que faz parte dos Di Inferi, os "deuses de baixo", e que era cultuada nas encruzilhadas (trivia). O fato de ser também consagrada à Apolo torna a sibila de Cuma um símbolo da união dos opostosRepresenta a figura do guia perfeito que transita nos caminhos que vão do polo celeste e solar ao polo infernal e escuro. Só ela pode conduzir o troiano na sua catábase.

Deífobe é filha de Glauco, deus marítimo que possuía dons proféticos. A relação paternal com o mar justifica simbolicamente o poder da sibila de predizer o futuro. As águas representam tradicionalmente as potencialidades indistintas que o fundo da realidade contém, e deuses marítimos como Proteu são capazes de assumir inúmeras formas. Em ambos os casos, manifesta-se a ligação com o possível, com aquilo que ainda não aconteceu.

Não obstante, o aspecto aquático é passivo e justifica somente a susceptibilidade da sibila à dimensão amorfa das possibilidades. É necessário que venha de cima o mandato celeste que antecipa o que de fato acontecerá dentro do campo indefinido dos possíveis. O aspecto solar e ativo do dom profético faz sua aparição quando a vate anuncia: "deus ecce deus!" ("Eis o deus! Eis o deus").

Na caverna de cem portas e cem caminhos subterrâneos (um labirinto) onde vive, a sibila muda de fisionomia, parece maior do que é, cabelos desgrenhados, sua voz torna-se ofegante, diferente e profunda. O numen, o "poder" ou "vontade" de Apolo, anuncia a sua presença. O sangue gela e o tremor toma conta dos homens diante do Mysterium Tremendum. Eneias dirige-se ao deus, reconhece sua proteção na fatídica guerra de Troia, suplica que os divos permitam que se estabeleçam ali na Itália finalmente os penates, divindades troianas trazidas com tanto zelo pelo piedoso herói na sua fuga da sagrada Ílion.

Promete ainda construir templos dedicados à Trivia, a Apolo e à própria sibila, para guardar as suas profecias. Virgílio apresenta nesse episódio a origem da importante tradição romana dos oráculos sibilinos. Conta-se que a sibila, cortejada por Apolo, pede ao deus o dom de viver tanto quanto o punhado de grãos de areia que recolhera do chão. Contudo, esquece-se de pedir também a permanência de sua juventude, e acaba condenada a envelhecer indefinidamente.

Mais à frente no tempo, a sibila oferece a Tarquinius, o rei de Roma, seis livros contendo suas profecias. Como achasse caro demais o preço pedido, o soberano recusa a oferta e a vate queima três livros. Volta a oferecer os restantes pelo mesmo preço, e o rei se recusa a pagar. Mais três livros são queimados e os três sobrantes finalmente são comprados por Tarquinius, que os depositou no templo de Jupiter no Capitólio. Durante a república, a coleção de versos era consultada sempre em situações de crise e interpretada pelos augures.

Tendo feito suas promessas, Eneias recebe a resposta de Apolo. As cem portas se abrem para reverberar a voz da sibila que esbraveja, contrai os lábios, espuma e, tomada pelo entusiasmo, finalmente liberta de seu peito as palavras do numen. Haverá guerras, o rio Tibre será tomado de sangue, um outro Aquiles terá de ser enfrentado, uma mulher estrangeira será causa de muitos sofrimentos, mas não tema e nem desista o herói, pois ao fim o socorro de uma cidade de dânaos conduzirá tudo a bom termo.

Com a mão posta sobre o altar sagrado, Eneias solicita à sibila que o guie pelo domínio subterrâneo até o sítio onde se encontra a sombra de seu pai Anquises. Descer ao Dite, o reino dos Di Manes (os mortos), é tarefa sem dificuldades, responde a vate, pois seus portões estão sempre abertos. O desafio é conseguir retornar ao claro mundo dos vivos, como o fizeram Orfeu, Castor e Hércules. 

Entregar-se à dissolução nas águas inferiores não demanda esforço. Perder a própria unidade não requer trabalhos. "Pois o comum desce ao Orco em silêncio", dizia Friedrich Schiller. A proeza do herói é justamente empreender por vontade a catábase, o descenso aos Infernos, e, após enfrentar a escuridão do Érebo, ascender de volta ao mundo dos viventes, anábase, dignificado tal qual o iniciado que contemplou o segredo (ἐποπτεία) dos mistérios.

A sibila responde que Eneias atravessará em segurança aquelas tenebrosas paragens se trouxer consigo o ramo de ouro que nasce no bosque do Averno. Todavia, antes da descida infernal, o troiano deve realizar os ritos fúnebres apropriados para um companheiro insepulto cuja morte contamina a todos com a pollutio (miasma, entre os gregos). Duas pombas gêmeas, nas quais Eneias reconhece a ação de sua divina mãe, Venus, aparecem e guiam-no até à árvore de onde nasce o ramo áureo. 

A árvore simboliza o axis mundi, o "eixo do mundo", que liga as coisas terrestres às celestes, atravessando todos os mundos intermediários. A pomba é símbolo das realidades espirituais que atuam como mensageiros (ἄγγελος, anjo) do plano divino, mas também podem representar os elevados pensamentos que devem ocupar a mente daqueles que querem se aproximar da árvore da vida. O herói toma para si o ramo dourado, e logo depois um outro nasce no lugar do que foi arrancado. O poder criador e regenerador da árvore da vida é infinito.  

A simbologia do ramo áureo é claramente solar (ouro). Quem desce à indistinção do mundo subterrâneo deve trazer consigo o Sol, o poder ativo, determinador e ordenador da realidade, tal qual um facho no meio da noite. O ramo dourado é um símbolo (σύμβολον) também no sentido antigo de permissão, tokenpasse ou senha. Há paralelos disso na tradição religiosa grega. No orfismo, por exemplo, lâminas douradas com instruções para a catábase eram colocadas sobre as mãos, peito ou boca dos mortos. 

As lâminas recomendavam aos falecidos que não bebessem das águas do rio Lethe (Λήθη, "esquecimento"), mas que, ao contrário, se apresentassem aos guardiões do Hades a fim de que lhes fosse franqueado o acesso ao lago de Mnemosine (Μνημοσύνη, "memória"). Os iniciados nos mistérios de Orfeu declaravam aos guardiões que eram filhos "da Terra e do Céu estrelado", que pertenciam à estirpe celeste, e que estavam secos de sede. As instruções eram, então, uma senha que facultava ao iniciado a manutenção da memória e da identidade pessoal no reino das sombras esquecidas de sua vida terrestre. 

Retornando a seus homens, Eneias toma ciência de que Miseno, escudeiro do bravo e nobre Heitor, morrera afogado e permanecia insepulto. Uma alta pira funerária de quatro lados é erguida, coberta de negra folhagem e encimada pelas armas do defunto. Seu corpo é lavado, perfumado, conduzido à pira e queimado. Um mausoléu no sopé de um monte abriga as cinzas de Miseno depositadas numa urna de bronze.

De posse do ramo dourado e purificado da pollutio pela realização dos ritos fúnebres devidos, o piedoso Eneias está pronto para empreender a viagem infernal em busca do pai Anquises. 

(Encerra na parte 3) 
...
** Mephistophélès et l'androgine, de Mircea Eliade, p.164 (tradução minha)
... 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte 1

"A fina flor dos guerreiros troianos, os homens mais fortes conduze à Itália. Com gente mui dura e de trato difícil terás de haver-te no Lácio. Porém, antes desce às moradas do torvo Dirte."

ANQUISES, Eneida, Livro V, 730 (trad. Carlos Alberto Nunes)

A descida do herói ao mundo subterrâneo, a catábase (κατάβασις), é um tema mitológico tradicional. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Odisseus (Ulisses) descendo ao Hades para consultar o vidente cego Tirésias na Odisséia. Também o piedoso Eneias desce ao Orco na Eneida a fim de encontrar seu venerável pai Anquises. 

