sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Leszek Kolakowski e a mentalidade revolucionária

"A ideia de que o mundo existente é tão completamente corrompido que é impossível pensar em melhorias e que, precisamente por isso, o mundo que vai sucedê-lo possuirá a plenitude da perfeição e a libertação última, tal ideia é uma das aberrações mais monstruosas do espírito humano."

LESZEK KOLAKOWSKI, L'Esprit Revolutionnaire, p. 27

"Parece haver poucos casos, se houver algum, nos quais uma mente apática ou reacionária leia Marx e se torne marxista. Quase sempre tratou-se do caso de uma mentalidade suscetível acolhendo um sistema de certezas completo e aparentemente sofisticado."

ROBERT CONQUEST, Stalin: Breaker of Nations, p. 22

Em um texto de 1970 intitulado "O Espírito Revolucionário", o filósofo e historiador das ideias polonês Leszek Kolakowsi apresenta as características essenciais do que ele denomina de mentalidade revolucionária. Semelhante a outros pensadores, tais como o filósofo alemão Eric Voegelin e o historiador das religiões romeno Mircea Eliade (ambos exilados fugindo de totalitarismos em suas respectivas nações), Kolakowsi enxerga a ideia revolucionária como uma versão profana de crenças religiosas, particularmente de  esperanças apocalípticas.

Tal origem se manifesta no credo revolucionário especialmente na disjunção radical "ou tudo ou nada". O que significa, como Kolakowski complementa, que para o revolucionário não existe purgatório. A radicalidade da oposição entre o mundo tal como ele se apresenta e o um suposto mundo perfeito vindouro repete a estrutura apocalíptica do cristianismo primitivo no qual a iminente volta de Cristo tinha como exigência a necessidade da conversão urgente.

A mentalidade revolucionária é definida por Kolakovski como "aquela atitude espiritual que se caracteriza pela crença particularmente intensa na possibilidade de uma salvação total do homem em oposição absoluta com sua situação atual de escravidão, de sorte que entre as duas não haveria nem continuidade e nem mediação. Mais ainda, que a salvação total seria o único objetivo verdadeiro da humanidade ao qual todos os outros valores deveriam ser submetidos como meios."

Os revolucionários creem no Céu, no Inferno e no caminho da cruz, no reino da salvação total e no reino do mal total. A ideia de uma salvação total que coloca sob questão todos os valores mundanos é parte do cristianismo. Dado que o Cristo se aproxima, e com Ele o Juízo Final, quaisquer outros compromissos e vias intermediárias são obliterados. A única escolha possível é entre o Reino dos Céus e o Anticristo. Somente uma coisa possui realmente valor: a salvação total cuja rejeição resoluta na danação total.

A urgência do Juízo faz com que tudo esteja submetido a esse fim, o único fim real para o homem. Mas a própria Igreja logo percebe que era necessário algum compromisso com este mundo decaído e incapaz de salvação por seus próprios meios. O Juízo foi pouco a pouco relegado a um horizonte indeterminado, pois nem o Cristo mesmo sabia quando aconteceria a Sua volta. Não obstante, a esperança escatológica do Apocalipse renasceu continuamente na história do cristianismo nos inúmeros movimentos heréticos que acusavam a Igreja de haver traído a urgência do Evangelho.

A reforma luterana, diz Kolakowski, resgatou nos seus inícios essa crítica à acomodação da instituição organizada ao mundo das fraquezas e misérias humanas. A pregação original do tudo ou nada foi substituída por uma tendência mais acomodativa na qual a atitude era a da busca por melhorias e por reformas. O lema sola fide de Lutero trouxe de volta o tema da centralidade da fé como um regeneração espiritual integral do homem. Só há a fé e a ausência de fé. E onde falta a fé, nenhuma obra é suficiente para a justificação do homem decaído.

Não existe via intermediária entre a fé e o pecado. Para o fiel, qualquer obra é meritosa. Para o incréu, toda obra agrava a danação eterna. Na verdade, não há sequer o mérito, pois a salvação é dada de graça aos que têm fé. Não é possível, portanto, alcançar a salvação por graus aproximativos atribuídos às obras. 

