sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Michael Polanyi, ciência, autoridade e sociedade livre



"É quase axiomático que a distinção entre uma sociedade livre e uma sociedade totalitária resta exatamente sobre este ponto: uma sociedade livre é vista como aquela que não tenta, por princípio, controlar o que as pessoas consideram como significativo, enquanto que a sociedade totalitária é vista como aquela que, por princípio, busca semelhante controle. O que aconteceu no campo dos significados nos dois mais fortes Estados totalitários de nosso século - os de Hitler e de Stalin - é evidência da justiça dessa distinção."

MICHAEL POLANYI, Meaning, p. 182 (itálicos no original)

Na primavera de 1969, o químico e filósofo húngaro Michael Polanyi realizou uma série de lectures públicas na Universidade do Texas e na Universidade de Chicago intituladas Meaning: A Project by Michael Polanyi. Alguns desses textos apresentados foram posteriormente publicados em revistas especializadas e em 1975 as palestras foram reunidas e organizadas em um volume único com o título Meaning. No capítulo 12, Mutual Authority, Polanyi discute as relações entre seu conceito de sociedade livre e a autoridade exercida dentro do campo da ciência.

A princípio, o que distingue uma sociedade livre de uma sociedade totalitária é que na primeira não há tentativa de controlar o que os indivíduos consideram como significativo, ao passo que na segunda há tentativa de controlar aquilo que os indivíduos consideram como significativo. A experiência do século XX mostrou, no nazismo e no comunismo, como um sistema de governo pode ampliar indefinidamente seu poder a fim de controlar todos os aspectos da vida de seus cidadãos em nome do bem do todo.

A defesa da liberdade foi feita por pensadores liberais como Karl Popper em nome da Sociedade Aberta, contrastando-a com as sociedades "fechadas" como os totalitarismos nazi-fascistas e comunistas. Não obstante, muitos apontam que mesmo nas sociedades ditas abertas muitas tradições colocam severas restrições à liberdade humana, inclusive com o aval governamental. Tais limites, provenientes de valores morais, são vistos pelos defensores da liberdade como imperfeições temporariamente necessárias que serão progressivamente purgadas.

Polanyi, contudo, aponta que essa defesa da liberdade falha em compreender que uma sociedade livre repousa sobre uma estrutura tradicional de algum tipo. Uma sociedade completamente aberta só poderia ser uma sociedade completamente vazia, o que jamais pode acontecer. Para mostrar como essa estrutura tradicional é necessária a uma sociedade verdadeiramente livre, Polanyi utilizará como paradigma a organização descentralizada da ciência.

Todo cientista depende de seus colegas para a avaliação de suas próprias teorias. O controle exercido pelos cientistas é o de avaliar pessoalmente a plausibilidade das teses que são apresentadas à comunidade científica. Essas decisões estão baseadas nas convicções fundamentais dos cientistas acerca da natureza das coisas e dos métodos utilizados nas pesquisas. Mas essas convicções não são totalmente explícitas ou explicitáveis na forma de leis e de regulações e nem são aplicadas de um modo legalístico. Elas são aprendidas e aplicadas de modo tácito na formação pessoal do juízo de cada cientista acerca daquilo que ele avalia.

Obviamente, esses julgamentos podem eventualmente errar ao considerar como implausíveis certas teses ou afirmações. Absoluta segurança contra erros exigiria a completa ausência de julgamento, o que significaria, por exemplo, a publicação de todo tipo de nonsense em revistas cientificas. Os princípios usados para julgar a publicação de artigos científicos são largamente tradicionais, adquiridos individualmente por cada avaliador na sua experiência de pesquisa, na literatura de seu campo ou transmitidos a ele por seus mentores intelectuais.

De todo modo, esse cabedal de princípios é em grande parte tácito, isto é, não são conhecimentos transmitidos em termos de regras lógicas, metodológicas ou epistemológicas explícitas. E mesmo quando há o esforço de explicitar e vocalizar essas regras, o seu significado só pode ser plenamente entendido por aqueles que militam naquele campo específico de pesquisa. Há muito que não pode ser explicitado, diz Polanyi, porque encontra-se no nível dos sentimentos acerca daquilo que é adequado ou são modos de trabalho que demonstram uma captação imaginativa de como as coisas são ou devem ser naquele campo de pesquisa.

Os princípios muito gerais do julgamento científico, como a exatidão, embora possam ser explicitados, têm sua aplicação determinada tacitamente. Afinal, o que conta como exatidão em um campo de pesquisa não conta como exatidão em outro. Princípios como importância sistemática e interesse intrínseco do objeto de estudo também entram na avaliação dos cientistas e podem, inclusive, relativizar a importância da exatidão dos resultados. Como resultados absolutamente exatos são raros, não é infrequente que os cientistas aceitem uma teoria menos exata por causa de sua adequação perfeita a um sistema de teorias já amplamente aceito.

A ciência é feita por esses juízos e avaliações delicadas realizadas por cientistas. Os seus parâmetros de julgamento são valores como acurácia, interesse, importância sistemática, simplicidade, etc., e seus juízos são emitidos tendo em vista um ideal de excelência que ambos, julgadores e julgados, aceitam tacitamente. A aplicação desse ideal, entretanto, não é especificável ou explicitável, pois o peso dos valores no julgamento é determinado no processo do julgamento. Tais juízos são tácitos, pessoais, mas não caprichosos. A percepção pessoal de cada cientista depende grandemente de uma percepção tradicional adquirida na sua aculturação dentro da comunidade dos cientistas.

A posição de Polanyi não é a de que esses juízos pessoais exercidos pelos cientistas sejam subjetivos, isto é, valham somente para o cientista que os emitiu. Polanyi está chamando a atenção para o fato de que a ciência, tanto quanto outros campos da existência humana, faz uso necessariamente de valores e de regras. A aplicação de juízos de valor não se dá por meio de um conjunto de regras lógicas explícitas como aquelas de um silogismo (A é B/B é C/logo, A é C), mas pela consideração do quão o caso concreto e singular aproxima-se do ideal que temos daquele valor. É uma aplicação qualitativa e não quantitativa. E mesmo no caso de regras explícitas, como uma lei jurídica, a sua aplicação aos casos particulares depende de interpretação e nunca está isenta de ambiguidades.

É certo que este cientista fará uma avaliação diferente da avaliação realizada por um outro cientista, mas todos esposam os mesmos princípios e valores, e a variação entre os juízos é ineliminável. Mas o significado concreto desses valores é aprendido pelo cientista tanto na sua experiência de trabalho quanto pela convivência com outros cientistas, inclusive seus orientadores e mentores. O que é aceitável e o que não é aceitável é mostrado tacitamente no modo como seus colegas e seus tutores se comportam diante das diversas situações de pesquisa. Obviamente, tudo isso é absorvido e filtrado pelo prisma pessoal de cada cientista, constituindo assim o seu conhecimento pessoal. A variação na aplicação desses valores compartilhados pela comunidade científica não é um problema a ser eliminado e sim a condição de existência de uma comunidade formada por pessoas humanas reais.

Retornando à palestra de Polanyi, os cientistas exercem controle sobre o que é publicado em revistas acadêmicas e sobre o que é considerado conhecimento assentado como também admitem a discordância e o dissenso. Todo o conhecimento do mundo externo só é possível na medida em que aceitamos tacitamente certas bases metafisicas. O cientista tem como sua base o corpo do conhecimento científico aceito e considera-o como um reflexo de como a natureza é realmente. E a natureza é uma fonte inesgotável de descobertas tanto quanto uma fonte de surpresas insuspeitadas.

Cada cientista recebe essa crença fundamental de seus professores e isso garante às novas gerações a liberdade de propor soluções diferentes de seus mentores e antecessores. Mas é mister ter em mente que esse corpo de conhecimentos assentados é tomado como a estrutura fundamental da natureza e que, por conseguinte, constitui o contexto de fundo sob o qual todas as descobertas novas serão avaliadas. Isso significa que qualquer teoria que ameace esse conhecimento assentado terá dificuldades de ser tomado em consideração seriamente. A não ser no caso em que a nova teoria abra perspectivas muito mais amplas para o conhecimento do que a base aceita até então.

Novas descobertas podem mudar o interesse dos cientistas  em certos fatos estabelecidos e mesmo mudar os padrões intelectuais. Essas mudanças, porém, vêm sempre acompanhadas e são justificadas pela crença de que elas fornecem uma compreensão mais profunda da realidade. Assim, a um só tempo, o cientista é ensinado a respeitar a tradição herdada e incentivado a buscar novas descobertas, mesmo que elas impliquem na rejeição do conhecimento estabelecido. A liberdade de pesquisa está baseada na aceitação desses valores tradicionais que são passados aos novos cientistas.

A questão agora é saber como efetivamente se organiza a comunidade científica. Cada cientista busca conhecer o trabalho de seus pares e estar inteirado dos pontos onde há oportunidade de desenvolvimentos e de descobertas. É um processo descentralizado e livre de mútuo ajuste, pois cada cientista submeterá a seus pares as teorias que defende ou as descobertas que pretendidamente realizou sem que haja qualquer governo central que dirija os rumos da pesquisa.

As instituições científicas têm sua razão de ser justamente na suposição de que sempre há a possibilidade de progresso e que este só acontece pela iniciativa independente de cientistas individuais. Prédios, equipamentos caros, revistas acadêmicas, etc., só podem ser mantidas por conta dessa convicção tradicional que todo novato aceita quando ingressa nas fileiras da comunidade científica. Toda a confiabilidade do conhecimento científico depende do princípio de controle mútuo. Os pesquisadores vigiam-se mutuamente no sentido de que cada um deles é ao mesmo tempo avaliador e avaliado.

