quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Taisen Deshimaru, Zen, ignorância e não-dualismo



"O Buddha passou seis anos  em suas práticas ascéticas e mortificadoras que não o conduziram a outra coisa senão a um estado de degenerescência física próxima da morte e a uma condição mental perturbada ininterruptamente por alucinações. Salvo e curado, tendo recobrado as forças por uma nutrição e por um modo de vida mais próximos da 'norma', o Buddha, após alguns dias assentado pacificamente em meditação, encontra a iluminação. E a grande lição que ele tira de suas experiências passadas confrontadas com sua realização presente foi: a Via do Meio é a única Via justa que todo o ser humano deve seguir para a sua libertação."

TAISEN DESHIMARU, Zen et Vie Quotidienne, p. 60 (tradução minha do original em francês)

"O momento anterior ao qual é possível dizer que a ignorância não existia absolutamente, tal é a origem incognoscível. Mas, se um ser que não existia vem a existir, ou, após haver existido, desaparece, isso possui uma origem cognoscível."

NAGASENA, Milindapanha, Livro II, 27

O mestre Zen japonês Taisen Deshimaru (1914 - 1982), em seu livro Zen et Vie Quotidienne, apresenta os doze innen, cadeias de interdependência de todas as coisas. A primeira é mumyo, ignorância, e o último é shi, a morte. Deshimaru explica que mumyo é o fator comum a toda existência fenomênica e origem de tudo o que é limitado. O mundo fenomênico nasce de mumyo e a iluminação de Buddha realiza justamente o caminho inverso que vai da morte à superação da ignorância primordial.

O príncipe Siddhartha Gautama é confrontado inicialmente com a evidência dolorosa da degenerescência física, do sofrimento e da morte. Em outros termos, Siddhartha percebe a impermanência (Mujo) de todas as coisas. Ele busca, então, compreender o enigma da existência e, fugindo de seu palácio, dedica os próximos seis anos de sua vida a disciplinas ascéticas. Após esse período, abandona aquelas práticas e, assentado sob a árvore Buddhi, alcança o Nirvana

Siddhartha, em seu Satori, recua da morte até à ignorância fundamental e compreende que pela ação de retorno à natureza original, verdadeira e absoluta, é possível emancipar-nos de mumyo. E pela extinção de mumyo todos os sofrimentos cessam e realiza-se o perfeito Nirvana. A ignorância aparece quando nosso espírito dissocia-se da fonte universal e coloca-se em dualidade com relação à ordem do universo.

Todavia, surge a pergunta acerca da origem mesma de mumyo. Como pôde aparecer mumyo quando a realidade última é mu mumyo, não-ignorância, pureza, clareza e iluminação? A questão, afirma Deshimaru, é posta pela consciência dualista. Na realidade, ignorância e iluminação não são diferentes. Cada um dos termos expressa "em graus diversos, níveis múltiplos de consciência escalonados na escala involutiva e evolutiva do manifestado. Fundamentalmente, eles são sem substância, designando somente a atitude da consciência com relação à realidade última." (p. 57)

A concentração em ku (vazio), a realidade última, contém em virtualidade a expansão em shiki (os fenômenos) e, por seu turno, a expansão dos fenômenos contém virtualmente o retorno à fonte última. Os fenômenos manifestados não são diferentes do vazio e o vazio não é diferente dos fenômenos. Eis porque não há nem ignorância e nem libertação da ignorância. Diz o Maka Hannya Haramita Shingyo: Shiki Soku Ze Ku Ku Soku Ze Shiki (fenômeno é vazio e vazio é fenômeno).

Quando vistos a partir do ângulo da multiplicidade dos fenômenos, shiki, os fenômenos existem. Mas quando vistos do ponto de vista da realidade absoluta que tudo engloba, ku, os fenômenos não são mais do que ku, pois não há dualidade em ku. Esse é o sentido não-dual da vacuidade (sunyata). Desse modo, segundo Deshimaru, a solução que o budismo Mahayana oferece ao problema do mal e do sofrimento transcende a todos os dados fenomênicos e confere ao homem o poder imediato de retornar à realidade verdadeira, sua natureza essencial, a natureza do Buddha.
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