Após o trágico episódio da imolação da rainha Dido ocasionado por sua partida de Cartago, Eneias chega à Sicília, onde é recebido pelo rei Acestes (Livro V). Ali seu pai Anquises havia sido enterrado há um ano, e o herói troiano realiza os ritos fúnebres devidos, e comemora o progenitor com jogos. Os heróis defuntos são tradicionalmente homenageados nos ritos fúnebres com certames, como se testemunha nos funerais de Pátroclo na Ilíada.*

Os jogos são expressões do agon (ἀγών, no grego), isto é, o esforço, o combate, e, sobretudo, a proeza, apanágio das castas guerreiras. Competições navais, corridas a cavalo, desafios de arquearia e lutas de pugilismo entre os companheiros de Eneias são seguidos pela distribuição dos prêmios valiosos aos vencedores. Os guerreiros manifestam seu valor nas proezas bélicas e nos certames atléticos.

Findos os jogos, Eneias vai ao sepulcro de Anquises e verte ali duas crateras cada de vinho, de leite e de sangue, e deposita flores. Os ritos dedicados aos Di Manes, os defuntos, no aniversário de sua morte eram parte da religio romana da época de Virgílio. Uma serpente enorme com sete anéis sai do túmulo, dá sete voltas nos altares, prova as oferendas e retorna ao lugar de origem. Eneias não sabe se a aparição é o gênio do lugar ou se é uma mensageira de Anquises. Imola em seguida cinco ovelhas, cinco porcos e cinco touros negros.

genius (daimon grego) era o poder de ação de uma pessoa, de um objeto ou de um lugar constituído no seu nascimento ou na sua criação, e era geralmente representado por uma serpente ou por um homem togado carregando uma cornucópia. A dúvida de Eneias era se se tratava da aparição do genius do lugar onde estava o sepulcro ou se de uma mensageira de seu pai. A ligação da serpente com os mortos vem dos gregos que acreditavam que os falecidos podiam se manifestar na forma de cobras.

O combate do herói (ou do deus) com a serpente (ou dragão) rebelde à imposição da forma e da ordem é um tema cosmológico tradicional. O ritus é sempre um ato ordenador (Ṛta, em sânscrito, é ordem), e Eneias é o herói que executa o rito devido. O morto é apaziguado, as forças rebeldes são domadas, e a serpente que sai do túmulo não ataca nenhum dos presentes, age ordenadamente e retorna ao seu lugar. É um símbolo do poder cosmogônico do sacrifício, compreensão que remonta aos Vedas.

Os sete anéis e as sete voltas em torno dos altares têm outros significados simbólicos. O sete era considerado um número sagrado entre os pitagóricos, "aquele que traz a conclusão", o que completa os ciclos e dá a forma final aos entes, aquele que reúne e fecha numa unidade indissolúvel os elementos que compõem as coisas. Será graças à consulta a Anquises que a peregrinatio marítima de Eneias encontrará seu termo com o desembarque na costa da Itália. A primeira parte da própria Eneida tem seu fim no episódio da catábase.**

Há sete anos a frota troiana vaga pelos mares. O sentido simbólico geral é de desfecho, de encerramento de um ciclo. Chegou o momento certo (καιρός) para a partida de Eneias da Sicília. Para tanto, ele terá de deixar para trás os elementos recalcitrantes e inadequados à nova realidade que está por vir. Enviada por Juno, a mensageira dos divos, Íris, instiga as matronas insatisfeitas a incendiarem os navios troianos. As velhas representam forças arcaicas pertencentes ao ciclo anterior que não têm lugar nos vasos que conduzirão ao novo ciclo. 

Uma vez mais, o herói deve decidir entre fixar morada no lugar onde se encontra ou seguir as promessas divinas. Quatro naus incendiadas estão perdidas. Jupiter, invocado pelas orações de Eneias, intervém lançando sobre a terra uma tempestade desmesurada (tempestas sine more) que apaga o fogo das naves restantes. O deus supremo, Iuppiter omnipotens, inunda o mundo com um dilúvio, mas assegura a passagem do herói numa embarcação.

"Nate dea, quo fata trahunt retrahuntque, sequamur; 
quidquid erit, superanda omnis fortuna ferendo est"

"Nascido da deusa, sigamos o Fado quer conduza para lá ou para cá; o que quer que aconteça, é preciso superar a Fortuna suportando tudo" diz Nautes, o ancião versado na arte dos augúrios, aconselhando Eneias a deixar as velhas e os inválidos na Sicília, onde seria fundada uma cidade nomeada Acesta em homenagem ao rei Acestes. Sob o manto negro da noite, a fim de dirimir todas as suas dúvidas, a sombra (umbra) de Anquises vem exortar o filho a seguir o conselho de Nautes. Eneias deve deixar os recalcitrantes para trás, partir para o Averno, descer ao Orco acompanhado da sibila de Cuma, e ali encontrá-lo para saber o que o aguarda na Itália.

Eneias realiza os ritos sagrados de fundação da cidade. Com uma charrua, risca seus limites. Virgílio antecipa em Eneias a tradição segundo a qual Rômulo, séculos depois do troiano, cavou com uma charrua os limites de Roma. O primeiro ato de Rômulo foi cavar o mundus, o poço circular que ligava o reino dos vivos ao dos mortos, e no qual eram depositados as primícias das colheitas. O mundus era fechado por uma pedra, só sendo aberto nos dias em que era franqueado o acesso dos Di Manes ao domínio dos viventes. 

O sulco circular feito pelo arado estabelecia o pomerium, o limite sagrado da cidade. Eneias ergue um templo dedicado à sua mãe Venus num monte alto (Axis Mundi) e destina ao túmulo de seu pai um bosque um sacerdote. A nova Troia será governada por Acestes que terá como seus súditos as velhas, os inválidos e a gente não desejosa de glória. Acestes representa o rei do ciclo que finda, reina sobre as realidades que foram esgotadas, e que, portanto, não serão passadas ao novo ciclo.

A frota troiana não parte da Sicília sem que antes Eneias, com a cabeça coroada por folhas de oliva (ritus graecus), realize os devidos sacrifícios aos numes marítimos, Erix e Netuno (Neptunus). O mar é símbolo do amorfo, do caldo das potencialidades, e possui, a depender do ângulo, tanto o sentido positivo das possibilidades auspiciosas, regeneradoras e benéficas quanto o sentido negativo do caos dissolvente e da desordem. O herói precisa novamente apaziguar as forças rebeldes da realidade. O rito sacrificial cumpre esse propósito ordenador.

Venus, a mãe de Eneias, suplica a Netuno que permita ao filho chegar em segurança ao seu destino. O senhor dos mares garante a realização do desejo da diva, mas adverte que um dos troianos perderá a vida em pagamento dessa dívida. Palinuro, o timoneiro e guia da frota, é visitado à noite por Somnus (Hypnus grego), deus do sono, que, assumindo a aparência de um amigo, tenta convencê-lo a deixar o leme e adormecer. Ele não cede, diz que a calmaria não o engana, e que vai permanecer no comando da nave para garantir a segurança de Eneias e de seus companheiros.

Somnus lança sobre Palinuro água do Lethes, o rio do esquecimento situado no Orco (Hades). Ato contínuo, o homem desfalece e cai nas águas, deixando a nau sem guia. Percebendo a ausência do amigo, o próprio Eneias assume o comando, e lamenta a sua trágica morte, condenado a ficar insepulto e sem nome. O afogamento de Palinuro foi o preço pago pela proteção dada por Netuno à frota. Os divos dão e tiram segundo seus desígnios, e os destinos humanos seguem um curso que é decidido nas instâncias superiores da realidade. 

Não obstante, Palinuro simboliza o homem que almeja guiar o navio ao próximo ciclo sem que seja o eleito pelas forças divinas. Ele desconfia da calmaria alcançada pela eficácia do rito, quer tomar para si a responsabilidade de assegurar o bom termo da viagem de Eneias. Não são os homens que garantem a passagem ao novo ciclo. O desafortunado Palinuro desce às águas dissolventes, nas quais fica insepulto e perde seu nome, isto é, sua identidade neste plano da realidade, de modo análogo às almas descidas ao Hades que perdem sua memória ao beberem da água do rio Lethes.