A ciência se organiza pelo compartilhamento de ponta a ponta de padrões de plausibilidade e de excelência. O controle mútuo forma um consenso mediado entre os cientistas. Os novatos são introduzidos nessa tradição desde seus primeiros trabalhos, acreditam na verdade e na adequação desses parâmetros e submetem seus esforços ao crivo crítico de seus colegas e de seus mentores na esperança de um dia contribuir para o progresso do conhecimento, ainda que pelo questionamento do saber estabelecido. Ainda que haja uma hierarquia com altas posições (cientistas de reputação mundial, editores de revistas acadêmicas, membros seniors de faculdades), ela é estabelecida pela competência manifestada na pesquisa.

O ato da descoberta científica inicia com pistas e pedaços aqui e acolá que excitam a mente do cientista com a promessa de descoberta de algo ainda oculto. O pesquisador fica obcecado por descobrir qual é o todo coerente que une as peças e os dados dispersos que ele tem diante de si. O processo de intuição dessa estrutura subjacente não é regido e nem determinado por nenhum conjunto explícito de regras, mas por um salto imaginativo do cientistas concreto. mas essas tentativas não são randômicas, não são hipóteses lançadas sem nenhum lastro.

O cientista investe tempo, dinheiro, prestígio e autoconfiança nas suas tentativas de solução dos problemas que o interessam intelectualmente. Portanto, as suas escolhas são responsáveis, são guiadas pela convicção de que elas o aproximam da descoberta da realidade subjacente aos fenômenos. Seus atos são pessoais sempre, porém submetidos às exigências impessoais e externas da realidade que pretende descortinar.

O cientista pensa haver encontrado a resposta de um problema científico quando submete seu trabalho a seus pares. Obviamente, os pares podem considerar a solução verdadeira ou falsa, após a examinarem utilizando os mesmos critérios esposados pelo cientista em julgamento. A aceitação por parte da comunidade científica não significa verdade, somente que a solução deve ser aceita por todos os membros.

Polanyi assevera que a busca pelo conhecimento manifestada na ciência pode servir de paradigma para associações livres de pessoas em busca de outros bens que, como a verdade, são considerados bens em si mesmos. Isto é, bens que têm valor intrínseco e comandam respeito. A liberdade pode ser reivindicada por esses dedicados indivíduos por causa daquilo mesmo que buscam. No caso dos cientistas, não há outra justificativa para a liberdade de pesquisa a não ser a busca pela verdade, algo valioso em si mesmo. Mas o cientista só terá essa liberdade se a sociedade em que se encontra também esposar o ideal da verdade cientifica.

A sociedade livre não é é simplesmente uma sociedade aberta onde tudo vale. É uma sociedade na qual homens dedicados a atividades cujos fins são considerados dignos de respeito têm a liberdade de perseguir tais bens. A sociedade livre é aquela na qual os cidadãos estão empenhados na busca de vários fins ideais (como a verdade) e que sabe repeitar as atividades livres de seus cidadãos na persecução desses bens. Uma sociedade assim não pode ser neutra com relação à verdade ou à falsidade, à justiça ou à injustiça, etc.. A organização descentralizada da ciência mostra a possibilidade de uma associação atada tradicionalmente a certos padrões e valores, mas ainda assim livre e criativa.

Leia também:

https://oleniski.blogspot.com/2016/06/michael-polanyi-totalitarismo-nihilismo.html

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Surendranath Dasgupta, Yoga, mística e Budismo


"A mais fundamental característica do misticismo do Yoga consiste, em seu aspecto negativo, não somente em uma descrença na habilidade da percepção sensível e do pensamento lógico para compreender a verdade última sobre a absoluta pureza e caráter livre de nosso verdadeiro eu, mas também na descrença na possibilidade da compreensão dessa excelsa verdade enquanto a própria mente não for destruída. Em seu aspecto positivo, ela implica que a sabedoria intuitiva é apta a conquistar uma clara compreensão da verdade por meio da gradual destruição do intelecto."

SURENDRANATH DASGUPTA, Hindu Mysticism, pag. 80 (tradução própria)

Na terceira palestra do ciclo de lectures ministrado na Northwestern Univerity sobre o misticismo hindu, o scholar indiano Surendranath Dasgupta trata do Yoga e seus objetivos. Ele inicia afirmando que, após a mudança de perspectiva e de objetivos espirituais operada pelos rishis nos Upaniṣads, a busca pela realidade última dar-se-ia no interior do homem, na compreensão da natureza do Ātman. Em vez dos objetivos materiais preconizados pelos sacrifícios védicos, os sábios buscavam conhecer a realidade absoluta para além de toda linguagem e descrição.

Segundo Dasgupta, de 700 a 800 anos antes de Cristo, já havia ascetas cujo hábito era o de concentrar suas mentes em objetos particulares e, por conseguinte, parar o movimento da mente e dos sentidos. Essa prática ainda não fazia parte de nenhum sistema metafísico de pensamento, mas era praticada com o fim de alcançar paz e quietude mental. Patañjali (II A.C.), o grande mestre do Yoga, fornece uma base filosófica para o sistema e indica, pela primeira vez, como as técnicas podem ser utilizadas para a emancipação do homem da servidão da mente e dos sentidos.

Os sábios dos Upaniṣads afirmavam que a realidade última era alcançada por uma experiência de auto-iluminação superior a qualquer modo de cognição comum. A natureza desse princípio último era altamente mística e foi considerada obscura mesmo no tempo dos rishis, uma vez que ultrapassava os modos de cognição sensíveis e intelectuais. Não obstante, era encarada como o eu real (e a realidade última. Essa experiência é a raiz de toda mística indiana desde então. A concepção geral do Ātman era de uma pura consciência sem conteúdo, diferente do que entendemos por idéia, conhecimento e pensamento. 

Enquanto nossos pensamentos e sentimentos são mutáveis, a pura consciência é imutável. O objetivo derradeiro do Yoga é justamente dissociar o eu dos pensamentos, sentimentos, sensações e idéias e aprender que estes não passam de associações estranhas à sua natureza real. O eu é sempre livre, o princípio último da pura consciência, distinto de todas as funções mentais, faculdades, poderes e produtos. Confundimos o eu com as operações mentais e, por isso, perdemos de vista a sua verdadeira luz.

O verdadeiro eu, diz Dasgupta, é como uma pura luz branca encerrada por uma cúpula colorida e as operações da mente são os raios coloridos que emanam da cúpula. A luz branca permanece inalterada mente branca em sua fonte, mas é vista em diversas cores e confundida com elas. A única forma de desfazer a confusão é retirar a cúpula colorida e deixar livre a pura luz branca. O processo do Yoga consiste em controlar a mente de tal modo que cesse a mudança dos diferentes estados mentais. 

A primeira condição é uma grande elevação moral. O yogue deve abster-se de prejudicar, ferir ou tirar a vida de qualquer ser vivo. Não deve roubar ou mentir e deve ter absoluto controle de suas tendências sexuais. Ele deve trocar pensamentos pecaminosos por pensamentos santos, meditar nos efeitos deletérios das tendências que o levam ao caminho errado. Deve cultivar a pureza, o contentamento, a indiferença às dificuldades, o estudo, a rendição a Deus, a compaixão, etc.

A meditação do Yoga começa com a concentração em algum objeto objeto físico. Essa concentração, entretanto, nada tem a ver com a busca da descoberta de novas relações ou fatos, como no caso do cientista concentrado em um fenômeno natural. O objetivo é parar o movimento da mente e evitar sua natural inclinação para a comparação, classificação, associação e assimilação. Atada a esse objeto, a mente não vagueia e seu movimento cessa.

Nada é conhecido do objeto em suas relações normais, mas a mente torna-se una com ele, fixa e imóvel. É o estado chamado de samadhi. É o conhecimento não mais contaminado pelas associações da mente, no qual o objeto não aparece como um objeto de "minha" consciência, pois não há mais "eu" e "objeto". A real natureza dos objetos é obscurecida pelas muitas associações ilusórias e falsas que fazemos em nosso conhecimento comum. Quando toda a dualidade de sujeito e objeto é ultrapassada, a real natureza das coisas é revelada em uma intuição direta chamada de prajna.

É preciso que o yogue concentre-se em objetos cada vez mais sutis, como a mente e Deus, a quem ele deve render-se completamente. Assim, verdades mais nobres são percebidas até que a libertação total do eu verdadeiro dos apegos da mente tenha acontecido. Mas a revelação última está para além de todo conceito, razão, sentimento ou mesmo intuição dos modos comuns de conhecimento. É, pois, indizível.

O processo consiste, então, em um caminho triplo de alta elevação moral, treino físico do corpo pela prática das técnicas de Yoga e concentração mental fixa que conduz ao conhecimento da realidade tal como ela é, fora de todas as associações que nascem da dualidade de sujeito e objeto. A mente controlada liberta o homem do apego e da rejeição.

Na palestra seguinte, sobre o misticismo budista, Dasgupta afirma haver muitas coincidências entre o caminho de Patañjali e o de Buddha e afirma que não é improvável que ambos tenham feito uso de práticas que existiam já há muito. A diferença principal parece ser o objetivo de cessação ou extinção expresso no Nirvana budista. Embora seja difícil descrever o Nirvana, pois é um estado sem nenhum conteúdo, ele é a libertação de todo o sofrimento e de toda a felicidade. É concebido como a suprema bem-aventurança e é, ao mesmo tempo, comparado à extinção de uma chama.

O estudiosos ocidentais, cujo temperamento é muito diferente dos budistas indianos, não compreenderam o Nirvana, critica Dasgupta. Tanto os ensinamentos dos Upaniṣads quanto os ensinamentos de Patañjali apresentam o estágio último da busca espiritual como algo sem conteúdo e não conceitual.  É o eu, mas o eu liberto de todos os apegos e formas de conhecimento de nossa experiência comum. É a extinção de todos os sofrimentos, prazeres e experiências mundanas, tal qual o Nirvana. É um estado de bem-aventurança, mas sem sujeito e objeto, para além de toda a compreensão intelectual.

