segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Eneias, Dido, tragédia e o chamado do herói


"É o que vos peço; com o sangue vos lanço este apelo supremo. 
Tírios! Vosso ódio infinito em seu filho e nos seus descendentes
extravasai! É o que esperam de vós as minhas cinzas ardentes. 
Nenhuma aliança jamais aproxime os dois povos imigos".

DIDO, Eneida, Livro II, 5 (trad. Carlos Alberto Nunes)

No livro IV do épico Eneida, o poeta romano Virgílio narra como a paixão por Eneias domina a rainha cartaginesa Dido, deixando-a desatinada quando posteriormente o herói troiano parte para a Itália. O belíssimo e trágico episódio revela e justifica mitologicamente a inimizade ancestral que causará as futuras três guerras entre Roma e Cartago. 

Após o longo relato de Eneias acerca da queda de Troia e de sua fuga, apresentado nos Livros II e III, Virgílio descreve os crescentes efeitos funestos da paixão sobre a rainha. Ana, sua irmã, ouve as confidências da insone Dido que, ferida pela chaga do amor, não consegue afastar de sua mente as palavras, o valor e a linhagem do herói. Tão forte e corajoso guerreiro, que parece ser de origem divina, abalara sua fixa resolução de não mais casar com ninguém desde que fora assassinado seu legítimo esposo, Siqueu.

Dido afirma à irmã que prefere ser tragada para os abismos ou ser atingida por um raio de Jupiter do que violar o pudor e dar a outro aquilo que na sua mocidade fora dado a Siqueu nas sagradas núpcias. A declaração, encarada em retrospecto, prenuncia a tragédia de sua morte. Ana, por seu turno, tem o condão de enfraquecer o intento da soberana com suas palavras sobre a triste solidão da perpétua viuvez infértil e a indiferença dos Di Manes (os mortos) aos votos dos vivos.

Tantos dignos pretendentes foram rejeitados anteriormente pela rainha em sua obstinação! Ademais, Ana acrescenta, se Dido considerasse a fragilidade de seu reino, ameaçado pela animosidade dos povos guerreiros que o cercam, veria claramente a vantagem bélica da união com Eneias. O discurso da irmã, exemplo do mau conselho que encontra o terreno propício para gerar seus frutos, inflama o amor que arde no coração de Dido, introduz esperança na sua mente vacilante e dissolve o seu pudor.

Ana sugere que a soberana propicie os deuses com sacrifícios e que se esmere em atenção e hospitalidade para com Eneias, criando pretextos para tê-lo por perto tanto quanto for possível. Ela percorre os templos, realiza sacrifícios em honra de Apolo, de Baco, de Ceres e, em particular, de Juno, a diva esposa/irmã de Jupiter e protetora dos laços matrimoniais. Ansiosa, consulta os augúrios nas entranhas dos animais imolados.

O sacrificium (sacrifício) era o ritus (ritoṚta, no sânscrito, "ordem") central da religião romana antiga. Consistia na ação (facere) de tornar algo sagrado (sacer), caráter daquilo que pertencia aos deuses. Havia ritos sacrificiais cruentos e incruentos, públicos e privados. O tipo de animal a ser sacrificado variava de acordo com o deus a ser homenageado, seu lugar no panteão (animais brancos para os deuses superiores, negros para os Di Inferi) e seu sexo (em geral, machos para os deuses e fêmeas para as deusas). 

O ritus romanus (havia também um ritus graecus) iniciava com a praefatio, na qual o celebrante derramava incenso e vinho num braseiro aceso. Em seguida acontecia a immolatio, em que o dorso da vítima (probare) era salpicado com farinha salgada e sobre sua testa vinho era derramado. "A formosíssima Dido tomando na destra uma copa, verte-a de pronto entre os cornos de branca novilha sem manchas". O animal, cuja propriedade fora passada dos mortais aos deuses, era finalmente abatido com um golpe ou tinha sua garganta cortada por uma faca. 