Célere, Eneias dirige sua frota à Cuma, no continente italiano, onde se encontra o Averno, a entrada do Orco. Ali o herói fará a sua catábase guiado nos Infernos pela sibila, sacerdotisa de Apolo, deus da profecia e das purificações.

(continua na próxima postagem)
...
** Sob outro ângulo, os sete anéis talvez simbolizem os sete corpos celestes visíveis (Sol, Lua, Vênus, Júpiter, Marte, Mercúrio e Saturno), e as sete voltas em torno dos altares representem o Cosmos que tem seu centro no divinoAs revoluções celestes que marcam o tempo, a cronologia, cujo senhor é o sétimo planeta, Saturnus (Cronos, para os gregos). 
...

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O ser humano segundo o Advaita Vedānta

"Porque sou também o Um, o Sutil, o Conhecedor, a Testemunha, o Eterno e o Imutável, então não resta dúvida de que Eu sou 'Isso' (Brahman). Tal é essa instrução."

ĀDI ŚANKARACARYA, Aparokṣānubhūti, 16

O curto tratado Vedānta-Sara, cuja autoria é atribuída ao acharya (mestre) Sadananda Yogendra Saraswati (século XVI D.C.), é um dos textos clássicos da escola ortodoxa hindu Advaita Vedānta (não-dual) cujo maior representante é o mestre Śrī Ādi Śaṅkarācārya (XVIII-IX séculos D.C.). O livro versa sobre a composição do ser humano, os meios para a libertação (Mokṣa), e a natureza da realidade. A sua parte introdutória é dedicada a esclarecimentos preliminares e às qualificações necessárias ao discípulo.

Vedānta significa literalmente o "fim dos Vedas", isto é, a realização e encerramento dos textos sagrados primordiais do Hinduísmo, e refere-se usualmente aos Upaniṣads. Os quatro Vedas, os Upaniṣads e alguns outros textos (brāhmaṇas, āraṇyakas) constituem a Śruti, o cânone central e definidor da doutrina ortodoxa (Āstika) hindu. A escola Advaita aceita integralmente a autoridade incontestável da Śruti, e considera o Vedānta como pramāṇa, um meio ou modo correto de conhecimento.

Os pramāṇas reconhecidos pelo Advaita são pratyakṣa (percepção)anumāna (inferência), upamāna (analogia)arthāpatti (presunção)anupalabdhi (não-apreensão) śabda (palavra, testemunho), no qual é alocado o Vedānta. O scholar indiano T.M.P. Mahadevan, aluno e discípulo do grande Surendranath Dasgupta, resume no seu livro The Philosophy of Advaita a posição dessa escola:

"Para o Advaita a corte final de apelação é o testemunho do Vedānta. Śruti é superior em validade aos outros pramāṇas como a percepção e a inferência. Com relação àquilo que é sensível, contudo, a perceção, etc, podem funcionar validamente. Mesmo mil injunções das escrituras não podem converter um pote em um pedaço de pano. Mas naquilo que é suprassensível a Śruti é suprema." (p. 62, tradução minha)

O estudante qualificado (pramātā) do Vedānta é aquele que, seguindo as regras prescritas pela via do Brahmacarya*, estudou profundamente os Vedas, evitou celebrar os ritos com objetivos mundanos, absteve-se das ações proibidas (Niṣiddha Karma), realizou os ritos diários obrigatórios e nas ocasiões especiais, e adotou as quatro Sādhanās: desapego (Vairāgya), discriminação (Viveka), anseio pela libertação (Mumuksutva) e o conjunto das seis virtudes: a imperturbabilidade (Śama), o autocontrole (Dama), o afastamento das coisas sensíveis (Uparati), a paciência (Titikṣā), a fé na autoridade dos Vedas (Śraddhā) e a concentração da mente (Samādhāna).

O último requisito é ser discípulo de um Guru, um mestre espiritual versado nos Vedas e que vive em Brahman. Tendo determinado a qualificação necessária ao estudante, Sadānanda passa a expor a estrutura da realidade e do ser humano enquanto parte dela. Ele inicia dizendo que a superimposição (Adhyāropa ou Adhyāsa) acontece quando algo falso é sobreposto ao verdadeiro, como no caso do homem que confunde uma corda enrolada com uma cobra. 

A corda confundida com a corda é um tropo característico do Advaita, utilizado para ilustrar a relativa inexistência do mundo fenomênico face a Brahman, o único merecedor do nome de existente. É claro que a ilusão da cobra tem alguma existência, ainda que tênue e precária, pois não se trata do Nada puro e simples. Mas a ilusão existe na dependência absoluta de algo que não é ela mesma, e desaparece tão logo reconhecemos a realidade da corda. 

Analogamente, ao reconhecermos a realidade de Brahman, a ilusão (relativa) do mundo fenomênico é desfeita. No Avadhūta Gītā, outro texto venerável da tradição Advaita, atribuído a Dattātreya, ilustra esse ponto por meio de uma analogia diferente: "Quando o pote é quebrado, o espaço dentro dele é absorvido no espaço infinito e se torna indiferenciado. Quando a mente se torna pura, não percebo qualquer diferença entre a mente e o Ser Supremo." (cap. 1, 31)

Esclarecido o sentido de Adhyāsa, a superimposição do falso sobre o verdadeiro, Sadānanda diz que a realidade é Brahman, o "Um sem segundo" (Advitīya), "Existência-Consciência-Beatitude" (Satcitānanda). A irrealidade é a ignorância (Avidyā). O mundo fenomênico, com toda a sua multiplicidade, é a imposição da limitação (Upādhi) sobre o ilimitado. Brahman não tem um segundo porque se houvesse um outro no mesmo nível que ele, necessariamente um limitaria o outro. Em outros termos, Brahman é o Absoluto, o infinito, o ilimitado.**

Śaṅkarācārya, no verso 16 de seu tratado Aparokṣānubhūti, diz que "eu também sou o Um, o Sutil, o Conhecedor, a Testemunha, o Eterno e o Imutável, então não resta dúvida de que Eu sou 'Isso' (Brahman). Tal é essa instrução". No verso seguinte (17), o mestre complementa: "Ātman é verdadeiramente um e sem partes, enquanto o corpo consiste em muitas partes. Ainda assim, os ignorantes confundem esses dois como se fossem um. O que mais pode ser chamado ignorância senão isso?". 

Eis o ponto fulcral do Advaita: a identidade não-dual entre Brahman Ātman. Ātman, por vezes traduzido como "Eu", "Si" ou "Alma", é a pura consciência, una, eterna, não identificada com o composto psicofísico, seja o corpo sutil ou o corpo grosseiro ou com qualquer limitação que seja. É a luz que consiste na manifestação de todos os objetos, a Testemunha de todos os atos, o verdadeiro Eu livre de todas as limitações acessórias.

Māyā (medida, ilusão, truque, magia), o mundo fenomênico, é incompreensível (Anirvacanīya), não possui começo ou fim no tempo, é o mistério fundamental da manifestação, do "vir à existência" (Prādurbhāva) das coisas. É chamado ignorância porque, quando o sábio compreende que só Brahman é real, tudo o mais desvanece tal qual o desconhecimento some quando o conhecimento acontece. 

Brahman Nirguna é o Absoluto tomado em si mesmo, sem nenhuma das três gunas, as manifestações qualitativas primárias: sattva (serenidade), rajas (ação) e tamas (inércia). Brahman é Saguṇa quando obnubilado pelas gunas que compõem as coisas isoladamente ou em diversas proporções. O Princípio a partir do qual nascerão todos os entes é Īśvara, o Senhor, o onisciente, o indiferenciado, o guia interno, o controlador de tudo. Īśvara é Brahman encarado a partir do ponto de vista do mundo, enquanto causa de tudo. 