Os hindus, continua Dasgupta, pensam que tal estado é o luminoso Ātman. Os budistas, todavia, não podendo dizer o que existe nesse estado, negaram a existência do eu. O ensinamento hindu, porém, dificilmente pode ser dito mais claro que o budista. Ātman e Nirvana são igualmente indescritíveis, a não ser pelo método negativo de "não isso" e "não aquilo". Para discussões acadêmicas e filosóficas, um é absolutamente diferente do outro, mas do ponto de vista da experiência mística, ambos são transcendentes, sem conteúdo, insondáveis e profundos demais para a compreensão comum.

Surendranath Dasgupta não avança na comparação e deixa a questão nesse estado. Será interessante, creio, citar uma passagem do livro The Wisdom of the Vedas, de Jagadish Chandra Chatterji, onde o autor trata do objetivo espiritual último e faz uma comparação semelhante a de Dasgupta:

"Em seguida, há um terceiro grupo de práticas que são puramente mentais, conduzindo ao que é chamado de Samadhi, que é, em sua forma última, o estado de consciência do próprio ser verdadeiro do Atman, absolutamente livre e independente de todas as relações com qualquer objetividade, que desapareceu. Esse é também o Nirvana do Buddha, a consciência ilimitada (anantam vijnanam) sem qualquer relação  com Terra e Água, Fogo e Ar, isto é, toda a objetividade, que desapareceu de sua visão (ver Kevaddha Sutta, fim). O Nirvana é descrito exatamente nos mesmos termos aplicados a Brahman-Atman nos Vedas, tais como não-nascido, incomposto, eterno e similares." (tradução própria, itálicos no original).

...

Leia também:

http://oleniski.blogspot.com/2019/10/surendranath-dasgupta-mistica-e-os-vedas.html

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Taisen Deshimaru, Zen, filosofia e não-dualidade



"Ku não significa 'vazio', mas a potência terrível e infinita do cosmos, o imenso potencial cósmico. Ku produz e destrói todas as existências fenomênicas. Assim, o ku soku ze shiki do Hannya Shingyo significa a indiferenciação de ku e dos fenômenos, ku designando o absoluto."

TAISEN DESHIMARU, Zen et Vie Quotidienne, p.233 (itálicos no original em francês)


Em seu livro Zen et Vie Quotidienne, o mestre Zen japonês Taisen Deshimaru oferece importantes esclarecimentos acerca do Hannya Shingyo, o "Sutra do Coração", e do significado da visão não-dual da realidade no budismo. No capítulo onde trata da noção de karma, Deshimaru cita o grande mestre budista indiano Nagarjuna (150 -250 D.C.) que dizia que não há noumeno, mas não há também não-noumeno. É o que expressa o Sutra do Coração quando diz shiki soku ze ku, ku soku ze shiki (色即是空, 空即是色). Shiki (色, "tudo o que tem forma", fenômenos) torna-se ku (空, "vazio", "sem forma") e ku torna-se shiki.

Deshimaru explica que esse é o princípio do budismo Mahayana e, por conseguinte, do Zen. Esse princípio significa que não é possível afirmar um aspecto da realidade e negar integralmente o outro. Seria cair em um dualismo injustificado. Dado que há a interdependência de todas as coisas, como ensina Nagarjuna, tudo é vazio (Sunyata), isto é, nada existe por si mesmo, sempre dependendo de outros para existir. Contudo, não é possível dizer também que os fenômenos não existem. A solução é a Via do Meio.

Há, por um lado, os fenômenos e, por outro, há a eternidade, o que está para além de todo o fenômeno. Essas são realidades indissociáveis e devem ser apreendidas sempre em conjunto. Ku e shiki, permanência e impermanência, ego e não-ego, Samsara e Nirvana. Imanência e transcendência estão unidas na realidade.

Todas as existências são ku, "fenômenos do imenso poder cósmico, situado para além de todos os mundos, físicos e metafísicos, materiais e espirituais. Somente a potência cósmica fundamental é absoluta, sem noumeno, ku", assevera Deshimaru. O poder cósmico fundamental é desde toda a eternidade, sem começo e sem fim, existência absoluta e eterna.

Durante o zazen (meditação), por meio do abandono do ego, podemos fazer a experiência da unidade com essa realidade. em termos religiosos, trata-se da união divina, a comunhão mística. No tantrismo, no Hinduísmo tradicional e no budismo tibetano esse poder cósmico fundamental é dominado de Sakti, "poder". No Advaita Vedanta, a tradição não-dualista hindu, encontra-se o termo Maya, designando a força cósmica que atualiza Brahman infinito, a realidade última.

O ego e ku são incessantemente colocados em uma relação dual, mas, por meio do zazen, é possível experimentar que o ego torna-se Deus ou o absoluto.  Abandonar o ego significa abandonar todo o apego à substância do ego, é estar em mushin (無心), "não-mente". A iluminação budista corresponde à realização do poder cósmico fundamental latente em cada homem.

Todavia, essa realização está para além do racionalismo e da filosofia, pois estes são incapazes de formular a totalidade da realidade, mais ainda quando se trata da realidade metafísica ou religiosa. Nesse campo impera a intuição direta e o não-discursivo, tudo é compreendido instantaneamente. Embora a filosofia também busque essa compreensão global, ela jamais deixará de ser somente conhecimento hipotético. Os problemas filosóficos são concebidos dentro dos limites restritivos do intelecto. 

A abertura ao Absoluto, afirma Deshimaru, transcende toda filosofia, toda teologia e toda metafísica, limitadas que são aos dados racionalistas do conhecimento lógico, discursivo, parcial e sempre relativo. A religião alcança a verdade última através da experiência mística do silêncio, do não-pensamento, do que está para além do pensamento. O silêncio é o fim de todo pensamento, de toda a palavra e de toda a especulação. É o retorno ao poder fundamental, reunião daquilo que era antes UM.

Na filosofia ocidental há tantas metafísicas quanto metafísicos. O Oriente, ao contrário, perpetua uma tradição cuja mensagem lança suas raízes na experiência religiosa vivida, suprema e universal. Enquanto o ocidental concede a primazia ao espírito (ao mental e ao intelecto) sobre o corpo, o oriental concebe que o espírito não é mais do que agitação, movimento incessante e fonte de problemas e que é necessário fazer cessar pela ascese silenciosa. 

Segundo Deshimaru, essa é a razão pela qual a filosofia ocidental jamais sobreviveu ao tempo, excetuando-se a filosofia daqueles que vivenciaram a experiência religiosa, a saber, os sábios e os místicos. No budismo, o homem tem a natureza do Buddha e deve retornar a ela por meio da meditação, zazen.
...

Leia também: 


sábado, 19 de outubro de 2019

Surendranath Dasgupta, mística e os Vedas



"Eu gostaria de definir o misticismo como uma teoria, doutrina ou visão que considera a razão incapaz de descobrir ou de compreender a natureza da verdade última, qualquer que seja a natureza dessa verdade última, mas que, ao mesmo tempo, acredita na eficácia de alguns outros meios de alcançá-la."

SURENDRANATH DASGUPTA, Hindu Mysticism, p.17

O scholar indiano Surendranath Dasgupta ofereceu, no ano de 1926, uma série de seis lectures na Northwestern Univerity sobre as diversas expressões daquilo que ele denominou de misticismo hindu. A primeira palestra foi dedicada ao misticismo dos Vedas, considerado como a base de todo o desenvolvimento da mística indiana posterior.

Dasgupta afirma que os Vedas são um corpo de composições sagradas composto por quatro coleções: Atharva Veda, Rig Veda, Sama Veda e Yajur Veda. Considerando os dois últimos como compostos por poemas derivados dos dois primeiros, Dasgupta só tratará do Atharva e do Rig Vedas. Tais composições foram mantidas na memória e transmitidas por meio de recitação e de memorização por mestres e pupilos em uma cadeia remontando a tempos anteriores à escrita. A datação varia entre 6000 AC até 1200 ou 1000 AC.

O Atharva Veda contém, entre outras coisas, descrições de encantamentos e charmes para a cura de doenças, preces para uma vida longa e saudável, imprecações contra demônios, feiticeiros e inimigos, encantos para conquistar amor, prosperidade, influência, campos, gado, negócios, jogos, expiação de pecados e contaminação. O Rig Veda, por seu turno,  contém louvores a várias divindades, frequentemente meras personificações das forças da natureza como o deus-chuva, deus-vento, etc. Os favores solicitados são da ordem dos bens materiais como uma vida longa, filhos, gado e cavalos, etc.

Todavia, graças aos hinos aos deuses, poder-se-ia inferir que são os deuses os que deverão conceder os bens aos homens. Eis um ponto central sobre o qual Dasgupta retorna diversas vezes em sua palestra: não são os deuses, mas sim a série completa de atos ritualísticos que era considerada a causa da dispensação dos bens solicitados pelos homens. A ação ritualística, quando executada em seus mínimos detalhes, precisa e acuradamente, misteriosamente produzia os efeitos desejados por seus realizadores. 

A menor falha na realização dos ritos poderia comprometer os resultados pretendidos, mas se todos os detalhes fossem escrupulosamente observados, os bens almejados seriam alcançados não importando a boa ou a má vontade dos desuses aos quais os hinos eram cantados. Dasgupta considera que essa concepção do sacrifício (yajna) é completamente diferente daquela de quaisquer outros povos. Os sacrifícios védicos são mais poderosos que os deuses! Os hinos dos Vedas tanto quanto os manuais sacrificiais, Brahmanas, não possuem autoria humana e nem divina, existem desde de toda a eternidade.

Ora, Dasgupta assevera, se a religião é ordinariamente compreendida como uma relação pessoal com algum ente pessoal divino ou transcendente ao qual o homem se submete e ora para obter vantagens materiais e espirituais, a religião védica não poderia ser considerada exatamente uma religião. A concepção aqui é de comandos categóricos em natureza e externos em caráter sem qualquer sugestão de autoria dos comandos. Há as prescrições rituais que revelaram-se a alguns sábios, mas que não possuem nenhum início no tempo e não implicam nenhum promulgador divino. Não obstante, são prescrições impessoais absolutamente verdadeiras e eficazes.