O destino do sacer é ser morto em oferecimento aos divos. A vítima deveria dar seu consentimento ao sacrifício abaixando a fronte, o que era obtido no ritus romanus pelo uso de um arreio preso ao animal e no ritus graecus pela aspersão de água sobre a sua cabeça. Qualquer sinal de medo ou de pânico da vítima era considerado um mau presságio. O animal morto tinha seus órgãos internos (coração, fígado, pulmões, peritônio e vesícula) examinados pelo haruspex, o vate que lia os augúrios nas entranhas (exta) das vítimas, a fim de saber se eram normais, o que indicava que o sacrifício havia sido aceito pelos deuses. Caso não fossem normais, o sacrifício deveria ser repetido com outras vítimas até que a aceitação divina fosse obtida.

"As reses abertas e as palpitantes entranhas, ansiosa, de espaço examina". Dido busca augúrios nas entranhas dos animais sacrificados. Virgílio, porém, assevera que pouco valem o saber dos vates, os templos e os votos para a mente turbada pela paixão. Inflamada, vaga sem rumo pela cidade, tal uma cerva ferida por uma flecha que corre pelas florestas carregando por toda parte a seta encravada no corpo. Apresenta a cidade a Eneias, diante do amado interrompe subitamente o discurso, geme por sua ausência e não consegue tirar sua imagem da mente.

Juno propõe a Vênus, mãe de Eneias, uma aliança na qual Dido e o herói reinariam sobre Cartago e sobre os troianos exilados. Para tanto, a deusa criaria uma tempestade durante uma caçada, obrigando Dido e Eneias a buscarem abrigo numa caverna onde se uniriam pelos laços sagrados do himeneu. Vênus percebe a astúcia de Juno, cujo objetivo era impedir a todo custo que Eneias aportasse na Itália, mas aceita a proposta. O estratagema se realiza como planejado pelas divas, e Dido entrega-se a Eneias numa caverna. Esse é o dia fatídico e princípio de todas as desventuras da rainha.

Fama, a deusa do renome e do rumor, espalha a notícia da união por toda Cartago e para além de seus territórios. O rei Jarbas, um dos pretendentes rejeitados pela soberana, aos ouvidos de quem chegaram os informes de Fama, suplica a intervenção de Jupiter. O pai dos divos envia Mercúrio (o Hermes grego) a Eneias para lembrá-lo de seu destino como fundador de Roma. 

Mercúrio se dirige a Eneias censurando o seu pendor mulherengo que o faz esquecer das promessas que lhe foram feitas. Se a sua própria glória e a de seus ancestrais não o anima a abandonar Cartago, que pense então na de seu descendente, Ascânio, destinado a ser rei na Itália. O próprio pai dos deuses, Jupiter, o insta a deixar a África imediatamente. Entregue a mensagem, Mercúrio desfaz-se da forma humana assumida e desaparece no ar. 

Estarrecido, com os pelos do corpo arrepiados e incapaz de pronunciar qualquer palavra, Eneias é presa daquilo que o filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto denominou como "sentimento do numinoso" em sua obra magna Das Heilige (O Sagrado). O numen, na religião romana tradicional, significava o aceno, a força ou a vontade dos deuses. Otto utiliza o termo de um modo mais abrangente, entendendo-o como o sentimento característico do sagrado, o Mysterium Tremendum, a um só tempo fascinante e aterrorizante, qualitativamente irredutível a qualquer outro sentimento, e que permanece no fundo das religiões mesmo quando elas são racionalizadas por meio das doutrinas, dos conceitos e da moral.

"At vero Aeneas aspectu obmutuit amens,
arrectaeque horrore comae et vox faucibus haesit.
ardet abire fuga dulcisque relinquere terras,
attonitus tanto monitu imperioque deorum."

O numen paralisa Eneias, deixa-o arrepiado e mudo. É o aspecto do horror divino, do insólito, do estranho, daquilo que Otto chama de Ganz Andere, o "totalmente outro". A visão de Mercúrio desfazendo-se no ar gera espanto, estranheza, estupor. Por outro lado, o numen é também fascinans, fascinante, atraente e comanda obediência. Admirado, atônito (attonitus), Eneias é tomado pelo ímpeto de fugir daquelas doces paragens graças ao aviso (monitus) e ao comando (imperium) dos deuses.