Essa distinção não é estranha ao pensamento filosófico ou teológico no Ocidente. Īśvara corresponderia a Deus, o Absoluto visto a partir da relação de dependência ontológica que os entes contingentes estabelecem com Ele. Assim, Deus é a primeira limitação (Upādhi) na medida em que o Absoluto aparece sob o prisma da relação de causalidade. Contudo, por trás do véu das coisas está a Realidade Última, o Absoluto tomado em Si mesmo, sem relação com nada, indizível, incognoscível, incompreensível, sobre o qual só podemos falar negativamente (Nirguna, Amūrtaḥ, Neti Neti, etc.).***

Swami Nikhlananda comenta que "o Vedāntista não crê que Īśvara seja a existência absoluta porque ele é tão irreal quanto o universo fenomênico. Brahman associado à ignorância é conhecido como Īśvara. A diferença entre Īśvara e o homem ordinário é que o primeiro, embora associado à Māyā, não está preso às suas cadeias, ao passo que o segundo é seu escravo. Īśvara é a mais excelsa manifestação de Brahman no universo fenomênico."

Īśvara é puro sattva, e, em razão da beatitude (ānanda) que o caracteriza, recebe o nome de Ānandamayakośa, "o envoltório ditoso". Nele as coisas têm a sua origem e o seu retorno, no qual tudo é dissolvido e reabsorvido no "sono cósmico". A realidade fenomênica, assim como a vida do ser humano, apresenta três estados: Taijasa (vigília)Viśva (sono com sonhos) e Prajñā (sono sem sonhos). Na vigília, o homem experimenta o mundo grosseiro dos objetos físicos existentes extra mentis. No sono com sonhos, o mundo é sutil, constituído por objetos que só existem intra mentis, produzidos pela função onírica. 

O sono sem sonhos é descrito pelo Māṇḍūkya Upaniṣad nos seguintes termos:

"5.O estado de sono profundo é aquele em que o homem dorme e não deseja nada e não sonha. O terceiro estado é Prajñā, que tem o sono profundo como sua esfera e em quem tudo se torna indiferenciado, uma massa de sabedoria que abunda em bem-aventurança, experimenta a bem-aventurança e que é a porta para a experiência (dos estados anteriores)."

O homem, o microcosmo, repete analogamente em sua vida cotidiana a estrutura do mundo fenomênico, o macrocosmo. Outrossim, existe o movimento de contração no qual o homem acordado deixa o mundo externo ao se recolher no sono que, de início, é povoado por sonhos, mas que é ultrapassado pelo estado feliz no qual são dissolvidas tanto as impressões sensoriais externas quanto as quimeras da imaginação onírica. E, no sentido inverso, acontece o movimento de expansão, quando o homem passa da indistinção primordial à distinção sutil dos sonhos e, por fim, desperta para o universo da experiência grosseira dos corpos externos a ele.

Prajñā, no domínio macrocósmico, é tanto a origem quanto o retorno do mundo fenomênico. O caminho que vai de um ao outro pode ser encarado nos dois sentidos, seja subindo (ou contraindo) das franjas da realidade até seu Princípio, seja descendo (ou expandindo) do Princípio até às franjas da realidade. Acima dos três estados da manifestação cósmica existe um quarto, Turīya, que corresponde à Brahman Nirguna. Portanto, Turīya não pode ser considerado rigorosamente um estado, visto que se trata do Absoluto inqualificado.****

Semelhante correspondência encontra-se também entre os estados da realidade fenomênica e a sílaba sagrada OM, formada pelas letras A,U,M. Cada uma simboliza um estado da realidade, iniciando-se com A (Prajñā), passando por U (Taijasa) e encerrando com M (Viśva). Antecedendo a pronúncia das letras, e sucedendo-as, encontra-se o silêncio que representa a natureza inexprimível de Turīya. 

A ignorância tem os poderes de ocultamento e de projeção pelos quais uma nuvem que se posta à frente do Sol obnubila a sua visão. Este mundo de existência relativa (Saṃsāra) tem seu fundamento em Brahman da mesma forma que a ilusão da cobra tem seu fundamento na corda. A aranha é, a um só tempo, a causa eficiente e a causa material da teia que ela tece. Por um lado, a aranha é a causa eficiente, pois é ela que efetua a existência da teia. Também é sua causa material porque é de si mesma que a aranha tece a teia.

Īśvara, enquanto Princípio do mundo fenomênico, dá origem primeiramente ao éter (Ākāśa), no qual predomina tamas, a guna da inércia. O éter gera o ar, o fogo, a água e a terra, que são os elementos rudimentares (tanmātras) e incompostos que entrarão na composição de todas as coisas sutis e grosseiras. Note-se en passant que na cosmologia vedantina, assim como na tradição platônico-aristotélica ocidental, os constituintes elementares de tudo neste mundo são de natureza qualitativa, e não quantitativa segundo é defendido em correntes materialistas.

O corpo sutil (Linga-Śarīra) é formado por dezessete componentes: intelecto, mente, cinco órgãos dos sentidos, cinco órgãos de ação e cinco forças vitais. O intelecto (Buddhi) é um aspecto do âmbito mental ou instrumento interno (Antaḥkaraṇa), junto com o ego (Ahaṃkāra), mente (Manas) e memória (Citta). Buddhi determina a real natureza de um objeto, sendo a parte mais alta de Antaḥkaraṇa, e da qual provém Ahaṃkāra, a egoidade (o prefixo aham significa "eu"). Manas é a sede do pensamento e da vontade, é cambiante, oscila entre prós e contras, não determina com certeza o que é o objeto, e comanda o corpo grosseiro.

Os cinco órgãos dos sentidos são a visão, a audição, o paladar, o tato e o olfato. Cumpre notar que o termo "órgão" não se refere às partes do corpo físico como os ouvidos, os olhos, o nariz, etc. Antes, trata-se, por assim dizer, dos "poderes", das "faculdades" ou dos "princípios" a partir dos quais os respectivos órgãos físicos operam concretamente nas suas relações com o mundo externo grosseiro. 

Buddhi e Ahaṃkāra associados aos cinco órgãos dos sentidos formam Vijñānamayakośa, o "envoltório cognoscente". Cônscio de sua natureza de agente, de desfrutador da realidade fenomênica, e de seu estado de felicidade ou de infelicidade, Vijñānamayakośa é identificado ao Jīva (eu individual) submetido à transmigração. 

Manas associada aos cinco órgãos dos sentidos é chamada Manomayakośa, o "envoltório mental", sede da mente, da vontade, dos sentimentos e das emoções. O termo sânscrito Manas está ligado à mens no Latim, à mind no inglês, etc. É o que distingue o ser humano (Manuṣya) enquanto espécie dos outros animais. Desenvolve-se junto com o corpo grosseiro, e é abandonado antes do renascimento.

Os cinco órgãos de ação junto com as cinco forças vitais formam Prāṇamayakośa, o "envoltório vital" que se desfaz junto com o corpo grosseiro no evento da morte. As mãos, os pés, a voz, a excreção e a reprodução perfazem os órgãos de ação. As cinco forças vitais (vāyus, "ares", "ventos", "sopros") são Prāṇa (ascensional, sediada na ponta do nariz), Apāna (descensional, sediada no órgão excretor), Vyāna (pervade o corpo inteiro em todas as direções), Udāna (ascensional, sediada na garganta) e Samāna (assimila os alimentos, sediada no meio do corpo). 

Vijñānamayakośa é o agente, Manomayakośa é o instrumento, e Prāṇamayakośa, dotado de atividade, é o resultado. Os três envoltórios formam o corpo sutil (Linga-Śarīra), e este corresponde ao sono com sonhos (Taijasa) no indivíduo, e a Hiraṇyagarbha ("útero dourado") no nível cósmico. Em ambos, os poderes correspondentes já estão distintos uns dos outros e ordenados, mas permanecem em estado potencial, ainda não se efetivaram no mundo grosseiro. A imagem do útero remete ao embrião, aquele que em algum momento nascerá. 

O corpo grosseiro (Sthūla-Śarīra) é fruto da composição dos cinco elementos (éter, água, terra, fogo e ar) segundo a razão de metade de cada elemento somado a um oitavo de cada um dos outros quatro. Trata-se do corpo fisicamente considerado, com todas as suas funções atualizadas e operando segundo sua natureza. É chamado Annamayakoṣa, "envoltório alimentar", e corresponde à vigília (Viśva) no âmbito do indivíduo, e a Virāṭ no nível cósmico. O homem físico vive no mundo físico, onde desfruta concretamente dos entes grosseiros como ele.