Não há qualquer explicação racional acerca da eficácia dos sacrifícios e nem um deus supremo pessoal, legislador e autor do universo que esteja em sua origem. As prescrições védicas não ensinam leis ordinárias acerca da vida social ou mesmo mandamentos éticos sobre como o homem deve se comportar com relação a seus semelhantes. São leis inalteráveis que versam sobre os desejos humanos por conforto material  nesta vida ou na vida no céu.

"Em vez de Deus, encontramos aqui um corpo de prescrições que exigem nossa obediência e reverência. Mas a fonte de seu poder e o segredo de seu caráter onisciente e incriado não podemos determinar pela razão ou pela experiência." (p. 10)

Consequentemente, não seria possível interpretar os Vedas como uma revelação no sentido cristão do termo, pois não há um Deus pessoal que concede ao homem um corpo de verdades inalteráveis. As prescrições e comandos védicos são verdades impessoais eternas e imortais acerca dos segredos inescrutáveis da natureza e da felicidade do homem, revelando-se a este e exigindo a sua inteira e completa submissão. A razão não pode explicar a eficácia dessas verdades, somente tentar reconciliá-las com a experiência comum.

A mística ou o misticismo, afirma Dasgupta, são termos europeus que denotam uma união extática ou intuitiva com a divindade por meio da contemplação, comunhão e outras experiências mentais ou ainda para denotar a relação e potencial união da alma humana com a realidade última. Todavia, ele considera que mística é toda a doutrina, teoria ou visão que considera a razão incapaz de alcançar a realidade última, qualquer que ela seja, e que, alternativamente, possui a crença em outros meios de alcançar essa realidade última. Por isso, o ritualismo védico seria a mais antiga forma de misticismo na Índia e no mundo.

Dasgupta sumariza as características do misticismo sacrificial védico em alguns pontos essenciais:

1. A crença de que os sacrifícios, quando executados com perfeição, possuem um poder misterioso e secreto de produzir os efeitos desejados, sejam eles bens desta ou da outra vida;
2. A concepção de uma lei inalterável envolvida na execução dos sacrifícios;
3. A natureza impessoal da literatura Védica, eterna,incriada e não composta por nenhuma pessoa, humana ou divina;
4. A visão de que essa literatura é formada por deveres envolvendo proibições e comandos;
5. O reconhecimento, por conseguinte, da suprema autoridade dos Vedas como a fonte de conhecimento sobre as verdades últimas que estão para além do poder da razão humana;
6. A convicção de que a verdade encontra-se  definitivamente nas palavras dos Vedas;
7. A crença de que o sistema védico de deveres exige absoluta obediência e submissão.

Não obstante, esse misticismo sofre mudanças no curso do tempo na direção de uma interpretação interior dos sacrifícios. Os mesmos resultados poderiam ser alcançados pela meditação que substitui interiormente os elementos sacrificiais. Dasgupta considera essa mudança um avanço, pois representa a descoberta de que os poderes não residem nos ritos externos, mas em formas específicas de meditação ou de pensamento.

Paralelamente, encontra-se uma tendência crescente na direção da concepção de um ser supremo,  Brahman, como na famosa passagem do Rig Veda (X, 114,5) e em outras passagens do Atharva Veda (X,7 e 8) e do Satapatha Brahmana. Dasgupta afirma que floresce aí gradualmente, na mente de alguns, a concepção de um grande ser que criou o mundo e os deuses (devas) e que é também o poder que rege nossa vida e e nosso espírito.

Cumpre notar, contudo, que o ponto mais importante dessa nova concepção, segundo Dasgupta, é que o culto ou as orações são possíveis somente quando dirigidos a uma divindade de poderes limitados e que ocupa uma posição subordinada dentro do universo. Nenhuma forma de culto externo pode ser dirigida ao poder supremo e verdade última. Não somente não é possível cultuar Brahman como também não é possível alcançar sua realidade última seja pelo pensamento lógico ou por qualquer tipo de apreensão conceitual.

O que ganha corpo gradualmente é a percepção de que Brahman não é nenhum deus pessoal que possa ser inclinado a nosso favor por meio de culto e de adoração ou que possa ser alcançado pelo intelecto ou pelo sentimento. Brahman é o mais alto poder, verdade, Ser e beatitude que não pode ser cultuado ou conhecido por meio de nossas formas comuns de conhecimento. É o objetivo supremo dos Upaniṣads.
...

Leia também:

http://oleniski.blogspot.com/search/label/Hindu%C3%ADsmo

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Ludwig Wittgenstein, Tractatus, mística e os limites da linguagem



"5.634 - Isto está conectado com o fato  de que nenhuma parte de nossa experiência é também a priori.
Tudo o que vemos poderia também ser de outro modo.
Tudo o que nós conseguimos descrever poderia ser diferente.
Não há ordem a priori das coisas."

"6. 36311 - Que o Sol nascerá amanhã é uma hipótese. E isso significa que nós não sabemos se ele nascerá."
"6.37 - A necessidade de que uma coisa aconteça porque outra aconteceu não existe. Só há necessidade lógica."

LUDWIG WITTGENSTEIN, Tratactus Logico-Philosophicus (tradução minha, itálicos no original)

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), em sua única obra publicada em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus (1921), afirma que os limites da linguagem e, por conseguinte, do mundo, coincidem com os limites da imaginação que propõe figurações, isto é, modelos de estados de coisas possíveis que depois serão comparados com a realidade. Wittgenstein afirma que o mundo é o caso e o que não é o caso não é mundo. Daí que só é mundo o que é efetivo.

O filósofo americano Ray Monk, em seu How to Read Wittgenstein, afirma que a concepção pictórica da linguagem teria sido sugerida por uma experiência durante a Primeira Guerra Mundial. Segundo Monk, Wittgenstein teria lido em uma revista sobre um julgamento no qual um acidente de carro teria sido representado na corte por meio de um modelo com miniaturas de carros, prédios e pessoas. Do mesmo modo que a dinâmica real do acidente foi representada pela posição espacial das miniaturas e qualquer mudança na posição das miniaturas representaria uma situação diferente, as proposições da linguagem seriam modelos de estados de coisas dados na realidade.

Não obstante, no início do Tractatus, Wittgenstein afirma que as diversas estruturas de combinação entre os objetos derivam da forma desses objetos, isto é, o que é possível em termos de estados de coisas é determinado pelos próprios objetos que carregam em si mesmos um conjunto de ligações possíveis entre eles. Portanto, o que é possível é um conjunto mais ou menos determinado de combinações entre objetos e a proposição não é mais do que a eleição de uma dessas combinações na categoria de uma hipótese cuja verdade averiguar-se-á na comparação da figura com o mundo externo efetivo.

"4.01 - A proposição é um retrato da realidade.
            A proposição é um modelo da realidade como supomos que ela é."
"4.05 - A realidade é comparada com a proposição."  

Assim como certas peças de forma definida só permitem um determinado conjunto de combinações possíveis entre si, assim também os objetos só permitem determinadas combinações possíveis em proposições. Nem toda proposição é possível porque nem toda combinação é possível. Mas a combinação escolhida (o fato atômico, como Wittgenstein denomina), não implica logicamente nenhuma outra combinação, da mesma forma que uma estrutura feita a partir de certas peças (que é limitada/possibilitada pelas formas dessas peças) não implica ou exige nenhuma outra estrutura diferente de ela mesma.

Analogamente, uma pintura (ou seja, uma figuração) não implica logicamente uma outra pintura. Podemos notar semelhanças e até continuidades de um quadro a outro em uma exposição, mas uma pintura não exige a seguinte como um liame lógico necessário. Por essa mesma razão, Wittgenstein afirma que a ciência natural é tudo o que é o caso (a totalidade das proposições verdadeiras, em 4.11), mas é incapaz de justificar a relação necessária entre um estado de coisas e outro. Não há necessidade natural, somente necessidade lógica, afirma o filósofo.

"5.133 - Toda inferência se dá a priori."
"5.134 - Não é possível a inferência da existência de um estado de coisas a partir da existência de outro estado de coisas completamente diferente."
"5.136 - Não há nexo causal que justifique tal inferência."
"5.1361 - Os eventos do futuro não podem ser inferidos a partir daqueles do presente.
                Superstição é a crença no nexo causal." (itálico no original)

O liame de necessidade, portanto, não existe no mundo, pois o mundo é tudo aquilo que é o caso. Entre um estado de coisas e outro não há nada que os ligue necessariamente. A única necessidade admitida no Tractatus é de ordem lógica. E isso porque as inferências lógicas não são mais que tautologias. O que é dito na conclusão de uma dedução já está dito nas premissas.

"6.1262 - Prova, em lógica, é apenas um expediente mecânico para facilitar o reconhecimento da tautologia, onde é complicado."

Entretanto, se a lógica é composta de tautologias, ela jamais expressa qualquer estado de coisas possível. Uma proposição tem sentido, para Wittgenstein, justamente porque é um modelo de um estado de coisas possível. A lógica, por sua vez, é o estudo das relações inferenciais entre proposições e nada pode afirmar além tautologias.

"Lógica não é uma ciência que descobre verdades. É somente uma coleção de tautologias. E uma tautologia não é uma figuração da realidade. 'Ou está chovendo ou não está chovendo' é sempre verdadeira (ou seja, é uma tautologia, no sentido dado por Wittgenstein), mas não diz nenhuma verdade sobre o mundo. Saber que ou está chovendo ou não está chovendo não é saber qualquer coisa sobre o clima. É saber somente que essa sentença engloba toda possibilidade e que, portanto, não é possível ser falsa. Saber que é sempre verdadeira, portanto, é saber algo sobre a nossa linguagem, não sobre nosso clima."(RAY MONK, p. 50, itálicos no original)

Ora, da mesma forma que tautologias são sempre verdadeiras, contradições são sempre falsas ("Está e não está chovendo"). Tautologias e contradições não dizem nada, não são proposições com sentido, embora não sejam nonsense. A lógica não diz nada, isto é, não é uma figuração de estados de coisas possíveis, mas ela mostra a estrutura de nossa linguagem. Aquilo que torna possível a linguagem não pode ser dito pela própria linguagem e, em certo sentido, transcende à linguagem.

Não sendo possível encontrar essa tautologia lógica nas relações entre as proposições sobre estados de coisas da realidade, Wittgenstein supõe a absoluta independência desses estados de coisas. Assim, o que pode ser dito é aquilo que é o caso, não implicando aí nenhuma relação necessária entre um estado de coisas e outro. O mundo é um conjunto de fatos cuja ligação não pode ser dita pela linguagem sem ultrapassar os limites do que pode ser dito. No Tratactus, Wittgenstein afirma que "pesquisa lógica significa a investigação de toda regularidade. E, fora da lógica, tudo é acidente." (6.3 - itálicos no original)

Eis, pois, uma suposição que une Hume, Popper e Wittgenstein e que determina suas teses acerca do conhecimento da Natureza: só existe necessidade lógica. Isto é, esses pensadores só reconhecem como necessário o vínculo lógico-formal entre conclusão e premissas. Em uma dedução, a conclusão nada diz além daquilo que está nas premissas. Decorre daí que qualquer conclusão que não seja a explicitação daquilo que estava implícito nas premissas será irremediavelmente contraditória. 

A Natureza não exibe esse gênero de necessidade, pois o efeito não se deduz pelo mero exame da causa. O poder de causar o efeito reside na causa, mas não é possível formular a causa de modo a explicitar o efeito como mera consequência analítica de sua definição. Por essa razão, supondo como modelo único da necessidade a necessidade lógica, Hume, por exemplo, não pode admitir entre os fenômenos naturais nada além de "conjunção constante". Nada está unido a nada necessariamente porque nada na Natureza exibe o caráter tautológico da necessidade lógica.

As proposições das ciências naturais são legítimas proposições, pois são figurações de estados de coisas verdadeiros. Mas, a filosofia, a ética, a estética e e religião podem fornecer proposições com sentido? Ao dizer que algo é certo ou errado, não se está afirmando qualquer figuração de um estado de coisas possível. Não é um modelo a ser comparado com a realidade e sim a afirmação de como a realidade deve ou não deve ser. Analogamente, a estética, quando diz que algo é belo, não afirma nenhum modelo de um acontecimento na realidade. Menos ainda a religião. O que poderia significar, dentro dos limites da linguagem propostos por Wittgenstein, a frase "eu realizei a vontade de Deus"?

Não obstante, em seu diário escrito durante os anos de 1914 a 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, quando era tenente de artilharia do exército austro-húngaro, Wittgenstein se pergunta sobre Deus, a religião e a felicidade. Em uma entrada do dia 8/7/1916, ele escreve:

"Para viver feliz, é necessário que eu esteja de acordo com o mundo. E é isso mesmo que significa 'ser feliz'.
Eu estou, então, por assim dizer, de acordo com a vontade estrangeira da qual pareço depender. O que quer dizer que 'realizei a vontade de Deus'.
O medo da morte é o melhor sinal de uma vida falsa, isto é, má." (tradução minha, itálicos no original)

Em outra entrada, dessa vez do dia 1/8/1916, Wittgenstein escreve que "Deus é a maneira na qual tudo tem lugar". Parece, então, que a felicidade é um acordo com o modo como as coisas acontecem. A questão é como determinar o conteúdo da vida feliz. A linguagem é incapaz de fazê-lo:

"Eu cheguei a isto: que, simplesmente, a vida feliz é boa, e que a má é infeliz. E se, agora, pergunto-me por qual razão eu deveria ser feliz, a questão me parece em si mesma tautológica. Parece que a vida feliz justifica-se por ela mesma que é a única vida correta.
Tudo isso é, em certo sentido, profundamente misterioso. Está claro que a ética não se deixa exprimir.
Poder-se-ia, é claro, dizer que a vida feliz é mais harmoniosa que a vida infeliz. Mas, em qual sentido?
Qual é a marca objetiva da vida feliz, harmoniosa? Está claro, de novo, que não pode haver tal marca que se deixe descrever.
Essa marca não pode ser física, mas somente metafísica, transcendente.
A ética é transcendente." (dia 30/7/1916 - itálicos no original)

A ética é indizível, do mesmo modo que a religião e a estética. Não há modo de traduzir essas dimensões em termos de proposições com sentido. O modo como Wittgenstein concebe a natureza da linguagem expulsa do campo do dizer essas dimensões que, no entanto, não deixam de ter importância ou valor. Ray Monk assevera que é justamente a ética o fundo real do Tractatus, segundo o próprio Wittgenstein havia declarado em carta a Ludwig von Ficker. Na carta, o filósofo afirmava ainda que tudo aquilo que ele não havia escrito era, na realidade, o mais importante. Tudo aquilo sobre o que muitos estavam tagarelando, ele havia definido permanecendo em silêncio. (RAY MONK, pag. 22)

O mesmo Ray Monk reproduz em seu livro um trecho de uma carta de Lord Bertrand Russell de 1919 na qual o pensador britânico comenta as tendências místicas de Wittgenstein. Os dois filósofos não se viam há seis anos e Russell viajara à Holanda para rever minuciosamente o texto do Tractatus com seu promissor pupilo. Entretanto, a reação de Russell foi de espanto ao constatar que Wittgenstein havia se tornado um "completo místico" após a guerra. Wittgenstein lia Kierkegaard, Angelus Silesius, Dostoievski, Tolstoi, o clássico estudo sobre mística de William James, Varieties of Religious Experience, e cogitava mesmo tornar-se um monge! E essa tendência manifesta-se em sua obra, pois há no Tractatus interessantes afirmações sobre Deus e a mística:

"6.432 - Como o mundo é, é completamente indiferente para o que é mais alto. Deus não revela a si mesmo no mundo.
6.44 - O místico não é como o mundo é, mas que ele é.
6.45 - A contemplação do mundo sub specie aeterni é sua contemplação como um todo limitado.
          O sentimento do mundo como um todo limitado é o sentimento místico.
6.522 - Há, de fato, o inexprimível. Ele mostra a si mesmo; é o místico." (itálicos no original)

Aparece aqui novamente a noção de mostrar para indicar uma dimensão que transcende os limites da linguagem. Em outra proposição, Wittgenstein afirma que o sentido do mundo não está no mundo (6.41). Em outros termos, o que está no mundo pode ser descrito pela linguagem, mas o que transcende o mundo só pode ser mostrado. Em seu diário escrito durante a gurra, o filósofo austríaco já tratava dessa visão do mundo a partir da eternidade. A entrada do dia 7.10.1916 diz:

"A obra de arte é o objeto visto sub specie aeternitatis; e a vida boa é o mundo visto sub specie aeternitatis. Tal é a conexão entre a arte e a ética.
No modo ordinário de ver, considera-se os objetos, por assim dizer, colocando-se entre eles. No modo de ver sub specie aeternitatis, considera-se os objetos do exterior."

Se o sentido do mundo não está no mundo, então o sentido do mundo transcende os limites da linguagem como figuração. E se a ciência natural é a totalidade das proposições verdadeiras, as questões da ética, da estética e da religião estão fora do escopo da ciência. A proposição não pode expressar nada mais alto que uma figuração de um estado de coisas possível (6.42).

É por essa razão que Wittgenstein afirmará, em 6.52, que sentimos que se todas as questões científicas fossem resolvidas, os problemas da vida permaneceriam os mesmos. Isto é, a ciência não toca nos problemas fundamentais do sentido da vida, da vida feliz e da beleza. Todavia, a solução da questão fundamental da vida aparece justamente quando percebemos que ela não pode ser respondida dentro dos limites da linguagem. Nenhuma questão resta e essa é exatamente a resposta.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Taisen Deshimaru, Zen, ignorância e não-dualismo



"O Buddha passou seis anos  em suas práticas ascéticas e mortificadoras que não o conduziram a outra coisa senão a um estado de degenerescência física próxima da morte e a uma condição mental perturbada ininterruptamente por alucinações. Salvo e curado, tendo recobrado as forças por uma nutrição e por um modo de vida mais próximos da 'norma', o Buddha, após alguns dias assentado pacificamente em meditação, encontra a iluminação. E a grande lição que ele tira de suas experiências passadas confrontadas com sua realização presente foi: a Via do Meio é a única Via justa que todo o ser humano deve seguir para a sua libertação."

TAISEN DESHIMARU, Zen et Vie Quotidienne, p. 60 (tradução minha do original em francês)

"O momento anterior ao qual é possível dizer que a ignorância não existia absolutamente, tal é a origem incognoscível. Mas, se um ser que não existia vem a existir, ou, após haver existido, desaparece, isso possui uma origem cognoscível."

NAGASENA, Milindapanha, Livro II, 27

O mestre Zen japonês Taisen Deshimaru (1914 - 1982), em seu livro Zen et Vie Quotidienne, apresenta os doze innen, cadeias de interdependência de todas as coisas. A primeira é mumyo, ignorância, e o último é shi, a morte. Deshimaru explica que mumyo é o fator comum a toda existência fenomênica e origem de tudo o que é limitado. O mundo fenomênico nasce de mumyo e a iluminação de Buddha realiza justamente o caminho inverso que vai da morte à superação da ignorância primordial.

