"É em ti, meu espírito, que eu meço o tempo. Não me perturbes, ou melhor, não te perturbes com o tumulto de tuas impressões. É em ti, repito, que meço os tempos. Meço, enquanto está presente, a impressão que as coisas gravam em ti no momento em que passam, e que permanece mesmo depois de passadas, e não as coisas que passaram para que a impressão se reproduzisse. É essa impressão que meço, quando meço os tempos."
SANTO AGOSTINHO, Confissões, XI, 27
Aristóteles escreve sobre o tempo no livro IV da Física e lá ele defende que a resposta mais fácil sobre o tempo, a de que tempo é movimento, está errada. Contudo, o tempo está ligado ao movimento, mas não se identifica com ele. Isso porque, entre outras coisas, o movimento pode ser mais rápido ou mais lento e o tempo, em tese, não.
Mas há outro problema. Como para Aristóteles tudo o que é, tudo o que tem ser, é limitado, como conceber o tempo se ele, em tese, é infinito? O infinito quantitativo em ato não pode existir, pois seria contraditório algo totalmente atualizado e, ainda assim, infinito, ou seja, algo a que sempre algo mais pode ser acrescido.
Sobre o infinito Aristóteles afirma:
"O infinito mostra-se, então, algo totalmente diferente do que usualmente se diz dele. Ele não é aquilo fora do qual não há nada, mas aquilo que sempre tem algo fora de si." (Física, III, 6, 207a)
Ou seja, o infinito não poderia ser um todo, já que, sendo infinito, tem partes sempre sendo acrescidas ao que ele já é. Não é difícil perceber que Aristóteles está aqui pensando o infinito em termos de sucessão quantitativa, onde há sempre atualização de potenciais. O modelo é a cadeia sucessiva dos números que, a qualquer número dado, pode sempre se adicionar um número posterior a ele.
Todavia, há um erro a ser evitado no entendimento dessa afirmação aristotélica. Ainda que haja sempre mais uma unidade a ser somada à cadeia sucessiva, isso não significa que a cadeia seja formada por unidades indivisíveis atuais. A razão é simples. Unidades indivisíveis são, necessariamente, inextensas e, mesmo quando postas uma ao lado da outra, não geram uma linha.
Pontos inextensos não têm dimensão e, portanto, não têm partes e, por conseguinte, como poderiam juntar-se a outros pontos a não ser nas suas partes que se tocam mutuamente? Assim, entre dois pontos inextensos, logicamente haveria lugar para infinitos pontos inextensos que jamais se tocariam.
Daí que, ao contrário do que afirmavam os paradoxos de Zenão, as extensões não são feitas de pontos inextensos, já que, se assim fosse, haveriam pontos infinitos entre quaisquer dois pontos escolhidos. Toda extensão é "feita" de extensões e pode ser dividida infinitamente em extensões e só pode ser acrescida à extensões.
Mas, o tempo não é infinito? Então ele não é uma extensão, posto que não tem limites para ser considerado um extenso. Aristóteles resolve isso mostrando que o tempo é uma sucessão e, nesse sentido, uma extensão, cujas partes estão em potência, mas atualizam-se. Ou seja, o tempo é uma extensão potencialmente infinita. Ao contrário de uma extensão qualquer, cujos pontos potenciais estão todos atualizados simultaneamente, o tempo tem extensão atual limitada, mas potencial ilimitada.
Assim, o tempo tem ser, pois tem limites, embora sempre ultrapassáveis. De fato, não há como imaginar um fim para o tempo, nem no recuo no passado e nem na projeção no futuro. Desse modo, o tempo é limitado, porém potencialmente infinito.
Resolvido o ser do tempo por sua limitação atual e infinitude potencial sucessiva, Aristóteles mostra que se o tempo é uma extensão, pode ser medido e se pode ser medido é numerável. Que é medir? Medir é impor sempre de novo um padrão qualquer a uma extensão dada. Como se mede o tempo? O tempo é mensurável quando se determinam dois "agoras". Toda vez que alguém diz "agora" e, de novo, repete "agora", ela marca um tempo. Como tempo é extensão, necessariamente tempo é período entre dois limites.
Em outros termos, tempo é algo que se dá entre dois agoras, dois limites. E, como toda extensão, seus limites não são, eles mesmos extensos. Por exemplo, penso numa linha iniciando em um ponto e terminando em outro, então necessariamente seus limites, os pontos, são inextensos.
Da mesma forma, os "agora" que compõem o tempo são, eles mesmos inextensos. São instantes sem duração, já que, se durassem, seriam período de tempo. Para que o tempo apareça, se constitua como ser, é necessário que ele seja um período, uma extensão, e seus limites não podem ser eles mesmos extensões.
Ora, o tempo acaba se constituindo por aquilo que ele não é, já que os limites, os "agora" não são períodos, não são tempo. Da mesma forma, uma linha só se constitui como extensão porque é limitada por dois pontos que, necessariamente, não são eles mesmos extensos.
Isso não entra em contradição com o que é dito acima sobre as extensões não serem feitas de inextensos? Não, diria Aristóteles, pois uma coisa é o período ou a extensão que, por seu caráter limitado, implica limites inextensos e outra bem diferente é dizer que os extensos são feitos de inextensos atuais, ou seja, que uma linha é feita de pontos inextensos.