Brahman -  Absoluto - Turīya 
Ānandamayakośa - Īśvara - Prajñā (sono sem sonhos)
Vijñānamayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Manomayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Prāṇamayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Annamayakoṣa - corpo grosseiro - Viśva (vigília)
...
** A negação do "segundo" é a negação da multiplicidade. Se Brahman fosse somente o primeiro, poder-se-ia pensar que haveria um segundo, um terceiro, um quarto, etc.
*** Na tradição ocidental essa forma de se referir ao Absoluto denomina-se teologia negativa ou apofatismo. Vide: Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita, teologia catafática e teologia apofática

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Aristóteles, Física e a natureza do vazio (Livro IV) - parte 2

"Porém, ainda que o consideremos em seus próprios termos, o assim chamado vazio revela-se algo vácuo."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 8, 216a

A existência do vazio impossibilita o fenômeno dos movimentos dos corpos na direção de seus lugares naturais. E, por consequência, eliminado o movimento natural, elimina-se o movimento violento. Aristóteles afirma que, na ausência dos lugares naturais, um corpo colocado em movimento não teria razão para parar aqui ou ali:

"Ademais, ninguém poderia dizer por que razão um objeto posto em movimento deveria parar em qualquer lugar. Por qual motivo ele deveria parar aqui e não ali? De tal modo que um objeto vai permanecer em repouso ou vai mover-se infinitamente, a não ser que algo mais forte o impeça." 

Curiosamente, a passagem aristotélica aproxima-se da formulação clássica que seria dada ao primeiro axioma ou lei do movimento (o famoso "princípio da inércia") por Isaac Newton no início da física moderna: "Todo corpo persevera em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta a menos que seja compelido a mudar esse estado por forças impressas sobre ele." *

Considera Aristóteles que se a ideia do vazio implica que ele seja igual por toda a sua extensão (homogêneo), então as inclinações dos corpos para determinadas direções e lugares naturais de repouso perderiam seu fundamento, pois qualquer lugar seria sempre equivalente a qualquer outro. Cabe recordar, entretanto, que o vazio é homogêneo somente no sentido negativo, isto é, ele é o "mesmo" em toda a sua extensão porque não possui limites definidores. 

Ao contrário de um corpo que é homogêneo na sua matéria (aquilo de que é feito) e que possui limites (o que o torna passível de ser o continente de outro corpo), o vazio é homogêneo na falta de limites, não sendo jamais algo, mas somente uma, por assim dizer, "ausência estendida". Se não há limites, nada contém realmente os corpos em algum lugar. Não havendo lugar, o corpo não teria qualquer tendência intrínseca à mudança em nenhuma direção particular.

Se o corpo estivesse em repouso, ali permaneceria para sempre. Caso tivesse sido violentamente colocado em movimento local, ele permaneceria se deslocando ad infinitum até que um corpo mais forte o impedisse de prosseguir se movendo. Aristóteles só se refere a um corpo mais forte que cessa o movimento do outro, mas poder-se-ia cogitar se ele não supõe também que um corpo não tão forte fosse capaz de ao menos mudar a direção do outro.

Considerando a definição de mudança oferecida no Livro III, a locomoção infinita ou perpétua implicaria a atualização infinita da potência. Qual ente teria o poder de atualizar infinitamente a potência de deslocamento de um corpo? Nenhum ser finito conseguiria realizar essa proeza. Admitir a moção local infinita seria abdicar do caráter essencialmente passageiro da mudança e convertê-la em algo permanente tal qual o é o repouso.

A consciência desse problema pode ter sido uma das razões pelas quais René Descartes precisou deduzir a priori da imutabilidade divina a permanência da locomoção dos corpos no mundo geometricamente considerado. Somente a ação direta do ser infinito manteria o corpo se deslocando perpetuamente até que outro o parasse ou mudasse a sua direção, caso este no qual Deus manteria a nova direção adquirida até que outro corpo se choque com o primeiro, e assim por diante.**

Por outro lado, a experiência (ἐμπειρίᾱ, empiria)***deve decidir as questões físicas, segundo Aristóteles. Onde no mundo sublunar nos deparamos com movimentos que sejam de fato infinitos? A resposta da observação dos fatos que nos cercam é que não os encontramos em lugar algum. Aqui não há mudança que não cesse. O obstáculo epistemológico consiste em que a realidade do movimento infinito não pode ser determinada via mera observação justamente porque inexiste observação infinita, seja individual ou coletiva.****

Somente quando se assume de antemão a realidade do vazio é que se logra inferir dessa premissa a existência do movimento infinito. Afirmar a locomoção perpétua exigiria imaginar condições ideais, não no sentido de condições perfeitas, mas no sentido de situações contrafactuais que não correspondem às observadas empiricamente por qualquer ser humano desde sempre

Aristóteles acrescenta que se o vazio fosse aquilo que permite a existência do movimento, a locomoção necessariamente aconteceria em todas as direções. Sem diferenças qualitativas entre os lugares, os corpos não possuiriam mais inclinações a se dirigirem para cá do que para lá. Segue-se que eles se dirigiriam indiferentemente a todas as direções. Não é o que se observa no mundo.

Ora, o tempo no qual um corpo percorre uma determinada extensão pode ser maior ou menor de acordo com o seu peso e de acordo com o tipo de meio (medium) que ele atravessa. O meio opõe mais resistência ao movimento se ele é menos divisível, mais corporal, mais denso. Considerando somente as diferenças entre os meios, um mesmo corpo percorre a mesma distância em um tempo menor se o meio for menos denso do que o faria se o meio fosse mais denso. Um corpo atravessando o ar leva menos tempo que o mesmo corpo atravessando a água. 

Quanto mais incorporal for o meio, mais divisível ele é, e proporcionalmente menor será a resistência oferecida ao movimento do corpo. Supondo um meio que seja duas vezes menos denso que o ar, o mesmo corpo percorrerá a sua extensão num tempo duas vezes menor do que o tempo no qual percorreria a mesma distância formada de ar. 

Aristóteles diz que se tomarmos um número qualquer como valor fixo, haverá sempre uma relação de proporção inversa entre o valor correspondente ao excedido por n e o valor correspondente ao excesso: quanto menor for o excedido por n, maior será a quantidade do excesso que separa n do excedido. Nesses termos, o 4 excede o 3 por 1, excede o 2 por 2, e excede o 1 por 3. Para que essa razão inversa se mantenha, o menor excedido possível deve ser 1 (uma unidade), caso no qual, por sua vez, o excesso tem o seu valor máximo possível (3). A quantidade excedente resulta da quantidade do excesso somada à quantidade daquilo que é excedido

Se o valor excedido for igual a zero, não haverá um valor de excesso inversamente proporcional ao excedido. Se 4 excede 1, então o excesso é igual a 3. Contudo, o 4 excederia o zero por qual diferença? O zero não é excedido por nada porque ele não corresponde a nenhuma quantidade. Só algo existente pode ser ultrapassado por algo existente. A soma, a subtração, a proporção, etc, só fazem sentido se houver quantidades com as quais realizar essas operações. A aplicação desse princípio à questão do movimento resulta na impossibilidade da locomoção no vazio.

Aristóteles assume que um corpo percorre uma determinada distância em um tempo inversamente proporcional à densidade do meio. Isso significa que para qualquer tempo que um corpo gaste para atravessar uma dada extensão, necessariamente a densidade do meio tem que ser maior que zero. Na hipótese de um meio de resistência zero, a relação de proporção inversa entre tempo e densidade não se existe, da mesma forma que a relação de proporção inversa entre o excedido e o excesso não pode se constituir se o excedido for igual a zero.