O príncipe Siddhartha Gautama é confrontado inicialmente com a evidência dolorosa da degenerescência física, do sofrimento e da morte. Em outros termos, Siddhartha percebe a impermanência (Mujo) de todas as coisas. Ele busca, então, compreender o enigma da existência e, fugindo de seu palácio, dedica os próximos seis anos de sua vida a disciplinas ascéticas. Após esse período, abandona aquelas práticas e, assentado sob a árvore Buddhi, alcança o Nirvana

Siddhartha, em seu Satori, recua da morte até à ignorância fundamental e compreende que pela ação de retorno à natureza original, verdadeira e absoluta, é possível emancipar-nos de mumyo. E pela extinção de mumyo todos os sofrimentos cessam e realiza-se o perfeito Nirvana. A ignorância aparece quando nosso espírito dissocia-se da fonte universal e coloca-se em dualidade com relação à ordem do universo.

Todavia, surge a pergunta acerca da origem mesma de mumyo. Como pôde aparecer mumyo quando a realidade última é mu mumyo, não-ignorância, pureza, clareza e iluminação? A questão, afirma Deshimaru, é posta pela consciência dualista. Na realidade, ignorância e iluminação não são diferentes. Cada um dos termos expressa "em graus diversos, níveis múltiplos de consciência escalonados na escala involutiva e evolutiva do manifestado. Fundamentalmente, eles são sem substância, designando somente a atitude da consciência com relação à realidade última." (p. 57)

A concentração em ku (vazio), a realidade última, contém em virtualidade a expansão em shiki (os fenômenos) e, por seu turno, a expansão dos fenômenos contém virtualmente o retorno à fonte última. Os fenômenos manifestados não são diferentes do vazio e o vazio não é diferente dos fenômenos. Eis porque não há nem ignorância e nem libertação da ignorância. Diz o Maka Hannya Haramita Shingyo: Shiki Soku Ze Ku Ku Soku Ze Shiki (fenômeno é vazio e vazio é fenômeno).

Quando vistos a partir do ângulo da multiplicidade dos fenômenos, shiki, os fenômenos existem. Mas quando vistos do ponto de vista da realidade absoluta que tudo engloba, ku, os fenômenos não são mais do que ku, pois não há dualidade em ku. Esse é o sentido não-dual da vacuidade (sunyata). Desse modo, segundo Deshimaru, a solução que o budismo Mahayana oferece ao problema do mal e do sofrimento transcende a todos os dados fenomênicos e confere ao homem o poder imediato de retornar à realidade verdadeira, sua natureza essencial, a natureza do Buddha.
...

Leia também: http://oleniski.blogspot.com/search/label/Zen

Aspectos do simbolismo da ordem em Star Wars



É de conhecimento comum que o diretor americano George Lucas, criador da saga Star Wars, inspirou-se na obra The Hero with a Thousand Faces, de Joseph Campbell, para conceber sua própria mitologia intergaláctica. Não à toa, é possível encontrar em seus filmes inúmeras referências a mitos tradicionais e a doutrinas religiosas e filosóficas ocidentais e orientais. Embora o universo de Star Wars seja cercado de máquinas e de tecnologia avançada, as ações de seus personagens principais são ditadas por valores que transcendem de muito esse âmbito da realidade.

O primeiro Star Wars: A New Hope, por exemplo, é permeado pelo tema da superioridade de uma perspectiva espiritual sobre o horizonte meramente técnico-material. E, curiosamente, uma das cenas mais características dessa hierarquia é protagonizada por Darth Vader, o Lorde Sith, que a defende diante dos oficiais do Império encantados com o "terror tecnológico" da Estrela da Morte.

Na cena, um alto oficial do Império gaba-se do imenso poder de destruição da Estrela da Morte e é interrompido por Vader que afirma que a capacidade de destruir planetas é insignificante diante do poder da Força. Arrogante, o oficial classifica Vader como um "feiticeiro" e sua declaração como uma "triste devoção a uma antiga religião". O que se segue é uma demonstração concreta de Vader do poder da Força, quase asfixiando à distância o oficial, acompanhada por um comentário sarcástico sobre a descrença do militar: I find your lack of faith disturbing.

Assim, manifesta-se que o belicismo tecnológico imperial é um mero instrumento de uma dimensão espiritual mais profunda, ainda que sinistra. O imperador Palpatine, por sua vez, não é um ditador ou um tirano comum, mas o representante de uma linhagem de interpretação da natureza do divino e de suas relações com todos os seres.

Paralelamente, Obi Wan Kenobi também enfrenta semelhante ceticismo acerca da dimensão espiritual da Força. Já embarcados na Millenium Falcon, o mestre Jedi e seu pupilo Luke Skywalker são ridicularizados pelo contrabandista cínico Han Solo que afirma que não crê que haja qualquer coisa que controle e transcenda a todas as coisas. A reação de Obi Wan, ao contrário de Vader, não é demonstrar violentamente a existência da Força, apelando a seus poderes, mas simplesmente sorrir condescendentemente, deixando as coisas exatamente como estão. 

Darth Vader e Obi Wan Kenobi refletem duas concepções simbólicas da ordem da realidade: os cavaleiros Jedi e a República representam a submissão voluntária, harmônica e orgânica das partes em favor da realização do Todo e os Sith e o Império representam a submissão das partes a um projeto de Todo imposto de fora. Os Jedi e os Sith são modos distintos de unificação de todas as manifestações da Força. Os Jedi percebem que multiplicidade não nega a unidade subjacente da Força e respeitam seus diversos modos de manifestação como justos em si mesmos, como aspectos harmonizados no Todo.

Os Sith consideram que a multiplicidade de manifestações da Força unifica-se não somente pela percepção espiritual da unidade subjacente de todas as coisas, mas que ela deve refletir-se palpavelmente na submissão de todas as coisas à unidade imposta pelo representante visível da Força, no caso, o Imperador. Por isso Palpatine e Darth Vader são tão fascinantes. Eles são a encarnação da atraente idéia de que a paz e a ordem só são alcançadas pela imposição de um princípio ordenador externo e irresistível que, de fato, realiza a ordem, ainda que seja por meio da supressão de todo conflito e de toda dissidência advindos das partes.

É interessante notar que, nos eventos cronologicamente anteriores a A New Hope, quando o caráter orgânico da República é ameaçado pela dissidência (fomentada secretamente por Palpatine), a solução encontrada e esposada é justamente a da imposição da ordem por meios bélicos, a saber, a criação de um exército de clones a ser usado contra os separatistas. A vitória de Palpatine acontece justamente quando sua visão de unificação da realidade é voluntariamente adotada pelos cavaleiros Jedi, ainda que com o objetivo de salvar a República.

Note-se, en passant, que um exército de clones simboliza uma força igualmente externa, vinda de fora da República, adquirida por meio do dinheiro, mercenária, cujos constituintes são destituídos de diferenciações e dissenções internas, mas também destituídos de convicção nos valores republicanos. Os clones são um instrumento impessoal que torna evidente a estranha ausência de um exército formado por cidadãos dispostos a defender com suas vidas a República. O Império Galáctico, inaugurado por Palpatine ao fim das guerras clônicas, é simplesmente a consequência lógica da escolha deliberada de uma concepção de ordem política que espelha-se em uma concepção metafísico-religiosa da ordem da realidade.

Em termos espirituais, a atenção do homem, quando voltada para a multiplicidade dos fenômenos, é seguida pelo apego, pela ambição e pelo desejo de controle. Os entes devem todos ser trazidos à ordem e à unidade que serve aos desígnios do Imperador. Já a atenção voltada para a unidade subjacente de todos os fenômenos, a qual revela-se na diversidade de suas manifestações, é seguida pelo desapego e pela negação do ego, o que faz com que os Jedi possuam uma postura serena de respeito desapegado pela multiplicidade dos entes. Luke Skywalker só pode destruir a Estrela da Morte porque abandona os meios técnicos externos e "usa a Força", isto é, sua ação provém justamente da fonte originária de tudo, anterior a qualquer impulso egóico fruto de avaliações enviesadas pelo desejo e pelo medo.

A queda e a posterior desaparição dos Jedi são ocasionadas pela mudança interior de uma percepção espiritual da unidade subjacente dos entes à uma tentativa de manter a sua unidade externa por meio da força e do controle. A ordem 66 realiza o fim material dos Jedi, mas sua derrota deu-se muito antes, em seu espírito.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Marsilio Ficino e a natureza das virtudes



"Como todos sabem, eu segui o divino Platão desde a infância."

MARSILIO FICINO, Carta a Angelo Poliziano, o poeta homérico

"Venham, amigos! Tenhamos sempre diante de nossos olhos a idéia divina e a forma da Virtude. Ela atrair-nos-á pela graça de seu esplendor, incessantemente deliciando-nos com a doçura de sua proporção e de sua harmonia e enchendo-nos completamente com a abundância de tudo que é bom."

MARSILIO FICINO, Carta aos amigos

O filósofo neoplatônico renascentista italiano Marsilio Ficino (1433-1499), em uma carta a Antonio Calderini, versa sobre a definição, a função e o fim das virtudes. Ficino inicia dizendo que não irá fazer discursos e análises detalhadas como os filósofos aristotélicos e estóicos, pois tal não é o caminho platônico. A virtude, avança, como bem afirmavam os pitagóricos, é uma unidade e não uma divisão. É uma qualidade da alma que conduz o homem, por meio da discriminação, à felicidade.

Existem dois tipos de virtude, aquelas do intelecto e aquelas do coração. As primeiras são chamadas de virtudes reflexivas, desenvolvidas e utilizadas pela reflexão, e as últimas são chamadas de virtudes morais, adquiridas pela prática e pelo costume, baseadas na conduta moral e em obras úteis. Entre as virtudes reflexivas estão a sabedoria, que é a contemplação das coisas divinas, a ciência, que é conhecimento das leis naturais, e a prudência, o arranjo apropriado das coisas públicas e privadas. As virtudes morais são a justiça, que dá a cada um seu próprio, a coragem, que afasta qualquer medo, a temperança, que desfaz a lascívia da busca pelo prazer.