Em qualquer extensão, posso apontar para qualquer lugar dentro de seus limites e dividí-la naquele ponto. "Ponto" aí será o novo limite que constituirá uma nova extensão. Mas, com isso, não digo que a extensão é feita de pontos atuais, ou seja, pontos existentes antes de qualquer divisão, como partes ou peças que existiam antes de serem juntas em um todo.
Para Aristóteles, dizer que uma extensão é feita de pontos inextensos atuais é hipostasiar, coisificar, dar substância e independência a algo que não é mais do que um limite possível ou atual de algo realmente existente.
É claro que a geometria trabalha com pontos, linhas e superfícies, e, em certo sentido, todas essas entidades só são entidades justamente porque a mente humana as abstrai das coisas concretas, ou seja, as cria na mente como entes independentes, enquanto no real, elas não são. Tornar pontos, linhas e superfícies entes reais, separados e independentes seria cometer um erro categorial grosseiro, atribuindo realidade àquilo que só pode subsistir em entes reais, como cadeiras, homens, etc.
Voltando à questão do tempo, se ele está intimamente ligado ao movimento, à mudança, e se o movimento é mensurável, numerável, e se o tempo só surge na limitação entre dois "agora", o tempo será número de mudança com respeito a um anterior e a um posterior.
Segundo Sir David Ross, o tempo para Aristóteles é número no sentido de ser numerável, mensurável. Seria o aspecto mensurável do movimento. O tempo seria então a quantidade advinda pela imposição de um padrão a um movimento qualquer entre dois pontos-limite. A pergunta é, então, se há movimento quando não há quem faça essa medição. Aristóteles diz que sim, já que sabemos que há movimento mesmo quando não há quem o perceba.
Plotino critica essa definição de Aristóteles por se ater somente ao aspecto quantitativo-mensurável do tempo. Antes de ser número de mudança entre dois "agora", o tempo seria mais propriamente algo mensurado pelo movimento. Isso porque só medimos o tempo a partir de um outro movimento.
Por exemplo, medimos nossa vida pelo movimento da Terra em torno do Sol. Temos mais ou menos tempo de vida de acordo com quantas voltas da Terra em torno do Sol testemunhamos. Ou seja, nosso tempo é resultado da mensuração a partir de um outro movimento tomado como padrão. Por outro lado, é bom lembrar, o movimento padrão é ele mesmo tempo, pois pode ser medido por outro movimento tomado como padrão.
No livro XI de Confissões, Agostinho, neoplatônico cristão como é, toma a questão onde Plotino a deixa, e aprofunda-a numa direção nova, repondo a questão sobre o ser do tempo: se o tempo é uma sucessão na qual o passado não é mais e o futuro ainda não é, o que é o presente?
É claro que posso falar do presente de várias formas. Posso dizer: "os jogos estão acontecendo" e isso será presente por toda a extensão do evento esportivo. Mas, quando queremos ser mais precisos e dizer o que é o presente, ele vai se reduzindo cada vez mais, de dias para horas, de horas para minutos, de minutos para segundos, de segundos para microsegundos até se tornar um instante, nunc stans, sem duração. O "agora" de Aristóteles.
Mas, se é assim, que ser tem o tempo? Ontologicamente, o passado já não é, o futuro ainda não é, mas o presente não é algo que dure, algo que tenha limites precisos, ao contrário, ele é o contrário do período, da extensão. Ele é o inextenso par excellence!Sendo assim, há tempo? É claro que há, pois ninguém duvida que se pode medí-lo. Mas, c'os diabos!, que há para medir se o passado não é, o futuro não é ainda e o presente é inextenso?
Eis que a solução, a mesma nominalmente que a de Plotino, se apresenta a Agostinho. O passado é tornado presente na memória e o futuro na expectativa. Ou seja, é na alma que o tempo torna-se mensurável, já que a alma, por assim dizer, distende-se no passado pela memória, vive o instante inextenso do presente e espera o futuro. É a atenção distendida da alma na extensão que vai da memória à expectativa que torna o tempo algo mensurável. O tempo é uma distensão da alma.
Resta saber se essa alma é a alma individual ou uma alma do mundo, como em Plotino. Disso depende a objetividade do tempo. Já Aristóteles havia se colocado a questão da objetividade do tempo, pois se o encaramos primordialmente sob seu aspecto mensurável, fica difícil escapar da conclusão de que, ausente aquele que mede, o tempo existiria?
Aristóteles decididamente opta pela realidade do tempo independente daquele que o mede, já que há movimento independente de que o testemunhe e, então, havendo movimento, há tempo. Agostinho fala certamente da alma individual, mas não pretende que o tempo seja subjetivo. Há quem defenda que esteja subjacente aí uma aceitação tácita de uma alma do mundo, como em Plotino. Só ela daria objetividade ao tempo, na medida em que ela distende-se da "memória" à "expectativa". O tempo seria, assim, o produto da distensão da Alma do mundo e, como todas as coisas, dela dependeria para existir.