A Igreja, porém, já havia entendido que pôr os fiéis diante da opção absoluta entre a perfeição e a danação seria retirar qualquer esperança de salvação. Por isso, os méritos foram graduados, uns sendo maiores e outros menores. Todos os atos possuem seu valor. Se é melhor obedecer a Deus por amor, obedecer por temor também tem mérito. Obedecer por um motivo baixo ainda é melhor do que ser desobediente. 

Contra Lutero, para quem Deus quer somente a fé e nada mais, a Igreja romana considerava a fé como uma virtude entre outras (importante, não exclusiva). Segundo o luteranismo, o pecado original significou a corrupção total da natureza, impedindo qualquer possibilidade de regeneração. Embora também pregasse a doutrina do pecado original, a Igreja considerava que a corrupção não era integral, e que havia ainda bem no homem e nas coisas. 

Não há compatibilidade entre o mundo da fé e as faculdades naturais do homem, considera Lutero. A graça, para a Igreja, não pode ser uma violência à natureza, mas deve colaborar com ela melhorando-a. Isso a permitiu incorporar a sabedoria grega antiga, o que para Lutero não passava de conluio com o paganismo. Todavia, o radicalismo inicial de Lutero logo é substituído pelos mesmos compromissos com o mundo imperfeito que foram criticados no catolicismo romano.

Kolakowski aponta que "a teoria da salvação mundana, isto é, a doutrina revolucionária de Marx, é modelada sob o mesmo esquema dicotômico que caracteriza a doutrina cristã da salvação. Fazendo paralelo exatamente ao cristianismo, esse esquema está organizado em torno da crença prometeica de autorredenção da humanidade." No marxismo não há um pecado original a expiar, e nem uma salvação vinda do exterior, mas todo mal da história só adquire sentido pela libertação final. 

As forças da alienação tornaram o homem escravo de leis econômicas férreas. Elas geram sofrimento e miséria, em que pese o fato de que elas possuem um sentido redentor na medida em que são etapas necessárias no caminho da cruz e do paraíso. Quando o aumento dos constrangimentos impostos pela alienação chegarem a seu máximo, estarão dadas as condições para a libertação final. Nesse momento, na consciência do proletariado, a necessidade histórica estará unida à liberdade. 

O mesmo processo histórico determinista que conduziu necessariamente o homem por inúmeros sofrimentos realizará o fim da sujeição às forças alienantes e a libertação final. Daí se segue que as leis econômicas do capitalismo, uma das etapas para o paraíso, não podem ser abolidas, somente atenuadas. As reformas não podem iludir o proletariado, pois a polarização e a exploração somente crescerão à medida em que se aproxima a luta final. 

O coração da doutrina de Marx, ensina Kolakowski, encontra-se justamente nesse ponto: toda reforma e toda luta econômica devem estar submetidas à realização desse fim último. A salvação é total ou nenhuma. Não há meios de substituir a revolução, a tomada violenta do poder, por medidas parciais de reforma. A salvação não é gradual e nem divisível. Somente pode haver a revolução global, que, por sua vez, deve se espraiar a todos os domínios da vida humana. 

Kolakowski quer dizer que há etapas necessárias e incontornáveis no processo histórico que conduz deterministicamente até à revolução, mas não há etapas ou gradações na própria revolução tomada como transformação absoluta de todas as relações humanas. Como diz a passagem evangélica, "é necessário que o escândalo venha". Porém, quando vier o Reino dos Céus, haverá "um novo céu e uma nova terra". As duas afirmações são inseparáveis, ainda que opostas. Uma vez instalado o reinado de Cristo, não haverá qualquer semelhança entre a Jerusalém celeste e o mundo decaído que a precedeu.

No prefácio do Capital, Marx afirma explicitamente que "quando uma sociedade descobriu a lei natural que determina seu próprio movimento, mesmo assim ela não pode pular as fases naturais de sua evolução, nem mudá-las para fora do mundo pelo golpe de uma caneta. Porém, isto ela pode fazer: encurtar e diminuir as dores do parto." Karl Popper, em seu The Poverty of Historicism, considera essa passagem como uma excelente formulação do tipo de fatalismo característico do que ele denomina como historicismo.

