quinta-feira, 27 de junho de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo VI)

 

"Nos quanta, a unidade é a continuidade da quantidade, como indivisa. A unidade transcendental inclui a unidade quantitativa, que está a ela subordinada. A unidade quantitativa implica, necessariamente, a unidade transcendental, e não o inverso: a unidade transcendental não implica, necessariamente, a unidade quantitativa. A unidade transcendental pode haver sem aquela, e ela há, realmente, sem aquela."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, cap. VI, p. 33

No capítulo VI, Mário Ferreira estuda o tema dos entes que possuem quantidade ou quantum (quanta, no plural), e distingue que, nesses seres, a sua unidade transcendental de sua unidade quantitativa. Embora a unidade quantitativa implique sempre a unidade transcendental, não é verdade necessária que a unidade transcendental implique sempre a unidade quantitativa. A explicação para isso é simples: a coisa possui quantidade se a sua natureza comporta essencialmente aspectos quantitativos.

Um pedaço de ferro, pelo fato de ser ferro, necessariamente terá alguma quantidade. A própria unidade transcendental ferro não é ela mesma uma quantidade, pois corresponde à essência, à qualidade, desse metal. Contudo, essa unidade transcendental, para se realizar nas coisas concretas, implica necessariamente que haja quantidade. 

Nas magnitudes, que numeramos por meio dos sentidos, essa unidade quantitativa é uma unidade numérica. O ente é uno (em sua essência) e numericamente um, ou seja, é singular. Este pedaço de ferro é diferente daquele outro pedaço de ferro (não importando as suas respectivas dimensões), apesar de ambos serem igualmente ferro. Cada um deles é uma unidade numérica por ser indiviso quantitativamente.

Platão é numericamente distinto de Sócrates. Ambos são singulares e indivisos. As suas individualidades numéricas não negam a comunhão essencial de Platão e Sócrates no nível fundamental da humanidade ou essência humana. Ao contrário, faz parte da natureza da humanidade que os seres humanos se apresentem na realidade concreta dotados de corpo, o qual, por sua essência, implica quantidade extensiva (comprimento, largura, altura, profundidade).

"Só uma coisa individual é apta a existir, o ente real é um ente que é numericamente um, ou singular", afirma Mário Ferreira. O modo de existência próprio das coisas deste mundo exige a individuação. Tudo o que existe, é um ente. O fato de ser algo indiviso implica necessariamente a ausência da divisão em seu seio. Recorde-se, contudo, que a unidade não nega todo e qualquer tipo de multiplicidade. A multidão que é negada pela unidade é aquela que implica uma divisão dentro do ente que é uno

A unidade numérica tem que ser indivisa para que a junção de unidades possa gerar a multiplicidade. Platão e Sócrates têm que ser indivisos e independentes um do outro para que se possa falar de dois homens ou de uma dupla. Os hoplitas de Esparta têm de ser indivíduos independentes uns dos outros para que haja 300 deles na batalha das Termópilas. As coisas são múltiplas por causa da unidade, que é logicamente anterior ao número formado.

A tropa de soldados é um Todo (ou unidade) acidental, formado pela junção de múltiplas unidades reais e independentes entre si. O Todo (ou unidade) per se, aquilo que é essencialmente uno, não comporta internamente partes que sejam independentes umas das outras. Uma substância natural, no sentido filosófico do termo, é una, ainda que tenha sido gerada a partir de outros entes individuais e independentes.

Por exemplo, se tomamos a fórmula da água, H2O, vemos que as duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são entes individuais que possuem certas características próprias antes de sua união. Quando unidas, as moléculas transformam-se na substância que denominamos água. Esta possui características muito diferentes daquelas que as moléculas possuíam separadamente. O que aconteceu? No Todo substancial que é a água, as moléculas estão virtualizadas com relação ao que eram, mas estão atualizadas na forma do Todo.

As moléculas não desaparecem por completo, dado que podem ser trazidas de volta às suas existências individuais pela análise química. Uma vez reatualizadas, as suas propriedades retornam tais como eram anteriormente à transformação. A água, entretanto, não poderia existir como uma substância se as duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio, quando unidas, permanecessem exatamente como cada uma é separadamente. Se fosse esse o caso, teríamos tão somente uma junção, um agregado de entes independentes, e não um Todo verdadeiro. 

A virtualização das moléculas torna possível a geração de uma nova substância com propriedades diferentes daquelas que apresentavam as suas componentes. As moléculas não são nem destruídas no Todo, nem permanecem as mesmas que eram individualmente. Portanto, algo delas contribui efetivamente para a formação da homogeneidade substancial da água, enquanto outras de suas propriedades, por assim dizer, retraem-se, e só reaparecem se e quando as moléculas forem reatualizadas pela análise.