A virtude reflexiva é simplesmente a clareza do intelecto adquirida e a virtude moral é a constante iluminação do coração por essa clareza. Todavia, como ensinou Platão, a maior das virtudes é a discriminação. É por ela que o homem pode distinguir o bem do mal em suas ações. E, para adquirir a discriminação, é preciso ouvir os mais antigos e os homens mais experimentados.

É preciso, diz Ficino, consultar o tempo, pois o que é mais antigo que o tempo? Mister é olhar com cuidado para os eventos do passado para aprender com eles. Igualmente necessário é olhar para o futuro, uma vez que o presente deve ser avaliado sob a ótica dos fins de cada ação. O resto deve ser deixado a Deus. O que quer se suceda, deve ser encarado como vindo de Deus. Aquele que rejeita o governo divino das coisas deve ser rejeitado por Deus.

Sendo Ele o princípio e o fim de todas as coisas, não nascemos para nós, mas para Deus. As virtudes só são virtudes se praticadas com o intuito de cultuar, imitar e compreender Deus. O culto de Deus é a maior das virtudes, portanto. E a recompensa das virtudes é a compreensão de Deus.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Kitaro Nishida, Yagyu Munenori e a experiência pura



"No momento em que experimentamos um estado de consciência de natureza direta, ainda não existe sujeito nem objeto, ocorrendo aí uma perfeita unidade entre o conhecimento e o seu objeto. Esse é o supremo aspecto da experiência."

KITARO NISHIDA, Ensaio sobre o Bem, p.23 (trad. Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro)

"O dois depende do um,
 Não vos apegueis ao um.

Se um espírito não se manifesta,
Os fenômenos serão sem erro.

KANCHI SOSAN, Shin Jin Mei, 23 -24 (tradução a partir da tradução de Taisen Deshimaru)


O filósofo japonês Kitaro Nishida (1870 - 1945), no primeiro capítulo de sua obra Zen no kenkyū (Ensaio sobre o Bem), examina o conceito central de sua filosofia, a experiência pura. Esta significa o conhecimento das coisas tais como elas são sem quaisquer elaborações, juízos e discriminações de nossa parte. É o momento anterior à distinção de sujeito e de objeto, como o momento em que ouvimos um som e ainda não o distinguimos como vindo de um objeto externo ou identificamos a natureza desse som.

Nishida afirma que todos os fenômenos espirituais aparecem dessa forma: sensação, percepção, memória ou abstração. A experiência pura é sempre simples no momento de sua ocorrência, mas pode ser considerada complexa porque pode ser analisada posteriormente em seus elementos constituintes. Como quando a consciência presente é analisada e, por essa razão, não é mais a mesma experiência de antes. A análise é uma diferenciação no interior da experiência pura e, por isso mesmo, já não é essa unidade originária.

Não é a simplicidade ou uma pretensa impossibilidade de análise o que caracteriza a experiência pura, mas sim a unidade rigorosa da consciência concreta. Essa unidade da consciência é o que permite que haja a multiplicidade de estados mentais. Originalmente, não há distinções de interior e exterior e o que constitui a experiência é sua unidade e não suas modalidades. 

A simplicidade aqui não significa, cremos, a ausência da pluralidade, mas a experiência indistinta daquilo que é distinto. Nishida fala de uma unidade caótica como a consciência de um bebê recém-nascido que não distingue ainda entre a luz e a escuridão. O mesmo pode ser aplicado a atividades cuja continuidade perfeita de atenção não permite a intromissão de qualquer pensamento, como uma escalada ou ainda a performance de um músico. Embora haja extensão temporal, passagem de um momento a outro, há unidade perfeita de sujeito e de objeto.

Nishida não cita o caso das artes marciais, mas creio que, nesse ponto, seja possível fazer um paralelo com as lições de Yagyu Munenori (1571- 1646), fundador da escola de esgrima Yagyu Shinkage-Ryu. Munenori afirma em seus escritos que se o samurai armado com uma espada está consciente de portar uma espada, seus golpes serão instáveis. Da mesma forma, o flautista e o escritor, se cônscios de suas atividades, eles não as realizarão bem. Isto é, a interferência do pensamento consciente que pensa cada movimento constitui-se em um obstáculo à boa execução de uma atividade.

Somente quando não se tem nada no coração (心), diz Munenori, que se está no Caminho (道). O espelho reflete perfeitamente as coisas justamente porque é amorfo e o coração daqueles que estão no Caminho é como um espelho, vazio e claro, inconsciente e sem desejos. A mente de um artista marcial treinado não está concentrada especificamente em nenhum dos pontos dos movimentos exigidos pelo kata, mas está, por assim dizer, por toda a sua extensão, em unidade. Se a mente estiver atenta a cada movimento, haverá erro na execução do kata. Quando os efeitos do treino contínuo são absorvidos, executam-se os movimentos espontaneamente e livre de pensamentos conscientes.

Nishida considera que a experiência pura seja uma intuição dos fatos tais como eles são e que, portanto, seja desprovida de significado. Sendo caótica e indistinta, os significados e os juízos que surgem de ela são diferenciações que nada acrescentam ao conteúdo da experiência. Assim, os juízos e os significados constituem-se em uma parte que foi abstraída da experiência originária. Em certo sentido, há um empobrecimento da experiência.

Quando identificamos uma percepção auditiva com o som de um sino, relacionamos essa percepção presente a uma percepção passada.  Nascem assim o juízo e o significado graças ao rompimento da unidade da experiência. Todavia, diz Nishida, o juízo, quando sua unidade é rigorosa, pode assumir a forma de uma experiência pura. Tal é o caso do aprendizado de uma arte que, a princípio, é consciente em todos os seus momentos e que depois torna-se como que inconsciente. Como visto acima acerca das lições de Yagyu Munenori.

A experiência pura e o significado ou o juízo são, para Nishida, dois aspectos da mesma consciência ou duas formas de ver a mesma coisa, pois há na consciência sempre unidade e diferenciação. Não obstante, no terceiro capítulo da segunda seção, Nishida afirma que na experiência pura não há a divisão entre sujeito e objeto, mas um fato independente e completo em si mesmo. Quando ouvimos, arrebatados, uma bela melodia, esquecemos de nós mesmos e das coisas, tudo é uma unidade absoluta. Nesse momento, apresenta-se a realidade verdadeira. Quando o "eu" aparece, surge o pensamento e a reflexão e esquecemos a verdadeira realidade.

...

Leia também: 


terça-feira, 2 de julho de 2019

Nishitani Keiji, Platão e a diferença entre o pensamento ocidental e o pensamento oriental



"O espírito do Ocidente, como eu disse no início, é racional - o espírito de racionalidade e de lógica. Seu significado, como acabamos de ver, deve ser encontrado na criação gradual e racional do homem na busca e descoberta da novidade por meio desse espírito. Isso representa um elemento importante do espírito ocidental que impressiona-me como muito diferente do espírito do Oriente. A ciência e a filosofia do ocidente desenvolveram-se como um saber não encontrado no Oriente, saber esse cuja essência é razoável, racional, criativo e revelador."

NISHITANI KEIJI, Nishida Kitaro: The Man and His Thought, p. 55

O filósofo japonês Keiji Nisihitani (1900 - 1990), em sua obra Nishida Kitaro: The Man and His Thought, apresenta o pensamento filosófico de seu mestre Kitaro Nishida (1870 - 1945), figura principal da chamada Escola de Kioto. Nishitani mostra como Nishida estava profundamente imbuído do espírito do Zen Budismo (por exemplo, passando diariamente horas praticando zazen)e como, não obstante, estava inserido nas intrincadas discussões filosóficas ocidentais, clássicas e contemporâneas.

No segundo capítulo do livro, Nishitani aponta as características definidoras do pensamento ocidental e do pensamento oriental. O sentido ocidental de "conhecimento" inicia-se com os gregos e inclui tanto a filosofia quanto a ciência. Platão, principalmente, e Aristóteles, não seria exagero afirmar, lançaram os fundamentos da ciência e da filosofia ocidentais. Platão apresentou sua filosofia na forma de diálogos. Nishitani considera esse fato de grande interesse e significado, pois o diálogo é uma disputa  que acontece quando duas pessoas estão em um solo comum, a saber, o da razão.

Não significa que no oriente não haja diálogo, mas estes acontecem em um cenário mais controlado, tendo como objetivo uma compreensão mais correta da doutrina budista, por exemplo. Os diálogos de Platão, por seu turno, não possuem tais padrões ou estruturas fixas. Tudo acontece como nas conversações e discussões ordinárias, embora o diálogo esteja assentado e garantido pela lógica e pela razão.

A aceitação dos ditames da razão é requerida como conditio sine qua non do diálogo, de modo que aferrar-se à própria opinião a despeito de suas bases racionais é abandonar a discussão. Nishitani afirma que o diálogo é uma submissão do ego à razoabilidade, uma ascensão do ponto de vista do ego ao ponto de vista da razão. Nesse sentido, o diálogo é sempre uma busca, seu espírito é o da pesquisa e da descoberta.

Novamente, a busca não está ausente do pensamento oriental. O budismo é também uma busca, mas não no mesmo sentido que nos diálogos de Platão, a gradual descoberta de algo novo por meio do diálogo de dois ou mais participantes. O diálogo é a formação e a educação do homem a partir da razão, constituindo-se em algo extremamente criativo e revelador.

O espírito ocidental, portanto, é o da lógica e da racionalidade. O método tem grande importância nesse esquema, pois a objetividade do método garante a objetividade do conhecimento e a possibilidade de que todos alcancem o mesmo saber justamente pelo uso escrupuloso do método. No pensamento oriental, há outros meios de transmissão de conhecimento. No Zen, por exemplo, há a transmissão de mente a mente, algo não acessível a todos. Por essa razão, embora seja um conhecimento de fonte profunda, não é passível de desenvolvimentos como os que manifestam as ciências ocidentais.

