"Com tais rugidos, do fundo da cova a Sibilia cumana
conta mistérios terríveis em termos escuros, de envolta
com verdadeiros sucessos. Destarte a deidade dirige
seus arrebatos e o peito ofegante com rédeas lhe açoita."
VIRGÍLIO, Eneida, Livro VI, 100 (tradução de Carlos Alberto Nunes)
O centro do livro VI da Eneida é a catábase (κατάβασις), o tradicional tema simbólico da descida do herói ao mundo subterrâneo dos mortos. O piedoso Eneias, seguindo os conselhos da sombra (umbra) de seu pai Anquises, dirige-se pressuroso à Cuma tão logo desembarca na Itália, sobe o monte onde Apolo tem seu templo, e vai até à enorme caverna onde vive a sibila que o conduzirá pelo Orco.
Virgílio chama Apolo de "vate de Delos" que inspira a sibila a profetizar o futuro. A figura do vate desempenha na religião romana funções análogas ao "mantis" (μάντις, vidente, profeta) da religião grega. Nascido na ilha de Delos, Apolo era o deus helênico da poesia, da música, da cura, das purificações (kαθαρμοί) e da inspiração profética. Apolo é vate porque o vidente inspirado por ele tem o "deus dentro" (ἔνθεος), está tomado pelo "entusiasmo" (ἐνθουσιασμός), e pode então proclamar a vontade dos deuses e predizer os acontecimentos vindouros.*
O oráculo (μαντεῖον) apolíneo de Delfos era um dos centros religiosos mais importantes da Grécia antiga, e sua fundação se dá quando Apolo mata a serpente Python (Πύθων) que dominava o sítio dedicado à sua mãe Gaia. O mito remete ao simbolismo da luta cosmogônica do deus (ou herói) solar contra a serpente (dragão, besta), isto é, a ação do princípio ordenador sobre as potências caóticas e amorfas. Apolo mata a besta e toma para si o oráculo, ato que destitui divindades arcaicas e titânicas (Python e Gaia) de seus postos ancestrais e funda a nova ordem dos olímpicos (vide a Teogonia de Hesíodo).
Eneias sobe ao templo do Apolo solar antes de descer à escuridão do reino subterrâneo. Tal qual o deus matador da serpente, Eneias é também um ordenador (fundador de cidade) que enfrentará as monstruosidades do Orco para iniciar uma nova era (Roma). Para tanto, o herói precisou deixar para trás as forças recalcitrantes que não terão lugar no ciclo que se avizinha, e agora é mister a purgatio completa, a morte iniciática sob a égide do deus das purificações (kαθαρμοί) que elimina todo o miasma (pollutio, polução, impureza) e faculta ao homem a participação digna nos ritos sagrados.
Considerada sob o ângulo do simbolismo das iniciações, a catábase significa "uma reintegração dos contrários, uma regressão ao indistinto primordial. Em suma, trata-se da restauração simbólica do 'caos', da unidade não diferenciada que precedeu à Criação, e esse retorno ao indistinto se traduz pela suprema regeneração, por um crescimento prodigioso de potência".** O descenso ao mundo subterrâneo equivale à morte e à regeneração rituais. O homem dissolve-se no caldo primordial caótico e renasce imbuído de um novo status ontológico.
No nível macrocósmico, o novo ciclo é precedido pela retração e pela reabsorção das formas antigas, pela dissolução completa do Cosmos até então vigente. Em seguida, regeneradas as forças produtivas pelo "retorno ao Caos précosmogônico, com a imersão no reservatório ilimitado de poder que existia antes da Criação do mundo", o ciclo seguinte começa a sua auspiciosa manifestação. No nível microcósmico, o iniciado morre para a sua existência anterior e posteriormente retorna num patamar ontológico superior que faculta seu acesso a conhecimentos e a poderes que antes lhe eram vetados.
Eneias chega ao templo de Apolo, cujas portas foram belamente adornadas por Dédalo quando este pousou em Cuma fugindo com seu filho Ícaro da Creta do rei Minos. As imagens entalhadas nas portas davam conta da façanha de Teseu que matou o Minotauro com a ajuda de Ariadne. O símbolo celeste/solar de Apolo é reforçado pela referência a Dédalo, o homem que foge do labirinto ascendendo aos céus. O tema de Teseu representa os trabalhos do herói que enfrenta a besta/monstro no labirinto guiado pela mulher, o que antecipa o próprio Eneias conduzido pela sibila nos Infernos.
Deífobe, a sibila, aparece e conclama o troiano a deixar de lado as imagens gravadas nas portas do templo e a realizar os ritos sacrificiais prescritos imolando sete touros e sete ovelhas. A vate é sacerdotisa da Trivia e de Febo. A Trivia é a Hecate, deusa terrível que faz parte dos Di Inferi, os "deuses de baixo", e que era cultuada nas encruzilhadas (trivia). O fato de ser também consagrada à Apolo torna a sibila de Cuma um símbolo da união dos opostos. Representa a figura do guia perfeito que transita nos caminhos que vão do polo celeste e solar ao polo infernal e escuro. Só ela pode conduzir o troiano na sua catábase.
Deífobe é filha de Glauco, deus marítimo que possuía dons proféticos. A relação paternal com o mar justifica simbolicamente o poder da sibila de predizer o futuro. As águas representam tradicionalmente as potencialidades indistintas que o fundo da realidade contém, e deuses marítimos como Proteu são capazes de assumir inúmeras formas. Em ambos os casos, manifesta-se a ligação com o possível, com aquilo que ainda não aconteceu.
Não obstante, o aspecto aquático é passivo e justifica somente a susceptibilidade da sibila à dimensão amorfa das possibilidades. É necessário que venha de cima o mandato celeste que antecipa o que de fato acontecerá dentro do campo indefinido dos possíveis. O aspecto solar e ativo do dom profético faz sua aparição quando a vate anuncia: "deus ecce deus!" ("Eis o deus! Eis o deus").
Na caverna de cem portas e cem caminhos subterrâneos (um labirinto) onde vive, a sibila muda de fisionomia, parece maior do que é, cabelos desgrenhados, sua voz torna-se ofegante, diferente e profunda. O numen, o "poder" ou "vontade" de Apolo, anuncia a sua presença. O sangue gela e o tremor toma conta dos homens diante do Mysterium Tremendum. Eneias dirige-se ao deus, reconhece sua proteção na fatídica guerra de Troia, suplica que os divos permitam que se estabeleçam ali na Itália finalmente os penates, divindades troianas trazidas com tanto zelo pelo piedoso herói na sua fuga da sagrada Ílion.
Promete ainda construir templos dedicados à Trivia, a Apolo e à própria sibila, para guardar as suas profecias. Virgílio apresenta nesse episódio a origem da importante tradição romana dos oráculos sibilinos. Conta-se que a sibila, cortejada por Apolo, pede ao deus o dom de viver tanto quanto o punhado de grãos de areia que recolhera do chão. Contudo, esquece-se de pedir também a permanência de sua juventude, e acaba condenada a envelhecer indefinidamente.
Mais à frente no tempo, a sibila oferece a Tarquinius, o rei de Roma, seis livros contendo suas profecias. Como achasse caro demais o preço pedido, o soberano recusa a oferta e a vate queima três livros. Volta a oferecer os restantes pelo mesmo preço, e o rei se recusa a pagar. Mais três livros são queimados e os três sobrantes finalmente são comprados por Tarquinius, que os depositou no templo de Jupiter no Capitólio. Durante a república, a coleção de versos era consultada sempre em situações de crise e interpretada pelos augures.
Tendo feito suas promessas, Eneias recebe a resposta de Apolo. As cem portas se abrem para reverberar a voz da sibila que esbraveja, contrai os lábios, espuma e, tomada pelo entusiasmo, finalmente liberta de seu peito as palavras do numen. Haverá guerras, o rio Tibre será tomado de sangue, um outro Aquiles terá de ser enfrentado, uma mulher estrangeira será causa de muitos sofrimentos, mas não tema e nem desista o herói, pois ao fim o socorro de uma cidade de dânaos conduzirá tudo a bom termo.