Não existe proporção (λόγος, razão, ratio) possível entre o pleno e o vazio. Portanto, não pode haver movimento cuja duração seja proporcionalmente inversa a um meio de resistência nula. Um absurdo patente resulta da tentativa de atribuir qualquer tempo gasto, por mínimo que seja, a um movimento dado no vazio. A duração do deslocamento de um corpo numa extensão qualquer só é possível se houver alguma resistência do meio. A resistência sendo nula, nenhuma duração pode ser determinada. 

Segue-se daí que conceber uma duração qualquer na locomoção no vazio equivale a tratar esse deslocamento como equivalente a um movimento dado no pleno, onde há algum elemento que gera resistência. Mas, se não há proporção entre o vazio e o pleno, e se, ao contrário, o movimento só pode se dar quando existe alguma resistência do meio, então nenhum tempo, por mínimo que seja, pode ser atribuído a um deslocamento no vazio. 

Aplicando o que foi dito ao exemplo de Aristóteles, se pensarmos em termos de graus de densidade, o grau 4 excede o grau 3 em 1 grau, excede o grau 2 em 2 graus, e excede o grau 1 em 3 graus. À medida em que o grau excedido diminui, os graus que o excedem aumentam. Se a densidade diminui proporcionalmente, então à perda dos graus de densidade corresponde um aumento da diferença com relação ao grau inicial do qual se parte. Para haver qualquer proporção entre a diminuição do excedido e o aumento do excesso, é preciso que o menor grau não seja inferior a 1 (supondo que não dividamos para além do 1).

Suponhamos duas distâncias de mesmo comprimento: A é um meio vazio e B é um meio pleno (ocupado por ar, digamos). O mesmo corpo percorre inteiramente A (vazio) num tempo gasto (t) proporcionalmente menor que o tempo gasto (T) para percorrer B (ar). Ocorre que o corpo C percorre uma parte de B no mesmo tempo no qual percorreria A. Isto é, o tempo que o corpo leva para percorrer uma parte do ar é proporcionalmente idêntico ao tempo que ele levaria se houvesse percorrido o vazio inteiro

Agora, esse tempo t é idêntico ao que seria gasto se essa parte fosse constituída por algum elemento que proporcionalmente possuísse menor densidade que o ar de B. O problema é que, por definição, se houvesse o vazio, o corpo C não poderia gastar nenhum tempo que fosse proporcional a algum grau de densidade. Ao contrário, o corpo deveria atravessar o vazio sempre em tempo menor do que qualquer densidade concebível. A velocidade de C no vazio estaria para além de qualquer medida ou proporção. 

O resultado seria que atribuir tempo, por mínimo que fosse, ao movimento no vazio o faria coincidir  com o tempo proporcional ao movimento num meio que oferece resistência. E se o vazio se opõe ao pleno pela absoluta ausência de resistência, seria contraditório que um corpo levasse o mesmo tempo para atravessar um como o outro. Aristóteles arremata a questão asseverando que a razão da absurdidade está em que não pode haver proporção entre o vazio e o pleno.

Resultado igualmente absurdo seguir-se-ia da consideração de que os corpos se movem mais rapidamente ou mais lentamente a depender do quanto são leves ou do quanto são graves, e segundo as suas magnitudes. Isso se justifica no movimento no pleno por conta da forma do móvel, que "divide" o meio com maior facilidade, pela inclinação intrínseca ou pela força empregada para deslocá-lo. No vazio, contudo, sem resistência, não haveria qualquer motivo para que um corpo se movesse mais rápido do que o outro.

Quando analisado, o vazio revela ser, de fato, uma vacuidade. Um cubo de madeira mergulhado na água ou cercado por ar, independente de ser leve ou grave, desaloja a mesma quantidade de água ou de ar que a sua magnitude ocupa. Não havendo corporeidade no vazio, tampouco haverá porções de vazio desalojadas pela entrada do cubo. Logo, qual seria o lugar que o cubo ocuparia se o vazio não é nada corporal para se retrair, para recuar, para conter ou para ser deslocado? O que diferenciaria o cubo do vazio circundante, afinal? 

Destarte, o vazio não existe no mundo. Ainda que não seja visível, até o ar é um corpo que circunda as coisas que nele estão do mesmo modo que a água cerca os peixes que nadam em seu interior. Pensadores houve que defenderam que os fenômenos do raro (μανός) e do denso (πυκνός) davam respaldo à tese da realidade do vazio. A contração e a compressão dos corpos seria impossível se não houvesse vazio, dizem. *****

Na hipótese de seus defensores se referirem a vazios existindo fora dos corpos, a resposta é que o vazio, tanto quanto o lugar, não pode existir separadamente enquanto uma extensão própria. Estivessem no interior dos corpos raros, os vazios não seriam condição de todo movimento local, mas somente do movimento ascensional característico dos corpos leves, carregando-os como a boia subindo traz consigo o que estiver atado à ela. E os absurdos do movimento num meio sem resistência se repetem aqui.

Algumas dificuldades restam se negamos o vazio. Sem rarefação e sem a condensação, ou não haverá movimento, ou o todo crescerá em volume, ou as transformações mútuas do ar e da água terão de manter o mesmo volume (embora seja empiricamente verificável que o ar tenha volume maior do que a água de onde ele vem). Sem a compressão, ou não haverá movimento, ou a parte mais externa a ser movida crescerá em volume, ou as transformações mútuas do ar e da água terão de manter o mesmo volume.

A solução dada por Aristóteles pretende evitar o problema mudando a categoria da solução. Até o momento, os defensores do vazio derivaram a sua existência da impossibilidade de haver movimento local se não se admitisse um intervalo espacial absolutamente incorporal para onde os corpos se dirigiriam ou no qual eles se deslocariam livremente. Supuseram, então, que a simples corporeidade fosse por si mesma um obstáculo insuperável para a ocupação de um lugar ao mesmo tempo por dois ou mais corpos.

Sim, de fato, se dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar, e se tudo é corporal, então num pleno jamais haveria lugar para onde este ou aquele corpo pudessem se locomover. O problema é montado precipuamente segundo a categoria da quantidade. Um determinado continente só é capaz de comportar um dado número de bolas, por exemplo. Se estiver cheio, nenhuma bola poderá ser adicionada a não ser que outra seja retirada.

O segundo aspecto é geométrico: as figuras possuem limites rígidos que não podem ser cruzados por outras figuras. Se imaginamos que uma delas se desloca em linha reta, qualquer que seja a direção, o espaço tem de estar esvaziado de outras figuras que obstaculizem sua locomoção. O terceiro aspecto não é quantitativo, mas qualitativo: supõe-se que a impenetrabilidade dos corpos seja a mesma em todos eles. Unindo esses pressupostos (e mais alguns outros), tem-se que os corpos, sendo identicamente impenetráveis, se ocupam por completo um determinado espaço, não poderão se locomover dentro dele em linha reta não importa a direção.******

Os fenômenos da condensação e da rarefação, dados os pressupostos acima, são explicáveis somente pelo deslocamento espacial de corpos. A condensação acontece quando os corpos se aproximam uns dos outros e a rarefação resulta do afastamento dos corpos. Ambas as explicações traduzem transformações qualitativas em termos quantitativos de maior ou menor aproximação ou afastamento dos corpos no espaço. Consequentemente, o vazio deve existir para que aconteçam as locomoções que explicam esses fenômenos.

Esse modelo de explicação inspira-se no atomismo de Demócrito e de Leucipo. Os átomos seriam corpos maciços, inseccionáveis, impenetráveis, indestrutíveis, sem diferenças qualitativas e com diferentes formas geométricas que constituiriam as coisas. A junção desses elementos materiais em determinadas configurações formaria os objetos que nossos sentidos percebem, e a posterior separação dos átomos extinguiria esses objetos. Para que a formação das configurações acontecesse, os atomistas postularam a existência do vazio no qual os átomos se locomovem.

A explicação atomista consiste em reduzir os aspectos qualitativos da realidade aos seus aspectos quantitativos. A diferença de natureza entre um homem e um leão é dada meramente pela quantidade, forma e disposição espacial dos átomos. Mutatis mutandis, a ciência moderna desde o século XVII seguiu basicamente as mesmas diretrizes de (tentar, ao menos) substituir as diferenças qualitativas por elementos quantificáveis.

