segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo IX - Dos conjuntos)
domingo, 20 de outubro de 2024
Eneias, piedade e religião romana na "Eneida" (Livro II)
domingo, 13 de outubro de 2024
Aristóteles, Física e a natureza do lugar (Livro IV) - Parte 1
"A questão acerca do que é o lugar apresenta muitas dificuldades. O exame de todos os fatos relevantes parece conduzir a conclusões divergentes. Ademais, nada herdamos dos pensadores que nos antecederam, seja na forma de recensão das dificuldades, seja na forma de solução."
ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 1 (itálico meu)
O problema sobre o qual Aristóteles se debruça no início do Livro IV da Física é a existência ou não do lugar (τòπος). A sua importância provém do fato de que, primeiro, pensa-se usualmente que todas as coisas que existem estão em algum lugar, e, segundo, de que a mudança, em seu sentido mais geral e primário, a locomoção, significa exatamente "mudança de lugar".
Em que pese a ausência de opiniões herdadas dos pensadores anteriores sobre o tema, a existência do lugar é considerada evidente por diversos motivos. A água que sai de um vaso passa de um lugar a outro. Os corpos se dirigem naturalmente a lugares que lhes são próprios, alguns para cima (o fogo), outros para baixo (a terra), etc. Não são meramente posições relativas que variam de acordo com o ponto que estão com relação a nós. O mesmo corpo pode estar à nossa direita e depois à nossa esquerda dependendo do ponto ao qual nos dirigimos.
Os objetos da matemática (geometria) não apresentam direções próprias. Eles podem estar à frente ou atrás, à esquerda ou à direita, acima ou abaixo somente com relação a nós. Sua posição é sempre relativa. Essas observações de Aristóteles são interessantes, entre outros motivos, porque colocam em relevo a diferença entre posições que são meramente relativas ao observador e aquelas que são naturais, portanto independentes de qualquer ser capaz de mudar sua própria posição com relação a elas.
Ainda que não houvesse nenhum observador, o fogo sempre subiria. A sua posição no alto não depende de um outro que possa mudar a sua própria posição, alterando assim a relação entre os dois. De si mesmo, o fogo naturalmente sobe, e nisso não há nenhuma relatividade. O corpo formado de terra desce independentemente de haver um observador com relação ao qual ele pode estar acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás.
Os entes geométricos não estão acima e nem abaixo, não estão à direita e nem à esquerda, não estão à frente ou atrás. É o geômetra que os pensa em tal ou qual posição com relação a ele. A ausência de movimento natural em alguma direção impede que os entes matemáticos assumam posições reais. Suas posições são necessariamente relativas por conta de seu caráter essencialmente estático. Objetos geométricos não são corpos reais, dotados de tendências intrínsecas que são atualizadas sempre que não se apresentam impedimentos.
Um corpo feito de terra vai se dirigir ao solo tão logo seja solto no ar e conquanto não haja nenhum anteparo que o interrompa no caminho. A chama do fogo vai se erguer na direção do céu se não houver qualquer coisa que a impeça de seguir a sua tendência natural. Um objeto geométrico não desce e nem sobe por alguma disposição intrínseca. Ele pode ser posto cá ou lá pelo pensamento do geômetra, e as suas posições existem exclusivamente com relação a essa atribuição extrínseca.
Podemos supor que se o mundo físico fosse reduzido a uma representação puramente geométrica, as tendências naturais dos corpos deixariam de ser relevantes. A consequência seria a de que os corpos, identificados a objetos geométricos, teriam as suas posições estabelecidas não mais a partir da objetividade de suas tendências intrínsecas. Acima, abaixo, à direita, à esquerda, à frente e atrás seriam somente posições atribuídas extrinsecamente, sempre relativas a nós. Toda mudança de posição e todo repouso seriam então relativos ao ponto de referência escolhido pelo geômetra.
De tudo o que foi dito, o lugar é aparentemente algo existente e distinto das coisas que nele estão. Entretanto, a questão é saber qual é a sua natureza. Seria o lugar um corpo? Se fosse, possuiria dimensões como comprimento, largura e altura. O que se segue disso é que haveria dois corpos no mesmo lugar: o corpo que ocupa o lugar e o lugar que é um corpo. O mesmo se aplica se recordamos que o corpo possui limites como a superfície. A superfície do corpo que está no lugar coincidiria com a superfície do corpo que é o lugar.
O lugar tampouco pode ser um elemento que compõe os corpos ou ser ele mesmo composto de elementos, sejam estes corporais ou incorporais. Se fosse elemento que compõe os corpos, teria de ser corporal, uma vez que os corpos sensíveis são compostos por elementos corporais. Se fosse composto de elementos corporais, seria corpo. Mas, apesar de possuir tamanho, o lugar não é um corpo. Não poderia também ser composto de elementos incorporais porque aquilo que possui tamanho não é constituído por por algo adimensional.
O lugar não se encaixa entre as quatro causas. Não é causa material, formal, eficiente ou final de nada. Na suposição de que seja algo existente em ato, e se tudo o que existe ocupa um lugar, então o lugar ocupa um lugar, e assim ad infinitum. O que dizer das coisas que crescem? O corpo e o lugar serão indistintos? O conjunto de questões levantadas até o momento vai definir a discussão que virá a seguir.
Podemos distinguir o lugar mais imediato no qual estamos daquele mais remoto no qual também nos encontramos. Alguém que está na Terra também está no Céu na medida em que o Céu contém a Terra, exemplifica Aristóteles. O continente contém o contido, e, por sua vez, o continente é contido por um outro continente maior. A água está contida no balde, o balde contido na Terra, a Terra no Céu. Onde está localizada a água mais imediatamente? No balde, embora este se encontre na Terra, e esta no Céu.
Se o lugar for aquilo que primariamente contém cada corpo, então trata-se de um limite que corresponde à forma (no sentido de formato) e à magnitude do corpo que ele contém. Ou será que o lugar é idêntico à forma e à magnitude do corpo? Não, estas duas pertencem inseparavelmente ao corpo, enquanto o lugar é separável do corpo. A experiência mostra que os corpos passam de um lugar a outro mantendo invariáveis as suas formas e as suas magnitudes. E o mesmo lugar é ocupado seguidamente por corpos diferentes (a água sai do balde e o ar entra).
Usualmente, o lugar é pensado como algo semelhante a um vaso (que é uma espécie de "lugar transportável"), um receptáculo. O vaso é materialmente extenso e diferente daquilo que ele contém. Portanto, o lugar, se for um receptáculo ou um continente, não se identifica com a forma ou com a magnitude do corpo que está contido nele. Além disso, a identidade é impossível naquilo cuja noção implica a alteridade: estar em algum local significa ser algo que tem outro algo fora dele.
Não poderia haver o movimento natural dos corpos que a experiência testemunha se lugar se identificasse com a forma e com a magnitude do corpo. Aquilo que está localizado pode mudar de local, e se o fizer, vai se mover em alguma direção. É impossível que o lugar seja idêntico à forma e à magnitude material do corpo se ambas não se referem à mudança ou às distinções entre as direções (alto, baixo, etc.). A forma de um corpo ou a sua magnitude não implicam a noção de possível deslocamento de um ponto a outro em determinada direção. Já o lugar implica a noção dessa possibilidade.
Fosse o lugar idêntico à forma e à magnitude do corpo, o lugar estaria no corpo. E se o corpo se deslocasse, o lugar também se deslocaria com ele. O corpo que se desloca de um ponto a outro sai de um lugar e vai a outro lugar. A consequência lógica seria a de que o lugar que está no corpo que se desloca se encontraria ele mesmo deslocando-se entre lugares. Isto é, o lugar estaria em algum lugar.
Por fim, ocorrendo a evaporação de uma porção de água que ocupava algum lugar, este seria destruído? O corpo (a água) não existe mais, então o lugar (se idêntico ao corpo) deveria igualmente desaparecer. Porém, não é isso que testemunhamos na experiência. A água evapora, e o local onde ela estava permanece o mesmo.
Os argumentos apresentados acima refutam a tese da identidade do lugar com o objeto nele contido. Mas em quais sentidos podemos afirmar que um objeto está em outro? Algo está em outro como a parte está no todo (dedo na mão) e o todo está na parte (esta existe por causa daquele), a espécie está no gênero ("homem" está em "animal") e o gênero está na espécie (presente como fundamento), a forma está na matéria (na qualidade de ordenação), as coisas estão centradas no seu princípio movente (os assuntos do reino centrados no rei), a razão da existência de algo está no seu fim, e, no sentido estrito, algo está num receptáculo.
Aristóteles assinala que existe uma ambiguidade quando se diz que uma coisa pode estar em outra: algo pode estar em outro enquanto ele mesmo ou enquanto outro. Tomemos o caso de um Todo no qual as partes não são separáveis. Um homem pode ser dito branco por causa de seu rosto branco, embora a brancura de seu rosto seja apenas uma parte do ser que ele é. Em sua inteireza, o homem não é separável da sua cor, e, por conseguinte, esta está nele como algo está em si mesmo.
Considere-se o caso que envolve o jarro e o vinho. Tomados em si mesmos, ambos são entidades independentes e separáveis, e não formam um Todo. A situação é diferente quando consideramos o jarro de vinho. Analogamente ao homem branco, a parte está no Todo não enquanto outro, mas sim enquanto ela mesma. O jarro de vinho forma uma unidade na qual o vinho não está no jarro como um corpo está em outro. Antes, temos aqui uma parte que qualifica o Todo.
A brancura qualifica o homem. A cor branca está no homem enquanto outro corpo? Não. Em certo sentido, ela está nela mesma e não em outro. É verdade que a essência da parte (brancura) difere da essência do Todo (homem), porém, no homem branco, existe uma unidade indissolúvel na qual a parte é um qualificador ou uma propriedade do Todo, não um corpo contido num corpo continente. Dessa forma, é possível afirmar que o branco está nele mesmo, e não em outro.
O problema levantado por Zenão - de que se o lugar é algo, ele deve estar em algum lugar - pode agora ser resolvido facilmente a partir das distinções feitas acima. Nada impede que um esteja em outro da forma na qual a saúde está no quente como uma determinação positiva, e o quente está no corpo como um estado.
A solução do problema da natureza do lugar será apresentada por Aristóteles nas seções seguintes.
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Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 2 - final)
domingo, 25 de agosto de 2024
Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 1)
PLATÃO, Timeu, 92c
O Corpus Hermeticum é uma coleção de dezoito discursos em grego que faz parte de uma pletora mais ampla de textos afins a qual ficou conhecida posteriormente como Hermetica. Os libelli que formam o Corpus remontam aos primeiros séculos da era cristã, e foram atribuídos a Hermes Trismegistos (Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, o "Hermes Triplamente Grande"), figura mítica que combina em si aspectos do deus grego Hermes, o mensageiro divino e psicopompo e de Thoth, divindade egípcia da sabedoria, da escrita, da magia e do julgamento.
A influência do hermetismo, enquanto tradição filosófico-religiosa, se fez sentir na alquimia, na magia, no neoplatonismo, e mesmo no cristianismo. Preservados pelos mil anos do Império Romano do Oriente, enquanto a Europa ocidental vivia a chamada Idade Média, os discursos herméticos foram traduzidos ao latim somente em 1463 pelo padre católico, filósofo neoplatônico e mago Marsilio Ficino, a pedido de Cosimo de Medici, antes mesmo que completasse a tradução dos diálogos platônicos.
A grande historiadora Frances Yates, em seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, mostra que o projeto de restauração religiosa de Giordano Bruno estava centrado em concepções greco-egípcias de uma prisca theologia contida nos escritos herméticos, os quais considerava serem mais antigos que a lei mosaica. Porém, em 1614, o filólogo e classicista Isaac Casaubon determinou que a data de composição do Corpus Hermeticum estaria entre os séculos III e IV da era cristã. Não obstante, o hermetismo permaneceu sendo uma das principais fontes (se não a principal) do esoterismo ocidental.
No artigo La Tradition Hermétique, publicado em 1931 na revista Le Voile d'Isis, René Guénon esclarece que o hermetismo é um conhecimento de ordem estritamente cosmológica, não da ordem metafísica pura. Portanto, não representa uma doutrina tradicional completa, mas sim um ponto de vista secundário e contingente de aplicação dos princípios metafísicos ao "mundo intermediário". No ano seguinte, na mesma revista, em artigo intitulado Hermès, Guénon reitera seu juízo sobre o hermetismo, acrescentando que
"De todo modo, deve ser bem entendido que não quisemos de forma alguma depreciar as ciências tradicionais que são da alçada do hermetismo, nem aquelas que lhes correspondem em outras formas doutrinais no Oriente e no Ocidente. Todavia, é necessário saber colocar cada coisa em seu lugar, e tais ciências, como todo conhecimento especializado, são somente secundárias e derivadas com relação aos princípios, dos quais não são mais que a sua aplicação a uma ordem inferior de realidade." (tradução minha do original em francês)
O próprio caduceu (κηρύκειον, "kerykeion"), o "cajado do arauto", que a tradição grega atribui a Hermes, simboliza o âmbito do hermetismo: duas serpentes (ou uma única serpente com duas cabeças) que se enrolam em espiral em uma bastão, e cujas cabeças se encaram mutualmente. O bastão vertical representa o Axis Mundi, o "Eixo do Mundo", que unifica e fundamenta todos os níveis da realidade, da Terra ao Céu. As duas serpentes que se encaram horizontalmente representam as dualidades e a manifestação dos diversos estados do Ser que são reunidos pelo "Eixo do Mundo".
Hermes, o Mercúrio romano, é uma divindade do intermediário. Na Grécia antiga, as estradas eram pontuadas por hermas (ἕρμα), pilares de pedra encimadas por cabeças esculpidas de Hermes e com um pênis na parte inferior, onde os gregos faziam libações e oferendas. O deus grego era o protetor dos arautos, dos ladrões, dos viajantes e dos comerciantes*, aqueles cujas atividades se dão na estrada, o medium que separa e une a um só tempo. No canto XXIV da Ilíada, Hermes guia e protege o incognito rei troiano Príamo na sua rota até à tenda de Aquiles, a quem implorará a devolução do corpo de seu filho, o herói Heitor.
O condutor realiza a união entre pontos distanciados, é um intermediário que possui a arte (τέχνη) da orientação não somente no espaço, mas também entre domínios da realidade. Hermes Chtonico é o psicopompo, o guia das psychai, invocado ao fim do terceiro dia da festa dionisíaca da Anthesteria para reconduzir os mortos que haviam entrado na cidade de Atenas aos campos de asfódelos no Hades, tal como narrado por Homero no canto XXIV da Odisséia:
"E o Auxiliador, Hermes, levou-as por caminhos bolorentos; chegaram às correntes do Oceano e ao rochedo branco; passaram além dos portões do Sol e da terra dos sonhos e chegaram rapidamente às pradarias de asfódelo, onde moram as almas, fantasmas dos que morreram." (tradução de Frederico Lourenço)
O caráter intermediário do hermetismo fica claro na doutrina da correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo da Tabula Smaragdina: "quod est superius est sicut quod est inferius, et quod est inferius est sicut quod est superius". O que está em cima é como o que está embaixo, e vice-versa. Existe uma simpatia (συμπάθεια, tema caro aos neoplatônicos)** que une todos os níveis do Cosmos, o deuteros theos (δεύτερος θεός, o "segundo deus"). Sejam eles simbólicos, cósmicos ou ontológicos, os vínculos que unem todas as coisas permitem que se passe de um nível a outro da realidade, desde que as transposições adequadas sejam feitas.
No Corpus Hermeticum, o quinto libellus de Hermes a seu filho Tat esclarece o aparente paradoxo de "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Trata-se de um discurso iniciático acerca do melhor dos nomes, que é Deus, e constitui-se numa ascensão ontológica que vai do manifestado ao imanifestado. O que é para muitos o imanifesto (ἀφανής, "invisível", "oculto"), vai se tornar para Tat o mais manifesto.***
Na tradição hindu, o termo sânscrito prādurbhāva significa "aparecer", "vir-a-ser" ou ainda "manifestar-se", e é geralmente empregado para designar aquilo que está no mundo de nāmarūpa ("nome-forma"), isto é, no mundo das limitações (upādhi) e das condições que constituem os seres. Por conseguinte, Brahman, o Incondicionado, o "Um sem Segundo", a realidade absoluta e fundamental, é, par excellence, o Imanifestado.
A maioria dos homens só consegue reconhecer o fenômeno (φαινόμενον, "aquilo que aparece"), o que pode ser testemunhado pelos sentidos. O fundamento da realidade visível, no entanto, é invisível. O orfismo atribuía a origem do mundo a Phanes (Φάνης), divindade nascida do "ovo cósmico", símbolo tradicional das potências cosmológicas enquanto ainda contidas no Princípio. Associado etimologicamente ao brilho e à luminosidade, Phanes simboliza a relação intrínseca entre o Cosmos e o visível.
Hermes Trismegistos afirma que Deus é ἀφανής, imanifesto, invisível. Isto é, ao contrário de Phanes, o "primeiro nascido" (Πρωτογόνος), Deus não é cósmico. Tudo o que é manifestado é engendrado, tem uma origem (genesis, Γένεσις), não existe desde sempre. Vir-a-ser, manifestar-se, implica ser engendrado, significa não existir desde sempre. "Pois não existiria sempre se não fosse imanifesto". A eternidade ou atemporalidade de Deus o distingue essencialmente das coisas manifestadas. O Cosmos é visível, e só comporta entes engendrados, temporais.
Note-se que já no Timeu de Platão são postulados dois axiomas fundamentais para a construção do Cosmos: "o que sempre é, e nunca vem a ser" e "o que vem a ser, e nunca é". O primeiro refere-se àquilo que possui absoluta estabilidade ontológica, e que, portanto, nunca passa por qualquer mudança. Em particular, não "vem a ser", não é gerado, engendrado em algum tempo.
O segundo axioma refere-se àquilo que "vem a ser", que é gerado, engendrado em algum tempo, e que, por isso mesmo, não possui estabilidade ontológica. Algo assim nunca é, nunca existe realmente, dado que não era, veio a ser, e depois deixará de ser. O que "é sempre" é conhecido pelo intelecto, enquanto o que "vem a ser" é conhecido pela sensação. Em suma, o sensível, o visível, o temporal, tem a sua tênue realidade ancorada ontologicamente no inteligível, no invisível, no atemporal.
Hermes Trismegisto prossegue dizendo sobre Deus que "sendo ele imanifesto, faz todas as outras coisas manifestas". O Princípio, é o fundamento das coisas limitadas e condicionadas justamente por não estar submetido às limitações e às condições dos seres por Ele originados. A afirmação seguinte, "como sempre existe, ele não é manifestado pelas coisas manifestas", parece negar o que foi prometido no início do discurso, a saber, que o imanifestado se tornaria a Tat o mais manifesto. A explicação para essa passagem é que as coisas não manifestam Deus tal como Ele é, fora de qualquer relação com elas.
As coisas são como lentes que permitem que o invisível seja visto, mas que "distorcem" em alguma medida aquilo que é visto. Se, por um lado, um objeto postado à longa distância só pode ser visto graças ao poder das lentes de um binóculo, por outro lado, aquele que vê o objeto deve descontar o efeito das lentes para fazer um juízo adequado da situação e não crer que o objeto esteja realmente próximo. As coisas revelam Deus na medida de suas capacidades. As suas limitações intrínsecas não devem ser atribuídas a Ele.
Sendo atemporal, Deus não é manifestado pelas coisas temporais. A razão ontológica disso é que a manifestação, o engendramento, é o modo de aparecimento próprio dos entes. O ilimitado não se manifesta enquanto ilimitado. Se o fizesse, tornar-se-ia limitado, o que é absurdo. O modo de "aparecimento" de Deus é o "desaparecimento" dos entes. Enquanto estes não são abstraídos, ultrapassados, nenhum conhecimento de Deus é possível.
"Pois a aparência sensível é somente dos engendrados. Por isso, nada mais é o engendramento do que a aparência sensível". O discurso hermético estabelece a implicação mútua entre ser sensível e ser gerado. É sempre sensível o ente que não existia e passa a existir (pela ação causal de outro ente que já existe). "E o inengendrado, plenamente e inaparente e imanifesto é Um". Deus é mónos (μόνος, "único", "sozinho", "desacompanhado"), não como indivíduo (ser numericamente distinto dos outros seres), mas como Princípio de todas as coisas.
Contrastando com a unicidade divina, as coisas sensíveis são múltiplas, e se manifestam em todas as coisas. Hermes Trismegisto exorta seu filho a orar ao Senhor (κύριος) e Pai (πατήρ), pois um só raio que seja lançado por Ele no pensamento de Tat em resposta à sua petição pode fazê-lo compreender tão grande Deus. "Pois somente a intelecção, e como sendo ela imanifesta, vê o imanifesto". Na filosofia grega, platônica ou aristotélica, a intelecção ("nóesis", νόησις) capta a Forma (εἶδος, no sentido de "padrão", "essência") das coisas individuais que são percebidas pela sensação (αἴσθησῐς, "aísthēsis").
O intelecto (νοῦς,"nous") é, ao mesmo tempo, o atributo que define o ser humano e a sua parte mais divina. É por meio dele que o homem possui ciência (ἐπιστήμη,"epistēmē") daquilo que é mais fundamental e universal nas coisas, e, portanto, mais verdadeiro e mais real. Os sentidos só percebem o sensível, o múltiplo. O intelecto apreende aquilo que, não sendo sensível, unifica e causa os entes sensíveis. Subindo na cadeia das causas dos entes, Deus é a causa universal de tudo o que há e pode haver.
Nos discursos anteriores do Corpus Hermeticum, Deus é repetidamente denominado Nous. Ele é o intelecto que produz todas as coisas, e o ser humano, dotado de nous é capaz de apreendê-Lo. O que está em cima é como o que está embaixo. O intelecto divino é refletido no homem como um objeto é refletido no espelho. A imagem guarda semelhança, embora nunca seja o objeto na sua inteireza. O nous humano é o Nous divino refletido no espelho das condições que definem o tipo de ser que é o homem.
"Se puderes, ele se manifestará aos olhos da mente, ó Tat". Caso seu intelecto seja forte o suficiente, preparado para isso, o Nous vai se revelar ao nous de Tat. "Pois o Senhor é livre para se manifestar através de todo o mundo". O termo grego "aphthónos"(ἄφθονος), que é traduzido aqui como "livre", é o antônimo de "phthónos" (φθονος,"ciúme" ou "inveja"), pode ser traduzido também por "liberalidade" ou "generosidade".
No Timeu, o mesmo termo ἄφθονος é atribuído ao Demiurgo (δημιουργός, "artífice"), o criador do mundo. A intenção era opor a "generosidade" (generoso é quem gera, genesis) do Demiurgo ao temido "ciúme" das divindades tradicionais. Na religião grega, o homem cuja vida fosse excepcionalmente feliz atrairia a "inveja" dos deuses, que o castigariam com a desgraça. O Nous é isento de mesquinhez, e gera todas as coisas sem reservas.
"Podes ver a intelecção e receber com as próprias mãos, e contemplar a imagem de Deus?". O conhecimento adequado de Deus não se dá pelos sentidos e nem pela imaginação (φαντασία, "phantasia", "fantasia"), que só pode combinar e recombinar os dados sensíveis guardados pela memória. A imagem (εἰκών, "ícone") que é objeto de contemplação (θεωρία, "theoria") não é sensível e nem imaginativa.
"Porém, o imanifesto está em ti e por ti". O Nous está em Tat. "Como, o si mesmo em ti mesmo, através dos olhos, será manifestado a ti?" De que modo é possível reconhecer o imanifestado naquilo que é manifestado é a questão a que vai se dedicar na sequência o quinto discurso de Hermes Trismegisto.
(continuará na parte 2)
...
* Note-se que o comerciante é um intermediador entre o que é produzido e o consumidor.
** A simpatia, por sinal, é o fundamento da magia segundo Plotino nas Enéadas.
*** Sigo basicamente a excelente edição bilíngue do Corpus Hermeticum Graecum do Prof. David Pessoa de Lira, publicada em 2023 pela editora Cultrix. Consultei também a tradução inglesa de Clement Salaman, Dorine van Oyen, William D. Wharton e Jean-Pierre Mahé, intitulada The Way of Hermes, de 1999.