A unidade funda a multiplicidade, e não há múltiplo sem diferença. Ser algo implica necessariamente não ser qualquer outra das possíveis formas de ser. O gato, por ser gato, não pode ser cavalo, pedra, samambaia, etc. E este gato, enquanto indivíduo, não pode ser aquele gato. Então, para todo ente, ser algo significa afirmar ao mesmo tempo a sua identidade (o que ele é), e, consequentemente, a sua diferença com relação a todas as outras possibilidades que ele não é. 

A diferença é uma realidade inegável. Mário Ferreira prova a validade apodítica dessa tese mostrando que mesmo a negação mais extrema da diferença não consegue eliminar a sua realidade. Imagine-se que todas as coisas que experimentamos no mundo sejam ilusões, isto é, imagens criadas por nossa mente ou pela mente de um outro ser na qual somos nós mesmos somente mais algumas das imagens que ela cria. Ainda que todas as coisas fossem ilusórias, haveria diferenças entre as ilusões que a nossa mente (ou a de um outro ser) estaria criando.

Pode ser que a experiência visual que tenho do cavalo saindo do estábulo na minha fazenda seja puramente ilusória. Não existem realmente nem o cavalo, nem o estábulo e nem a minha fazenda. Tudo isso foi construído pela minha mente, são meras imagens que não se referem a nada que exista extra mentis. Digamos que o mesmo seja verdade para todas as minhas experiências passadas, atuais e futuras. Pior, suponhamos que nós somos meros pensamentos ou imagens na mente de um outro ser qualquer. 

O próprio fato de serem ilusões (no plural) indica que há diferenças entre elas. Certo, não seriam diferenças entre coisas, ao menos no sentido de seres externos à consciência e independentes uns dos outros. Seriam imagens diferentes na minha mente ou na mente de outro ser. Ao contrário de negar a diferença, as próprias ilusões exigem necessariamente a diferença para serem o que são. 

A negação hiperbólica da existência das coisas, a sua redução à condição de imagens mentais sem nenhum referente externo, não é capaz de refutar a tese da existência da diferença. Portanto, a validade apodítica da tese está demonstrada.* O fundamento da diferença tem de ser real, do contrário ela não seria nada. Se percebemos diferenças, e isso é inegável, então há diferenças na ordem do Ser, dado que o homem é real e pertence à ordem do Ser.

A diferença, seja ela percebida ou representada na mente, é uma relação, e, por conseguinte, exige dois termos, quaisquer que eles sejam, implicando um ao outro, unum ad aliud. Um termo faz referência, alusão, menção, a outro. É uma ferencia re, que "retorna", "traz de volta", "conduz de volta" àquilo que dis ferre, ao que difere. Ferre, em Latim, significa "trazer", "suportar", "sustentar", "sofrer", "carregar", e differre é "separar", tendo "dis", prefixo que indica "falta", "oposição".

logos da diferença é relacional. Algo que é diferente de outro em algum aspecto possui alguma propriedade da qual o outro está privado ou está privado de uma propriedade que o outro possui. Aquilo que faz a diferença deve ser, então, algo real no sentido de que, ainda que se trate de uma ausência, o que está ausente deve ser uma propriedade real encontrada em outro que a possui. Duas bolas de ferro, de tamanho e de peso iguais, diferenciam-se pelas porções de ferro com as quais cada uma foi feita. Este pedaço, nesta bola, idêntico que seja quanto ao metal ferro, não é idêntico àquele pedaço, naquela bola. O pedaço que está presente em uma não está presente na outra, e vice-versa.

Em seguida, Mário Ferreira antecipa algumas observações sobre as estruturas eidética e hilética que serão melhor trabalhadas no capítulo VII, e que será o próximo objeto de estudo nesta série postagens de apresentação e comentário, capítulo a capítulo, das teses contidas na obra "A sabedoria da Unidade".

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*Poderíamos adicionar outras demonstrações. Se alguém nega a diferença, só pode fazê-lo usando uma frase adequada para expressar essa ideia. Ora, uma frase adequada é diferente de uma frase inadequada. Ou ainda, as palavras usadas para expressar essa ideia (ou para pensá-la) tem significados diferentes. Ademais, a própria negação da diferença (verbalizada ou pensada) é diferente da afirmação da diferença. Se não houvesse diferença, não seria possível sequer pensar possibilidades, menos ainda pensar efetivamente algo diferente daquilo que se está pensando. Qualquer medição, gradação, cálculo e raciocínio exigem o reconhecimento da diferença. E assim por diante.

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