Formulado desse jeito, o problema posto pelos fenômenos da condensação, da rarefação e da compressão parece não oferecer saída diferente do postulado da existência do vazio. A questão é que o problema não precisa, segundo Aristóteles, ser colocado nesses termos quantitativos. A solução é qualitativa. matéria sustenta qualificações contrárias (quente e frio, por exemplo) que são produzidas pela atualização de potencialidades que dela não podem ser separadas, embora permaneça a mesma ainda que resulte da mudança alguma variação de volume.

O ar produzido pela rarefação a partir da água é a mesma matéria que sofreu uma mudança qualitativa, isto é, atualizou uma potencialidade que já estava presente nela. O volume resultante muda também, aumentando ou diminuindo, a depender se a transformação é de água para ar ou de ar para água. A mudança quantitativa, o aumento ou a diminuição, acompanha a mudança substancial, e não o inverso. 

Tomás de Aquino, comentando essa passagem, explica:

"A condensação não ocorre porque algumas partes se unem entrando em outras partes, e a rarefação não ocorre porque as partes conectadas são separadas, como aqueles que defendem o vazio nos corpos pensaram. Antes, essas coisas ocorrem porque a matéria das mesmas partes tomam ora uma maior quantidade e ora uma menor quantidade. Daí que ser rarefeito não é nada mais do que a matéria adquirir dimensões maiores pela redução da potência ao ato. E ser condensado é o oposto. Pois, da mesma maneira que a matéria está em potência para determinadas formas, ela também está em potência para determinadas quantidades."

O corpo que passa de frio a quente atualiza uma potência já presente nele. Se esquenta mais, não é porque uma parte do corpo que se mantinha fria ficou quente depois do resto do corpo. Não é pela adição de mais uma parte quente que o corpo esquenta mais. Um arco cuja curvatura sofre uma diminuição resulta num arco mais convexo não porque alguma parte sua era antes uma linha reta. O fogo, em porção maior ou menor, sempre traz consigo o calor e a brancura. Em todos esses casos, não é pela adição ou subtração de partes que a variação quantitativa ocorre. 

Analogamente, defende Aristóteles, o maior volume na rarefação e o menor volume na condensação não se devem à aquisição ou à subtração de partes. O corpo que possui em toda a sua extensão uma determinada qualidade é capaz de atualizar certas potencialidades que acarretam variações quantitativas. O corpo mais raro é mais leve, e o corpo mais denso é mais pesado. Em nenhum desses casos, a variação é resultado da simples soma ou subtração de partes (ou da aproximação e do afastamento de partes no vazio).

Tendo em conta os argumentos expostos, resta patente, diz o filósofo, que não há o vazio em nenhuma das modalidades nas quais os seus defensores postularam a sua existência. O tema da seção seguinte do Livro IV será a natureza do tempo.

...

* "Philosophiae Naturalis Principia Mathematica", publicado em 1687.

** Sobre as leis do movimento de Descartes: https://oleniski.blogspot.com/2012/11/descartes-e-o-mundo-mecanicismo-fisica.html?spref=tw

*** A experiência aristotélica deve ser distinguida da noção de experimento adotada pela tradição científica desde Francis Bacon, que supõe a submissão das coisas naturais a situações artificiais com o fim de produzir novos efeitos. As condições de um laboratório, meticulosamente pensadas, construídas artificialmente, isoladas de toda a realidade externa, são aproximadamente ideais.

**** Aristóteles admite o movimento circular perpétuo dos corpos celestes no mundo supralunar (acima da órbita da Lua), mas nega o movimento perpétuo no mundo sublunar (abaixo da órbita da Lua). As razões disso são que o movimento circular não tem um início e nem um fim e os corpos celestes se deslocam no éter, um meio que não opõe resistência ao seu movimento. 

***** O termo grego μανός (cognato de minos, menor, minor) pode ser traduzido como "raro", "pouco", "fraco""poroso", "esparso" ou "incomum". No texto aristotélico, μανός refere-se ao corpo ou ao meio cuja consistência parece ser menor que a de outro (ar quando comparado à água, por exemplo), o que resulta numa menor resistência ao movimento.

****** Dificuldades análogas afligiam a física cartesiana que negava o vazio e concebia os corpos exclusivamente em termos de pura extensão (comprimento, largura, altura, etc.).

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos XII, XIII, XIV - singularidade e individualidade)

 
"O ser existente é aquele que existe fora de suas causas, que tem real atualidade, que está no exercício pleno de si mesmo, na sua atualidade e na sua potencialidade. É, portanto, singular já que nada pode ser termo de ação das causas, ser capaz de existência, senão o que é singular. Portanto, o indivíduo é um ente que não pode, pela mesma razão, ser dividido em muitos."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 81

Os temas do universal, da abstração e da contração tratados por Mário Ferreira dos Santos no capítulo XI conduziram à exposição das posições fundamentais que caracterizam o realismo moderado*. O problema que permanece é saber se há algum modo de existência dos universais fora dos indivíduos que os instanciam concretamente. A resposta parece ser negativa se assumimos que a existência pertence somente aos singulares, a este ente, hic et nuncirrepetível, e que exerce sua própria natureza independentemente dos outros seres.

Pedro é um indivíduo humano. Enquanto indivíduo, ele é uma possibilidade irrepetível que se atualizou, e que vai se esgotar tão logo tenha se extinguido. Enquanto humano, ele compartilha com João a humanidade, a unidade ontológica que constitui essencialmente os seres humanos, uma possibilidade repetível indefinidamente nos indivíduos. Quando nosso intelecto capta essa unidade, tem-se o universal, o esquema eidético-noético que pode ser predicado de todos os humanos.

O universal, portanto, não existe no sentido em que Pedro ou João existem. É certo que os indivíduos possuem as propriedades essenciais de sua espécie, e é certo também que a espécie jamais existe como um ente singular. A forma eidética da humanidade não é, e nem pode ser, um mero nada. Então, alguma realidade ela deve possuir antes da existência dos indivíduos que a instanciam no mundo. Caso contrário, tudo seria reduzido a singularidades.

Os singulares não são compreendidos a não ser pelas características que eles compartilham com outros singulares. Não há, e nem pode haver, uma ciência de Pedro, uma "Pedrologia", pois não há uma "pedreidade" que seja compartilhável por outros seres. Pedro é diferente de qualquer outro humano, e este Pedro é diferente daquele Pedro. A singularidade de Pedro é indizível em termos gerais. 

Ora, se todos os seres fossem absolutamente singulares, como queriam os nominalistas, seria impossível haver qualquer pensamento teórico, filosófico ou científico, como nos casos da Lógica, da Matemática, da Ontologia e da Matese. Tudo seria singularizado ao ponto que estaria confutada de antemão qualquer atribuição de um mesmo nome ou conceito a mais de um singular. A própria linguagem estaria impossibilitada, já que sempre nos referimos a características comuns aos entes. 

Não obstante, é igualmente impossível negar que os seres exibem semelhanças, e que estão estruturados segundo determinadas formas, tipos ou espécies. Captamos noeticamente esses esquemas eidéticos fundamentais nas coisas, e é isso que permite que compreendamos o mundo à nossa volta. Assim, se por um lado não conseguimos atribuir aos universais uma existência individual, por outro temos de admitir alguma realidade para o esquema eidético, que não pode ser um absoluto nada

O universal, na qualidade de esquema eidético-noético, é um ente de razão, e existe somente no intelecto. Fosse exclusivamente isso, não passaria de uma criação de nosso espírito. Todavia, possui fundamento na coisa, dado que reproduz um eidos compartilhado por uma determinada espécie ou tipo de seres. Então, há uma realidade que antecede e fundamenta ontologicamente a própria existência dos singulares. Onde se dá a realidade dos universais? Na mente divina, responderam alguns filósofos. Caso contrário, o nada seria a sua origem.

"A humanidade só existe enquanto existe uma humanidade individual (ex sistere, dar-se fora de suas causas). Sem a humanidade individual, ela seria aptitudinalmente uma forma em uma mente, já que seria impossível ser absolutamente nada. Necessariamente, há uma mente que antecede à do homem, porque se a humanidade há, ela não era absolutamente nada, mas algo que antecedia à do homem, já que este começou." (p.75)

O ente concreto, embora seja incomunicável naquilo que é singular, em alguma medida tem de se comunicar como parte de um Todo, a exemplo dos membros de um ser vivo. O aspecto afirmativo dessa incomunicabilidade é a sua singularidade, ele é este ente e não aquele outro. O aspecto negativo é que ao ser este ente, ele não pode ser aquele outro. Mário Ferreira observa que a incomunicabilidade não pode ser o princípio de individuação, isto é, aquilo pelo qual algo se torna um ente individual. 

Ser incomunicável é uma propriedade do indivíduo que se fundamenta no aspecto afirmativo da singularidade. Não é a incomunicabilidade que torna algo um indivíduo. É o indivíduo que por ser singular não é comunicável. Pedro é incomunicável porque é este ente, não é este ente porque é incomunicável. A individuação é positiva, põe algo na realidade, constitui a natureza de algo. Portanto, seu princípio não pode ser uma negação como a incomunicabilidade. A incapacidade de ser comunicável é o outro lado do fato positivo fundamental de ser um indivíduo. A afirmação precede ontologicamente a negação.

Além da incomunicabilidade, o indivíduo se caracteriza pela unidade (é um Todo), pela indivisibilidade (deixa de existir se for dividido), pela distinguibilidade (distinto de todo e qualquer outro ente) e pela irredutibilidade (não pode ser identificado à sua espécie e nem ao seu gênero). Pedro é um indivíduo que se distingue de João, e que compartilha da mesma humanidade de João sem ser idêntico a ela. Pedro é um synolon (σύνολον), um Todo informado e indiviso, concreto, com uma estrutura hilética e uma estrutura eidética, no qual se enraízam todas as suas potencialidades, as que já foram atualizadas, as que serão e as que não serão atualizadas jamais. 

Alguns tomistas defendem que o princípio de individuação é a materia signata quantitate, isto é, a matéria assinalada pela quantidade. Mário Ferreira discorda dessa tese, e levanta dúvidas sobre se Tomás de Aquino a teria realmente defendido. De todo modo, ele diz, a matéria não pode individuar porque a quantidade é um acidente necessário das coisas já informadas, é um fator cooperante da individuação. A matéria assinalada pela quantidade fornece às coisas materiais as suas medidas.

Que a quantidade seja necessária à individuação não se discute. A pergunta é se ela é suficiente para individuar os entes. Pedro e João certamente são numericamente distintos. Pedro é um e João é um. Cada um deles possui suas medidas próprias: João é mais alto que Pedro, etc. Tais aspectos quantitativos, em que pese serem necessários, segundo Mário Ferreira, já seriam distintos em Pedro e em João por causa da individuação, e não o contrário. 

Não é a quantidade enquanto tal que individua, pois a quantidade aqui (em Pedro) e a quantidade ali (em João) já se encontram individuadas. A quantidade é um acidente necessário do composto, e contribui para a individuação sem ser o seu princípio. O que individualiza é o composto. A matéria e a forma, consideradas ontologicamente, são fatores de universalidade, não individuam as coisas. Entretanto, quando consideradas ônticamente, ou seja, enquanto matéria e forma presentes neste composto (Pedro, por exemplo), são fatores cooperantes da individuação.

Na Tese 62 da Filosofia Concreta, Mário Ferreira explica que a aquilo por meio do qual uma coisa é singular, esta e não aquela, é a heceidade (haec, haecceitas), a unicidade que é incomunicável. As coisas têm em comum a unicidade formalmente, porém não a unicidade que singulariza. Os seres se determinam pelo gênero, pela espécie, pela individualidade e encontram sua última determinação na unicidade.

Em outros termos, o filósofo mostra que há uma contração na estrutura da realidade que vai do mais geral até o individual. O Ser é a generalidade mais universal possível, cabendo a todo e qualquer ente pelo mero fato de ser, sem determinar nada em seu conteúdo. Os seres encontram suas determinações, seus limites primários, no gênero ao qual pertencem (animal, por exemplo). E, dentro do gênero, são determinados pela espécie (racional), e na espécie são determinados pela unicidade que os torna indivíduos (Pedro). 

A individualidade é a determinação última, e, por isso mesmo, é incomunicável. Não existe e nem jamais existirá outro Pedro a não ser este Pedro. Não existe uma "Pedreidade" a ser compartilhada por outros homens. João não pode ser Pedro e vice-versa. Isso demonstra a distinção entre o indivíduo e a sua essência. Pedro repete a humanidade, o arithmos que também é compartilhado com João, mas o seu esquema concreto, que torna Pedro este (haec), é seu arithmos individual e irrepetível. "Os seres ontologicamente (no logos do ente) se repetem, mas são ônticamente (como entes) únicos".

Na Tese 167 da Filosofia Concreta, é dito no mesmo espírito que a essência de uma singularidade distingue-se do seu quid (quididade, essência), e que a natureza de uma coisa individual é o conjunto de todas as leis e de sua heceidade, o arithmos de sua singularidade. Ao ser este (haec), a essência e a existência se identificam ônticamente sem que se identifiquem ontologicamente. O ato de existir de Pedro é a efetivação de um indivíduo possível (Pedro). Somente nesse sentido, uma essência individual se identifica com uma existência individual. 

A sutileza consiste em encarar o indivíduo sob dois ângulos diferentes. Considerado ônticamente, no plano deste ente, a essência de Pedro é totalmente individualizada em Pedro, de tal modo que é possível falar de uma "essência individual" que pertence única e exclusivamente a Pedro. Assim, a essência de Pedro é ele mesmo existindo como Pedro. Considerado ontologicamente, a essência de Pedro não é idêntica a ele no sentido de que Pedro é um indivíduo que repete (ou imita) uma Forma, a humanidade, que é repetida igualmente por outros (João, Maria, Carlos, etc.).

O termo essência (ou o ser da coisa) adquire dois sentidos diversos, porém intimamente ligados. No primeiro, refere-se à Forma, ao esquema eidético, que é repetido nos indivíduos, e que fornece a eles os aspectos determinantes de sua espécie, do tipo de ser que eles são. No segundo, refere-se à individualidade, a este ente singular que é irrepetível e incomunicável, no qual a espécie está contraída, e da qual se distingue ônticamente, mas não ontologicamente. 

Os dois modos são reais e válidos, não havendo contradição entre eles. Por um lado, o indivíduo só pode existir repetindo (sendo uma instância de) uma espécie. Pedro só existe como ser humano. Por outro lado, o ser humano (a humanidade) só pode existir nos indivíduos que exemplificam concretamente o que é o ser humano. Os seres humanos são sempre Pedro, Maria, Carlos, etc. A essência de Pedro corresponde, portanto, a esses dois sentidos. Convém distingui-los sem jamais separá-los absolutamente quando consideramos o indivíduo.

Retornando ao livro A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro sumariza sua tese afirmando que "cada coisa individualiza-se por si mesma, e não precisa de nenhum princípio de individuação, senão a sua própria entidade. (...) Não há princípio de individuação fora do próprio ser. A individuação de um ser começa no próprio ser, começa na sua individualidade. Não se pode colocar esta matéria de outro modo." (p. 84)

A matéria assinalada pela quantidade é um fator de individualidade, mas não pode o ser exclusivamente. Se há seres imateriais individuais (anjos, por exemplo), então a matéria somente contribui, por meio da distinção quantitativa, na individuação dos seres materiais. A individualidade de Deus não é material ou quantitativa, ela se segue de sua absoluta infinitude. Não pode haver outro que seja igualmente infinito, caso contrário haveria uma contradição. Sob essa ótica, Deus é o indivíduo perfeito.
...
...
Leia também: 
Capítulos anteriores de A Sabedoria da UnidadeΝεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
Comentário completo de A Sabedoria dos PrincípiosΝεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios