sábado, 15 de junho de 2024

Jakob Wassermann e o simbolismo de "O Ouro de Cajamalca"

"Compreendi que nenhum sonho até então, por mais aterrorizante que fosse, havia despertado em Atahualpa o pressentimento de que existiria sobre a terra seres como nós."

JAKOB WASSERMANN, "O Ouro de Cajamalca"

A novela "O Ouro de Cajamalca" (Das Gold von Caxamalca), publicada em 1923 pelo escritor alemão Jakob Wassermann (1873-1934)*, aparenta ser, à primeira vista, uma reflexão literária sobre os conflitos éticos e epistemológicos que se seguem ao encontro de duas culturas cujos valores são mutuamente incompreensíveis. De um lado, os peruanos, centrados na figura hierática do Inca, Atahualpa, de quem emanava toda a organização social, religiosa e política de seu povo. Do outro, os conquistadores espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, cujos sentimentos confusos tentavam conciliar a sua fé cristã com a baixeza da obsessão pelo ouro.

O livro de Wassermann narra um episódio trágico acontecido durante a campanha militar do general Pizarro sob a forma do relato em primeira pessoa redigido pelo cavaleiro espanhol Domingo de Soria Luce quando este já havia se retirado do mundo e vivia como monge na cidade de Lima, treze anos após a conquista do Peru. Em novembro de 1532, trezentos soldados espanhóis, entre cavaleiros e infantes, após atravessarem com muitas dificuldades a Cordilheira dos Andes, alcançam Cajamalca, a "cidade gelada".

Cajamalca se encontrava vazia, aparentemente abandonada por seus habitantes pouco antes que os conquistadores ali chegassem. Nas encostas das montanhas à frente da cidade, contudo, estavam espalhadas as milhares de tendas brancas do exército do Inca, o imperador Atahualpa, acampado à espera dos invasores europeus. Dominado pela cobiça tanto quanto seus companheiros, Domingo não esconde que a busca da riqueza foi sua principal motivação para tomar parte naquela empreitada repleta de vicissitudes, perigos, privações e dissabores.

O ouro! Ah, o ouro! O metal nobre que corria na forma de rios, que cobria mesmo os tetos das habitações, dos palácios e dos templos! Entre aquela horda de almas sedentas vindas do outro lado do oceano e a cornucópia de dons infinitos estava Atahualpa, tal como a serpente que nunca dorme entre Jasão e a árvore do velocino de ouro. Qual feitiço adormeceria essa serpente? Quem seria a Medéia que conjuraria as forças da deusa do Hades a fim de franquear aos espanhóis o caminho do tesouro?

Pizarro decide atrair Atahualpa para uma emboscada. O general envia uma embaixada, e convence o imperador a visitá-lo em Cajamalca no dia seguinte. Seu plano é sequestrá-lo, e assim derrotar o monstro sem nenhuma luta. A nobreza do imperador o impede de vislumbrar o ardil. Ele desce da montanha, desarmado, sentado sobre um trono de ouro puro, carregado por um séquito de nobres. Incrédulo, porém resignado, Atahualpa vê seus súditos serem massacrados, e ele mesmo capturado pela súcia de seres incompreensíveis. Que tipo de entidades eram aquelas capazes de atos flagrantemente ardilosos e traiçoeiros? 

Atahualpa descendia do Sol que, em benefício dos homens, enviou-lhes no início dos tempos o casal primordial, irmão e irmã, esposo e esposa, que lhes ensinaram os princípios da civilização. O Inca, é a presença concreta no mundo da ordem solar que se manifesta por meio da dualidade primária, o hieros gamos, da qual todas as coisas nascem. Sob sua influência, os peruanos viviam sem miséria e sem riqueza, trabalhavam nas suas terras, nas terras comunitárias e nas terras do Sol, o Pai de todos. Não havia mendicância, cupidez, insatisfação ou egoísmo.

Atahualpa vem da montanha como uma emanação do Axis Mundi para atender o chamado daquelas estranhas criaturas. Não pode compreender os motivos dos desarrazoados que o traíram e o aprisionaram. Encerrado por Pizarro em uma casa e vigiado por soldados, permanece mudo e pensativo. Um grupo de súditos e de algumas de suas esposas, obtém a permissão de acompanhar seu soberano em sua desdita. Espantado e horrorizado, aos poucos Atahualpa compreende que aqueles seres que o mantém cativo trocariam tudo, inclusive a honra e a vida, pelo ouro, o metal abundante e sem valor que decora as cidades peruanas.

Eles almejam a transmutação, mas do ouro só conhecem o seu significado material. Presos e afundados na azáfama deste mundo, o que demandariam ao Princípio senão o que pertence ao aspecto bruto da realidade? Não é espantoso que a comunicação dos conquistadores com o Inca se dê por meio de um intérprete peruano, Felipillo, que nutre ódio infindo por seu povo e por Atahualpa. Figura do caído, Felipillo é aquele que esteve um dia sob a influência do Princípio, e que agora, descido ao nível dos adoradores do metal, recorda o suficiente do idioma sagrado, mas o utiliza somente para formular os desejos mais baixos de seus novos mestres.

O intérprete explica a Atahualpa que sua liberdade poderia ser garantida se prometesse ouro aos espanhóis.  Ele o faz, promete preencher aquela casa com tanto ouro quanto queiram seus captores. Os súditos do Inca trazem, dia após dia, mais e mais objetos feitos do metal ambicionado que se acumulam até alcançar a marca traçada por Pizarro no acordo. Ídolos, máscaras, pratos, braceletes, vasos, e até uma fonte esculpida, tudo foi derretido para ser transformado em barras a serem distribuídas aos membros da alcateia. 

As formas se perdem, "retornam à matéria primeira", segundo a apta expressão de Domingo, o narrador. Tudo é reduzido ao indeterminado comum numa operação alquímica cujo resultado é a transmutação do ouro em vil metal. Por trás de cada barra se escondem fantasmagoricamente as inúmeras possibilidades de realização dos desejos baixos concebidos nos corações daqueles homens, símbolos das forças dissolventes que corrompem e por fim destroem a ordem.

Felipillo secretamente envenena a mente do general acusando Atahualpa de estar conspirando com seus súditos contra os conquistadores. Mesmo sem acreditar no pérfido intérprete, Pizarro enxerga a oportunidade de se ver livre de suas promessas. Um tribunal é rapidamente constituído, e, ouvidas as testemunhas, Felipillo incluso, o veredito inevitável não se deixa tardar: Atahualpa é condenado a ser queimado vivo em uma fogueira. 

Alguns não concordam e protestam. Domingo, fraco, incapaz até mesmo de encontrar as palavras para expressar sua discordância e sua reticência, emudece, não aprova e nem protesta. Morno, igual aos que serão vomitados da boca do Senhor. Atahualpa apela a Pizarro, pede clemência, questiona a razão do general ser tão indigno e traiçoeiro com quem o recebeu com cordialidade e amizade em suas terras. Nenhuma das palavras aladas demove o comandante de seu intento funesto.

O Inca aceita seu destino, e solicita ser morto ao amanhecer, diante do Sol, seu pai. Ordena a seus súditos que tragam a ele seus ancestrais para uma última ceia. Nesse ínterim, Atahualpa pede a Domingo que escreva uma palavra em sua unha para que os soldados leiam e a sussurrem em seu ouvido a fim de confirmar ao Inca a arte da escrita que os espanhóis dominam. Domingo escreve a palavra "cruz". 

Pizarro, contudo, não sabe ler e nem escrever. O simbolismo não poderia ser mais claro. O general não entende a mensagem de Domingo, fosse ela consciente ou não. Atahualpa percebe a inadvertida humilhação a que submeteu o seu captor, e tenta saná-la com suavidade e mansidão. Chama Pizarro de "deus entre seus homens", e, após a inflamada resposta do comandante contra o paganismo peruano e defesa da verdade da fé cristã, segue-se um amargo debate teológico em que o Inca questiona como seria possível a ele crer no deus de misericórdia e de amor que permite que seus fiéis assassinem inocentes.

À noite, um evento insólito, que marca indelevelmente o espírito de Domingo, acontece na casa onde Atahualpa é mantido prisioneiro. Em torno do Inca, sentado no centro, são postados por seus súditos vinte e quatro assentos de ouro, doze à sua esquerda e doze à sua direita. Atônitos, os espanhóis veem chegar doze múmias masculinas e doze femininas carregadas solenemente em tronos de ouro carregados por nobres peruanos ricamente trajados. Elas são respeitosamente postadas nos lugares em torno de Atahualpa.

São os veneráveis ancestrais do Inca que vieram tomar parte da cerimônia sagrada na qual o soberano se despede desse mundo. Sobre a mesa central, um imenso Sol de ouro foi depositado. À direita de Atahualpa estavam seus ancestrais masculinos, enquanto à esquerda postavam-se suas ancestrais. Doze representações simbólicas do casal original de irmãos, esposo e esposa, saídos diretamente da unidade omniabarcante do Sol em benefício dos homens. 

Impassível e pleno de dignidade, de harmonia e de beleza, Atahualpa, em pé, era o Sol encarnado desse cosmos formado por seus ancestrais. Ele dirige a palavra aos seus captores e lhes pergunta como era viver nas trevas, sem a luz do Sol. Os espanhóis, indignados, respondem que possuem a verdadeira fé, e que não estão privados da luz. Mas, se é o mesmo Sol que os ilumina em suas terras, por qual razão eles movem-lhe guerra?

Atahualpa insiste que aqueles homens não podem acreditar nos valores que professam ao mesmo tempo em que não respeitam as leis, os lugares e os objetos sagrados, e creem-se no direito de tomar à força o que desejam sem recuar diante de nada. Ninguém que entende o que é o hagnos pode compurscar o temenos. O Inca assevera que, depois de muita meditação, conseguiu identificar o que tornava os seus captores tão fortes: o ouro.

É o ouro, e nada mais, que os motiva, que os enche de coragem para tudo contaminar e de tudo se apropriar sem peias. O metal é o seu Deus e o seu redentor, não o Cristo. Ao adquirir o ouro, contaminam e transmutam a própria alma. Aquele que o possui considera-se rico, posto que não conhece outro Sol. Seres de trevas, dignos de pena.

Nesse momento, os guardas e o resto da soldadesca, enfeitiçados pela luz dourada que refulgia dos tronos, das jóias, das vestimentas e dos acessórios dos ancestrais diante dos quais Atahualpa respeitosamente se inclinava, abandonaram suas posições, e avançaram a fim de tomar algo desse tesouro. Olhos vidrados, possuídos pela avidez, brigavam entre si pelo último butim. Atahualpa, serenamente, com um sorriso no rosto, parte para o seu holocausto, à luz dos primeiros raios do Sol.

O Inca provara seu ponto. À frente do Sol encarnado, rodeado por seus veneráveis ancestrais, em uma cerimônia sagrada, aqueles homens não viram nada além do mundo material imediato e dos desejos terrestres transubstanciados no ouro. A figura terrestre de Atahualpa é o corpo translúcido que deixa ver sem barreiras o Princípio. Na sua identificação com o Sol, ele é semelhante ao Cristo que é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus.

"Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai?" (Jo 14,9). Nisso se resume a natureza do símbolo. Quem vê o Cristo, vê o Pai, pois o homem terreno Jesus de Nazaré não tem nele nada que obstaculize a visão do Princípio, pois este se manifesta plenamente naquele. Não há razão para que os discípulos peçam ao Cristo que ele mostre o Pai. Somente a visão apegada às coisas é incapaz de enxergar a luz do Princípio que flui sem obstáculos através daquela pessoa terrena.

O símbolo só pode comunicar o seu significado quando ele é vazio, quando a coisa que simboliza desaparece para dar lugar ao simbolizado. Todas as coisas podem ser símbolo porque todas as coisas são ontofania e teofania. Essa é uma lei ontológica. O Princípio só aparece no desaparecimento das coisas. Não a desaparição física, mas o esvaziamento no qual os entes não se impõem mais a nós enquanto entes cuja opacidade impede que se enxergue que não é esta coisa que é importante, e sim aquilo a que ela remete fundamentalmente.

O fundamento só é discernido quando o que ele fundamenta é abstraído, esquecido, ultrapassado. O ouro em si mesmo nada tem de mal. O que os espanhóis veem, no entanto, é só o metal opaco que tem o poder convencional de adquirir miríades de bens e objetos igualmente opacos. Atahualpa, numa última tentativa de fazê-los vislumbrar a transcendência, oficia um rito sagrado, assume a figura tradicional do rei-sacerdote, aquele que possui as duas chaves de Janus, o poder temporal e o poder espiritual.

À última ceia segue-se o juízo, confirma-se a indignidade daqueles homens cegos pela cupidez. Assediado por essas forças dissolventes, a Ordem, o Princípio, caminha na direção do holocausto. Sob o olhar do Sol, Atahualpa queima, dissolve seu corpo e, com ele, retira-se do mundo, pelo poder simbólico de purificação do fogo, uma das múltiplas possibilidades de manifestação da Realidade. 

Domingo, o narrador, cansado de tanta morte e destruição, meditando amargamente sobre "a natureza humana e suas possibilidades inexploradas", abandona a vida mundana, e recolhe-se à contemplação monacal. Ali ele deseja a existência de uma estrela que irradiasse uma luz mais nobre que a do Sol sob o qual se deu o percurso de sua vida, e que parecia haver sido abandonado por Deus.

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* Jakob Wassermann é mais conhecido por sua trilogia "O Processo Maurizius", "Etzel Andergast" e "A terceira existência de Joseph Kerkhoven". A novela "O Ouro de Cajamalca" foi saudada por Thomas Mann como a mais bela narrativa em língua alemã do século XX. Escritor prolífico, seus livros foram queimados em praça pública pelo regime nacional-socialista alemão.

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Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Muito bom o texto parabéns
Tem uma historia muito boa que fala de um homem que entra em um quarto escuro e vê uma corda enrolada mas devido a falta de luz pensa ser esta uma cobra e por isso fica com medo...
Tudo que a mente percebe é Maya fenômeno sendo que por apego a tais fenômenos o homem comete todo tipo de atrocidade ...mas por meio da razão e meditação podemos praticar o desapego ao mundo fenomênico
Tem sempre algo bom p se ver aqui no blog