Com a mão posta sobre o altar sagrado, Eneias solicita à sibila que o guie pelo domínio subterrâneo até o sítio onde se encontra a sombra de seu pai Anquises. Descer ao Dite, o reino dos Di Manes (os mortos), é tarefa sem dificuldades, responde a vate, pois seus portões estão sempre abertos. O desafio é conseguir retornar ao claro mundo dos vivos, como o fizeram Orfeu, Castor e Hércules.
Entregar-se à dissolução nas águas inferiores não demanda esforço. Perder a própria unidade não requer trabalhos. "Pois o comum desce ao Orco em silêncio", dizia Friedrich Schiller. A proeza do herói é justamente empreender por vontade a catábase, o descenso aos Infernos, e, após enfrentar a escuridão do Érebo, ascender de volta ao mundo dos viventes, anábase, dignificado tal qual o iniciado que contemplou o segredo (ἐποπτεία) dos mistérios.
A sibila responde que Eneias atravessará em segurança aquelas tenebrosas paragens se trouxer consigo o ramo de ouro que nasce no bosque do Averno. Todavia, antes da descida infernal, o troiano deve realizar os ritos fúnebres apropriados para um companheiro insepulto cuja morte contamina a todos com a pollutio (miasma, entre os gregos). Duas pombas gêmeas, nas quais Eneias reconhece a ação de sua divina mãe, Venus, aparecem e guiam-no até à árvore de onde nasce o ramo áureo.
A árvore simboliza o axis mundi, o "eixo do mundo", que liga as coisas terrestres às celestes, atravessando todos os mundos intermediários. A pomba é símbolo das realidades espirituais que atuam como mensageiros (ἄγγελος, anjo) do plano divino, mas também podem representar os elevados pensamentos que devem ocupar a mente daqueles que querem se aproximar da árvore da vida. O herói toma para si o ramo dourado, e logo depois um outro nasce no lugar do que foi arrancado. O poder criador e regenerador da árvore da vida é infinito.
A simbologia do ramo áureo é claramente solar (ouro). Quem desce à indistinção do mundo subterrâneo deve trazer consigo o Sol, o poder ativo, determinador e ordenador da realidade, tal qual um facho no meio da noite. O ramo dourado é um símbolo (σύμβολον) também no sentido antigo de permissão, token, passe ou senha. Há paralelos disso na tradição religiosa grega. No orfismo, por exemplo, lâminas douradas com instruções para a catábase eram colocadas sobre as mãos, peito ou boca dos mortos.
As lâminas recomendavam aos falecidos que não bebessem das águas do rio Lethe (Λήθη, "esquecimento"), mas que, ao contrário, se apresentassem aos guardiões do Hades a fim de que lhes fosse franqueado o acesso ao lago de Mnemosine (Μνημοσύνη, "memória"). Os iniciados nos mistérios de Orfeu declaravam aos guardiões que eram filhos "da Terra e do Céu estrelado", que pertenciam à estirpe celeste, e que estavam secos de sede. As instruções eram, então, uma senha que facultava ao iniciado a manutenção da memória e da identidade pessoal no reino das sombras esquecidas de sua vida terrestre.
Retornando a seus homens, Eneias toma ciência de que Miseno, escudeiro do bravo e nobre Heitor, morrera afogado e permanecia insepulto. Uma alta pira funerária de quatro lados é erguida, coberta de negra folhagem e encimada pelas armas do defunto. Seu corpo é lavado, perfumado, conduzido à pira e queimado. Um mausoléu no sopé de um monte abriga as cinzas de Miseno depositadas numa urna de bronze.
De posse do ramo dourado e purificado da pollutio pela realização dos ritos fúnebres devidos, o piedoso Eneias está pronto para empreender a viagem infernal em busca do pai Anquises.
(Encerra na parte 3)
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* Sobre o mantis na religião grega, vide: Νεκρομαντεῖον: Sócrates, religião grega, os oráculos e os deuses
** Mephistophélès et l'androgine, de Mircea Eliade, p.164 (tradução minha)
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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Eneida
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