Kolakowski aponta em seguida que é sobre o lugar das reformas que se dá a discussão entre os reformistas e os marxistas na Segunda Internacional. A revolução não é produzida por uma adição de reformas. O capitalismo não é capaz de ser reformado, somente pode ser abolido. A diferença radical entre o mundo anterior à revolução e o mundo da libertação total, o "tudo ou nada" marxista, coloca a questão da continuidade da cultura humana. Será possível alguma continuidade ou haverá absoluta e irreconciliável ruptura? 

No caso de ruptura radical e absoluta, como exigiria a lógica interna das teses marxistas, tudo o que precedeu a transformação radical deve ser rejeitado e esquecido, inclusive todas as conquistas culturais da humanidade até então. Kolakowski considera que sobre esse ponto específico Marx é incoerente e ambíguo. Se a filosofia, o direito e a religião são determinadas pelas relações de produção, e se as ideias nada têm de eternas, mas são somente relativas às sociedades que as sustentam, então o sentido de toda a produção cultural e intelectual era determinado por interesses de classe.

Assim, quando a abolição das classes acontecer, a totalidade dessa produção perderá seu sentido. Marx, ele mesmo, não aceitava essa conclusão, e pretendia que o socialismo poderia se apoiar sobre as conquistas civilizacionais do capitalismo, fossem tecnológicas ou pertencessem a outros domínios. De forma alguma a revolução traria uma regressão utópica a uma época de tecnologia primitiva e sem ciência. Sobre a questão se a cultura possui somente um sentido de classe ou possui valor universal, a obscuridade e a equivocidade de Marx permitiram duas interpretações divergentes do socialismo. 

Segundo Kolakowski, a história da Segunda Internacional mostrou que o espírito reformista predominou lá onde o movimento socialista resultava das aspirações reais dos operários. A escatologia revolucionária predominava seja quando os intelectuais, que se consideravam como a encarnação da consciência operária, estavam à frente, seja quando estava à frente o lumpenproletariado. Os operários eram pouco sensíveis à escatologia da salvação total e estavam mais preocupados com as vantagens que poderiam obter no capitalismo. 

Os intelectuais e as camadas marginais são mais susceptíveis ao encanto do messianismo revolucionário. Este, por sua lógica interna, propugnava a rejeição absoluta de tudo o que fosse anterior à revolução, dado que toda a cultura não era mais do que instrumentos a serviço das classes privilegiadas. Como a revolução deveria mudar radicalmente todas as dimensões da vida, a cultura só poderia adquirir sentido se fosse submetida à direção do Estado proletário.

Ninguém pôde jamais dizer exatamente no que consistiria essa mudança global e absoluta, mas a sua ideia justificou toda forma de destruição cultural. O vandalismo, o incêndio de bibliotecas e o terrorismo estariam de antemão justificados se a cultura humana inteira não fosse mais do que expressão dos interesses de classes dominantes. Kolakowski adverte que Marx não pode ser culpado por essas interpretações posteriores. 

Entretanto, a lógica do messianismo profético e a obscuridade dos seus escritos a esse respeito, tornam as teses de Marx equívocos que o nihilista destruidor pode utilizar a seu favor. O problema se torna, então, saber se o socialismo é uma ruptura com a continuidade cultural humana. Em outros termos, o problema seria identificar qual dos slogans é o verdadeiro: "socialismo ou barbárie" ou "socialismo é barbárie"?

Kolakowski argumenta que uma mudança total como propugnada pelo messianismo revolucionário é tão impossível quanto a sociedade perfeita. Não obstante, regressões culturais determinantes são possíveis, pois não existe uma lei que garanta o progresso ininterrupto. O filósofo polonês considera como uma das aberrações mais monstruosas do espírito humano a ideia de que o mundo é incapaz de qualquer melhoria, e que, precisamente por isso, o mundo vindouro será perfeito. No pensamento religioso que lhe deu origem, essa ideia ideia depende da graça, e é bem menos abominável que sua versão mundano-revolucionária.

Não há salvação baseada em um suposto salto direto do Inferno para o Céu. Tal revolução jamais acontecerá, encerra Kolakowski.