Virgílio realiza um paralelo com Odisseu (Ulisses) retido na ilha da ninfa Calipso, episódio da Odisseia de Homero. Simbolicamente, a tentação do herói é deleitar-se realizando os seus próprios desejos, esquecendo dos seus deveres e dos seus objetivos primários. A peregrinatio, a viagem do herói, repleta de perigos e de trabalhos, é símbolo do retorno à casa, da volta ao centro do mundo. O retorno de Odisseu à Ítaca representa a restauração do lugar próprio das coisas na ordem da realidade. O rei retoma o que é seu por direito e elimina a desordem e a dissipação das forças dissolventes simbolizadas pelos pretendentes de Penélope.

Eneias é destinado a realizar o tradicional ato sagrado de fundação de uma cidade. Roma é o centro do mundo para o qual ele deve se dirigir. As possibilidades de outros caminhos, simbolizadas pela mulher (Calipso e Dido), podem reter o herói, isolá-lo (na ilha ou em Cartago), e impedi-lo de realizar seu lugar no esquema das coisas. Ele deve escolher entre as alternativas oferecidas por Tétis a Aquiles: a vida segura e tranquila seguida do esquecimento ou a vida cheia de trabalhos e de perigos que é coroada pela glória e reconhecida pela eternidade.

A intervenção divina, simbolizada por Mercúrio, o mesmo Hermes que comunica a Calipso a decisão régia de Zeus (Jupiter) para que deixasse Odisseu partir de sua ilha, recorda o herói de seu papel na ordem mais ampla da realidade. A piedade (pietas) de Eneias o obriga a obedecer aos numes e a garantir a grandeza de seus descendentes (Ascânio e os romanos). A partida de Eneias é determinada não pelo desejo pessoal, mas pela obediência aos decretos divinos e ao Fado que a todos submete.

A Fama alada revela à Dido os preparativos de partida das naus troianas. Como se tomada pela mania (Μανία) que acomete as bacantes nos cultos dionisíacos, a rainha percorre desatinada as cidade até alcançar Eneias, e ao encontrá-lo, submete-o às mais ríspidas reprimendas. Ao que o herói só pode responder que parte por ordem divina recebida, não por vontade ou por ingratidão pelos inúmeros préstimos recebidos. No entanto, nunca esquecerá a soberana onde estiver.

Dido não crê na justificativa de Eneias, o amaldiçoa desejando-lhe a morte, e diz que o perseguirá tal qual uma sombra, ouvindo seus clamores finais até no mundo inferior dos Di Manes (os mortos). O troiano aplacaria a dor da mulher amada e atenderia às suas súplicas para que permanecesse em Cartago não fosse a ordem expressa dos divos. Ao perceber que o pio Eneias tem a mente inflexível, Dido sente que o Fado estava contra ela e deseja a morrer.

Pior, os augúrios são funestos. No momento em que vertia incenso no fogo durante um sacrifício, Dido vê o leite enegrecer-se e o vinho tornar-se sangue. Virgílio exclama que é horrendo descrever a cena (horrendum dictu). Os sinais são de inversão do sagrado. A degradação dos elementos sacros é obsceno (obscenum), corresponde à polução (pollutio), contaminação ritual que interdita a participação nos ritos. Dido ouve a voz lamentosa de seu finado esposo no templo a ele dedicado, uma coruja geme nas torres altas, enquanto a rainha vaga sozinha na noite assolada pela lembrança de Eneias.

A paixão pelo herói, o arrependimento de haver quebrado os votos com o marido defunto (cuja voz parece cobrá-la do fundo do Orco), a decepção com os deuses e o ódio pela humilhação da rejeição misturam-se na alma da cartaginesa. Virgílio a compara com Orestes, o matricida atormentado e perseguido pelas Érínias (Fúrias, para os romanos), terríveis deusas ancestrais que vingavam os crimes de sangue enlouquecendo o culpado. Tudo conduz Dido ao funus (funéreo). 

No palácio, aparentando calma, Dido chama a irmã Ana e lhe confidencia que conhece uma sacerdotisa das Hespérides que havia lhe ensinado um hino (carmen) para curar o amor. As Hespérides, filhas de Nix (a noite), eram uma tríade de ninfas responsáveis por guardar um jardim de de maças de ouro localizado no monte Atlas, às margens do Okeanos (Oceano), o rio que circunda o mundo. Representam o Poente, o ocaso do Sol, e, nesse sentido, podem simbolizar aquilo que encontra o seu fim (nos dois sentidos do termo). 

O jardim onde vivem as Hespérides é protegido por um dragão, tema simbólico tradicional do protetor do tesouro. Cumpre recordar que o significado de Paraíso no persa é jardim, e que é comum que a localização do Paraíso esteja nos limites do mundo. Adão e Eva são expulsos do Éden e entram no mundo do trabalho, da dor e do sofrimento. Seu retorno é impedido pelo guardião, o querubim com a espada flamejante. 

Considerado no seu aspecto positivo, o fim simboliza o coroamento, a realização, a completude de algo que estava in fieri, em processo, e, portanto, ainda incompleto. tesouro é a recompensa que espera o herói ao fim da peregrinatio. No seu aspecto negativo, o fim é decaimento, privação, destruição, morte. Exterior ao mundus (ordem, ornamento) está a dissolução das formas. A ambiguidade ronda o alegado feitiço da sacerdotisa das Hespérides. O rito será de cura, de restauração da saúde da rainha, ou será de destruição, resultando em sua morte?

Dido prepara o rito da evocatio, rito no qual alguém ou algo era oferecido ao Dis Pater (Plutão), o senhor do Orco (Hades), o mundo subterrâneo dos Di Manes, as sombras daqueles que morreram. No pátio do palácio, ao ar livre, a pira é erguida com achas de pinho e azinheira, enfeitada com guirlandas e ramos fúnebres, e no seu cume são postados para serem queimados o leito, as roupas, a espada e a efígie de Eneias. 

A velha sacerdotisa, desgrenhada, evoca com seu hino três vezes as cem divindades do Érebo (escuridão ou Hades). Coletivamente denominados Di Inferi, são os deuses que habitam o mundo subterrâneo, como PlutãoProsérpinaScotusMorsHécateMortaNenia Dea, e também os Di Manes, entre os quais se encontram os Lemures ou Larvae, os mortos malignos ou sem descanso. A Hécate Trivia (deusa grega da feitiçaria) e Diana, ambas de três faces, e o Caos primordial são igualmente evocados. 

O caráter privado da cerimônia, em contraste com os ritos públicos sancionados na religião romana, realça a impressão funesta de feitiçaria. Dido lamenta longamente o seu infortúnio durante toda a noite, e pela manhã avista a esquadra de Eneias partindo. Evoca Juno, a Hécate e as Fúrias para que a desgraça e a morte alcancem o troiano. Amaldiçoa a raça romana que seria fundada por Eneias com a eterna inimizade dos cartagineses. Seus descendentes, no momento oportuno, vingariam a rainha ofendida.

"Hoje, amanhã, no momento mais certo em que o acaso os ajunte,
e força houver, briguem praias com praias e as ondas entre elas,
armas de guerra por tudo, até os últimos netos com forças!"

Dido, sobre a pira, lança-se sobre a espada de Eneias. O horror se espalha entre as mulheres. Ana tenta socorrer a irmã que se esvai em sangue. Sente-se ludibriada, pois era Dido a verdadeira vítima daquele sacrifício cruento. Três vezes a rainha tenta erguer-se sobre os cotovelos e cai estendida sobre o leito. Juno, compadecida, envia Íris para pôr termo àquele sofrimento. A mensageira divina inclina-se sobre a cabeça de Dido, corta seu cabelo (símbolo da oferenda), liberta-a do corpo para conduzi-la a Plutão."In ventos vita recessit". A vida dilui-se no ar. 

O episódio envolvendo Dido e Eneias é uma tragédia dentro do épico que permite a Virgílio justificar retrospectivamente a inimizade entre Roma e Cartago que resultará na completa destruição da última ao fim das guerras púnicas. A pietas do herói o isenta de culpa. A teologia do poeta romano reafirma aqui a noção de que os acontecimentos neste mundo seguem o numen dos deuses. 
...
...

Para ouvir: trecho da ária Dido's Lament, da ópera Dido and Aeneas, composta por Henry Purcell (1659/1695), interpretada pela magnífica soprano americana Jessye Norman: