terça-feira, 19 de novembro de 2019

Taisen Deshimaru, Zen, filosofia e não-dualidade



"Ku não significa 'vazio', mas a potência terrível e infinita do cosmos, o imenso potencial cósmico. Ku produz e destrói todas as existências fenomênicas. Assim, o ku soku ze shiki do Hannya Shingyo significa a indiferenciação de ku e dos fenômenos, ku designando o absoluto."

TAISEN DESHIMARU, Zen et Vie Quotidienne, p.233 (itálicos no original em francês)


Em seu livro Zen et Vie Quotidienne, o mestre Zen japonês Taisen Deshimaru oferece importantes esclarecimentos acerca do Hannya Shingyo, o "Sutra do Coração", e do significado da visão não-dual da realidade no budismo. No capítulo onde trata da noção de karma, Deshimaru cita o grande mestre budista indiano Nagarjuna (150 -250 D.C.) que dizia que não há noumeno, mas não há também não-noumeno. É o que expressa o Sutra do Coração quando diz shiki soku ze ku, ku soku ze shiki (色即是空, 空即是色). Shiki (色, "tudo o que tem forma", fenômenos) torna-se ku (空, "vazio", "sem forma") e ku torna-se shiki.

Deshimaru explica que esse é o princípio do budismo Mahayana e, por conseguinte, do Zen. Esse princípio significa que não é possível afirmar um aspecto da realidade e negar integralmente o outro. Seria cair em um dualismo injustificado. Dado que há a interdependência de todas as coisas, como ensina Nagarjuna, tudo é vazio (Sunyata), isto é, nada existe por si mesmo, sempre dependendo de outros para existir. Contudo, não é possível dizer também que os fenômenos não existem. A solução é a Via do Meio.

Há, por um lado, os fenômenos e, por outro, há a eternidade, o que está para além de todo o fenômeno. Essas são realidades indissociáveis e devem ser apreendidas sempre em conjunto. Ku e shiki, permanência e impermanência, ego e não-ego, Samsara e Nirvana. Imanência e transcendência estão unidas na realidade.

Todas as existências são ku, "fenômenos do imenso poder cósmico, situado para além de todos os mundos, físicos e metafísicos, materiais e espirituais. Somente a potência cósmica fundamental é absoluta, sem noumeno, ku", assevera Deshimaru. O poder cósmico fundamental é desde toda a eternidade, sem começo e sem fim, existência absoluta e eterna.

Durante o zazen (meditação), por meio do abandono do ego, podemos fazer a experiência da unidade com essa realidade. em termos religiosos, trata-se da união divina, a comunhão mística. No tantrismo, no Hinduísmo tradicional e no budismo tibetano esse poder cósmico fundamental é dominado de Sakti, "poder". No Advaita Vedanta, a tradição não-dualista hindu, encontra-se o termo Maya, designando a força cósmica que atualiza Brahman infinito, a realidade última.

O ego e ku são incessantemente colocados em uma relação dual, mas, por meio do zazen, é possível experimentar que o ego torna-se Deus ou o absoluto.  Abandonar o ego significa abandonar todo o apego à substância do ego, é estar em mushin (無心), "não-mente". A iluminação budista corresponde à realização do poder cósmico fundamental latente em cada homem.

Todavia, essa realização está para além do racionalismo e da filosofia, pois estes são incapazes de formular a totalidade da realidade, mais ainda quando se trata da realidade metafísica ou religiosa. Nesse campo impera a intuição direta e o não-discursivo, tudo é compreendido instantaneamente. Embora a filosofia também busque essa compreensão global, ela jamais deixará de ser somente conhecimento hipotético. Os problemas filosóficos são concebidos dentro dos limites restritivos do intelecto. 

A abertura ao Absoluto, afirma Deshimaru, transcende toda filosofia, toda teologia e toda metafísica, limitadas que são aos dados racionalistas do conhecimento lógico, discursivo, parcial e sempre relativo. A religião alcança a verdade última através da experiência mística do silêncio, do não-pensamento, do que está para além do pensamento. O silêncio é o fim de todo pensamento, de toda a palavra e de toda a especulação. É o retorno ao poder fundamental, reunião daquilo que era antes UM.

Na filosofia ocidental há tantas metafísicas quanto metafísicos. O Oriente, ao contrário, perpetua uma tradição cuja mensagem lança suas raízes na experiência religiosa vivida, suprema e universal. Enquanto o ocidental concede a primazia ao espírito (ao mental e ao intelecto) sobre o corpo, o oriental concebe que o espírito não é mais do que agitação, movimento incessante e fonte de problemas e que é necessário fazer cessar pela ascese silenciosa. 

Segundo Deshimaru, essa é a razão pela qual a filosofia ocidental jamais sobreviveu ao tempo, excetuando-se a filosofia daqueles que vivenciaram a experiência religiosa, a saber, os sábios e os místicos. No budismo, o homem tem a natureza do Buddha e deve retornar a ela por meio da meditação, zazen.
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