Nishitani considera que é daí que decorrem os importantes aspectos sociais e históricos do conhecimento ocidental. Desde Platão e Aristóteles, fundadores da Academia e do Liceu respectivamente, o saber do Ocidente é comunal e colaborativo. A consciência social/histórica ocidental desenvolveu-se a partir dessa base de conhecimento comunal. "As dimensões racional, inquisitiva, metódica, histórica e social do espírito ocidental estão unidas, por assim dizer, desde a raiz. Falar sobre o lógico é falar, ao mesmo tempo, sobre o inquisitivo e a descoberta. Todos compartilham a característica de uma busca pela novidade, da qual a historicidade emerge para forjar as várias facetas do espírito ocidental em um único todo." (p.58)

O espírito oriental, Nishitani ensina, é extremamente intuitivo, em vez de lógico, racional e metódico. Não é necessário afastar-se de si mesmo para conhecer as coisas, mas sim conhecer as coisas do ponto onde se está unido às coisas. Nem é preciso afastar-se das coisas para conhecer-se a si mesmo, mas sim conhecer a si mesmo a partir do ponto onde as coisas estão unidas a si mesmo. Esse é o ponto de vista do nada e da vacuidade (Sunyata). Nishitani não usa essa expressão, mas creio que se possa chamar essa atitude de visão a partir da unidade originária de todas as coisas.*

Segundo Nishitani, a filosofia de seu mestre, Kitaro Nishida, por exemplo, é baseada na absoluta vacuidade. Isso não significa, todavia, que não haja nada. Ao contrário, vacuidade é a forma de todas as coisas. É o ponto a partir do qual as coisas aparecem em sua realidade, distanciadas de toda interferência das discriminações e relativizações do ego. Ver as coisas como opostas ao eu é vê-las como separadas em termos de sujeito e de objeto. O "ponto de vista" que transcende essa dualidade é chamado vacuidade ou não-ego (Anatta). Tornar-se um com tudo e agir de acordo com essa unidade.

O não-ego ultrapassa o eu discriminador e torna-se uno com a vida do universo. Só assim as coisas aprecem em sua real natureza, em sua "talidade", na qual as coisas se manifestam tais como elas são. Não há mais interior e exterior, pois, na raiz, tudo é um. A vacuidade oblitera o estrito ponto de vista do eu separado de todas as coisas.

Não obstante, a vacuidade não é nem materialismo e nem idealismo. O materialismo afirma que tudo não é mais que matéria e o idealismo afirma que tudo é mente. Ambos são lados de uma mesma dualidade que deve ser ultrapassada. Quando o budismo ensina que "a mente e as coisas são um", o que se quer apontar é esse estado no qual a mente e as coisas não mais existem separadamente e, por isso, podem aparecer tal como são realmente.

A vacuidade é diferente da idéia de transformação das coisas que se tem no ocidente. A ciência analisa, sintetiza e transforma as coisas a partir do conhecimento das leis naturais.A ciência está envolta na tentativa de transformar a natureza, inclusive criando entes novos em laboratórios. O pensamento oriental é diferente, pois, em vez da transformação da natureza, almeja a transformação do eu. E como a vacuidade une todas as coisas, ela está para além da lógica e da razão. 

...

* Ver: http://oleniski.blogspot.com/2018/09/notas-sobre-o-caminho-da-espada-e.html

Leia também:

http://oleniski.blogspot.com/2019/06/kitaro-nishida-zen-e-o-senso-da-beleza.html
http://oleniski.blogspot.com/2019/02/eihei-dogen-taisen-deshimaru-e-o.html

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Paul Friedländer: Platão, Sócrates, diálogos e os Upanisads



"Não há conflito entre Platão, o metafísico, e Sócrates, o inquiridor irônico: o próprio Platão sempre viu em Sócrates um símbolo tanto da realidade quanto da inexpressibilidade daquilo que ele, de modo muito simples, chamou de 'o bem'."

PAUL FRIEDLÄNDER, Plato: an Introduction, p. 170


No capítulo VIII de sua introdução ao pensamento de Platão, o filósofo alemão Paul Friedländer discute a natureza dos diálogos de Platão e, em dado momento, permite-se uma interessante digressão sobre uma outra tradição de diálogos mais antiga que a dos gregos, a saber, os Upanisads indianos. Algumas páginas antes, Friedländer afirma que, com Sócrates, um movimento dialógico entra no pensamento grego e na vida intelectual do mundo ocidental, movimento esse que não existia anteriormente.

Todavia, o autor reconhece que há uma tradição dialógica (provavelmente sem nenhuma conexão histórica com Platão) anterior à grega e que é uma grande literatura de conversações filosóficas no mundo inteiramente diferente da Índia. Essa tradição espelha uma vida marcada pelo debate e pode ser comparada aos diálogos socráticos (Σωκρατικοί Λόγοι) por também construírem seus diálogos como obras literárias em contraste com a conversação natural. Esse parece, contudo, ser o único elemento que ambas as tradições têm em comum.

Friedländer assevera que as realidades apresentadas nesses diálogos são completamente diferentes. No caso grego, é Sócrates, a um tempo conhecedor e ignorante, que pergunta, testa e educa. Nos Upanisads, são diversos sábios competindo entre si e proclamando suas doutrinas a partir da profundidade de suas sabedorias. Mesmo quando um sábio destaca-se entre os outros, como Yajnavalkya, ele é muito diferente de Sócrates, pois a pessoa importa tão pouco que a mesma proclamação de sabedoria é feita por um outro sábio, Aruni, ou mesmo por um deva.

Aparentemente, mais próxima à tradição dos diálogos socráticos, como Friedländer considera, estão as conversações e debates competitivos de Siddharta Gautama, o Buddha. De fato, aqui encontra-se o iluminado parcialmente pregando e parcialmente comunicando a eles as doutrinas básicas sobre o sofrimento e a libertação do sofrimento. Não obstante, na situação bem como na forma da conversação, há similaridades com os diálogos socráticos. 

Mas as diferenças incomparáveis entre os mundos grego e indiano, a proclamação de uma doutrina inabalável, a atribuição da sabedoria a si mesmo do Buddha mostram, diz Friedländer, que às conversações do iluminado tanto quanto àquelas dos Upanisads falta a unidade orgânica superior alcançada por Platão em suas obras. E isso conduz ao cerne da comparação: que o autor dos diálogos não ensina nada ele mesmo, mas o que ele diz reflete seu mestre. Não há nenhum elemento de tensão entre seus próprios processos de pensamento e aqueles que ele está descrevendo. 

O mundo platônico, por seu turno, afirma Friedländer, tem um centro e uma periferia separados de Sócrates. O que distingue os diálogos platônicos dos diálogos de Sócrates é o fato de que, além de espelhar a vida socrática, eles são também uma exposição da própria filosofia de Platão. Mas se este é o caso, não há conflito entre o modo socrático, sempre inquirindo, buscando e professando ignorância, e o dogmatismo de Platão? Por qual razão ele teria escolhido um meio de expressão que estivesse tão longe de seu mestre?

Sócrates era completamente comprometido com o discurso oral, de modo que jamais escreveu suas idéias filosóficas. Mas não há como saber se ele, em algum momento, teceu reflexões sobre o valor do discurso escrito. O que sabemos é que Platão fez considerações sobre o valor da escrita pela boca de Sócrates nos diálogos e nas suas cartas.

Não obstante, diz Friedländer, "o impulso do artista criativo sempre esteve aceso nele com um poder tremendo". A nova experiência de Sócrates, e não a dos heróis trágicos, exigia uma expressão criativa. Ademais, os diálogos afastavam as objeções formuladas contra os livros escritos: que são rígidos e que não sabem como responder a questões. O diálogo escrito transmite sua dinâmica dialógica e dialética ao leitor.

Para Sócrates, só há filosofia como uma atividade contínua e suas conversações variavam de acordo com seu interlocutor. Platão, a despeito de transmitir doutrina e sabedoria, incorpora o princípio educativo socrático da filosofia conduzida por uma constante mudança de perspectivas que revelam diferentes aspectos da questão geral. E o conhecimento humano não repousa quando conquistado. Ao contrário, o que é adquirido é sempre ameaçado por forças contrárias. A dialética possui uma tensão que a torna viva.

Por outro lado, afirma Friedländer, essa forma intelectual transforma-se em uma forma dramática. O autor dramático reflete o mundo como uma luta de forças autênticas e personalizadas. Os diálogos dão voz e expressão a posições que, embora não sendo as esposadas pelo próprio Platão, em certa medida faziam parte de Platão como forças a serem conquistadas interiormente.

O princípio socrático de destruição das pretensões de conhecimento do interlocutor a fim de abrir o caminho para a busca conjunta pela verdade manifesta-se em Platão, segundo Friedländer, como uma tensão na qual a falsidade deve ser, antes de tudo, identificada e as forças opostas destruídas, para que, só então, seja possível passar à reconstrução do saber. Os primeiros diálogos platônicos têm essa função. Esse caminho hierárquico do conhecimento é o caminho dialético que, por sua vez, reflete-se nos diálogos.

Aqui chega-se ao contraste entre o caminho filosófico socrático e o caminho filosófico platônico. Platão não encerra a discussão, como Sócrates, com uma declaração de ignorância. Ele encontrou um mundo metafísico e, por isso, tinha como tarefa fazer com que outros enxergassem essa realidade através de seus olhos. Isto é, Platão descobriu o que Sócrates buscava.

Mas foi pela dialética socrática que o discípulo alcançou o mundo das formas eternas. Daí que Platão sentisse a necessidade de levar o discurso socrático para além de seus limites originais e, assim, a dialética tornou-se a escada pela qual ascende-se das hipóteses condicionais ao incondicional. E no cume de tudo está aquilo que é "para além do ser", incognoscível e incomunicável. A característica admissão socrática de ignorância é espelhada pela ausência de expressão da verdade final em Platão.