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domingo, 10 de dezembro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro III, sobre a oração)



"As melhores formas de aproximação de Deus parecem ser duas: a via da investigação e do argumento, e a via da oração e da súplica. A primeira almeja conhecer o Bem, enquanto a segunda é nosso guia para alcançá-lo, e, tendo-o alcançado, conhecê-lo perfeitamente."

MARSÍLIO FICINO, Comentários aos "Nomes Divinos", LXVII

Na sequência de sua exposição sobre os nomes de Deus, no livro III, Dionísio dedica-se à tratar da oração. Para se alcançar as divinas verdades é mister subir a Deus, como que por uma corda que tem seu início nos céus e se estende até nós. Uma mão depois da outra, subimos, e temos a impressão de que são os céus que, por ação de nossa força, deslocam-se na nossa direção. Na verdade, é a Realidade última que nos atrai com sua refulgência. 

Estando em um barco atado por uma corda a uma rocha na costa, não afetamos em nada a rocha ao puxarmos a corda a fim de aproximar o barco da costa. Analogamente, se empurramos a rocha com um remo, em nada a afetamos, mas dela nos afastamos. No início de todas as atividades, é necessário que as iniciemos com orações, sem considerar que trazemos a Divindade a nós, pois ela está perto em todo lugar e em lugar nenhum. São as lembranças e as invocações que nos unem a esse Poder.

Plotino, na Enéada IV, 4, ao examinar o problema da oração e da magia, assinala que não são os deuses ou os astros que se inclinam ao homem, mas sim que é o homem, por meio dessas práticas, que entra em sintonia com (ou capta, ou atrai) poderes que naturalmente emanam desses seres. O universo é um Todo cujas partes são formadas e exercem suas funções em vista da realização e da manutenção do Todo. 

Assim, necessariamente, tal qual um animal, todas as suas partes, por mais diversas que sejam, e por mais que estejam separadas umas das outras, estão em profunda simpatia (συμπάθεια), ou seja, pertencem a (e têm seu sentido em) uma unidade subjacente. Por conta disso, nada está realmente afastado de nada, não havendo possibilidade de isolamento absoluto. As coisas têm poderes diferentes que entram em relação com os poderes de outras coisas, e têm efeitos diferentes de acordo com as capacidades ativas e receptivas dos outros seres.

No caso dos astros, não são eles mesmos, como se fosse algo de sua escolha, que distribuem benefícios ou malefícios aos homens, mas, sendo o que são, eles possuem determinados poderes que podem ser benéficos ou não a depender dos poderes receptivos das coisas que estão abaixo deles. As orações, por seu turno, não são mais do que meios de captar ou atrair essas influências. Os astros, no entanto, permanecem incólumes tanto quanto uma mulher bonita permanece a mesma a despeito do efeito que surte nos homens ao seu redor.

As orações são o meio ou o instrumento pelo qual o homem se harmoniza com esse poder superior. Neste mundo, um orador diante de uma plateia utilizará gestos, movimentos e palavras que ele sabe que terão o efeito de atrair a atenção das pessoas que o assistem, e predispô-las à anuir com o que será dito. Isso é um poder real, um encanto ou magia, exercido sobre outrem. As pessoas presentes na assembleia são capturadas não pela razão, mas por sua parte não racional que é impressionada por aquelas palavras, gestos, entonações, movimentos, etc.

Obviamente, os astros não são capturados por orações da mesma forma que pessoas em uma assembleia são capturadas pelas artes de um orador. Embora o princípio de simpatia seja o mesmo, são somente certos efeitos involuntários dos astros que são capturados pelas orações, uma vez que se trata de uma relação hierárquica na qual o ser humano é inferior. Utilizando uma imagem, uma cachoeira fornece água permanentemente, a despeito de haver ou não quem se coloque sob sua cascata. Se alguém quer se beneficiar daquela fonte de água, deve se pôr diretamente sob seu influxo.

Dionísio afirma que não é Deus que se move na direção do homem, como se fosse uma pedra atraída a nós por meio de uma corda. Ao contrário, Ele é a pedra fixa da qual nos aproximamos ao puxar a corda. São as orações que nos colocam sob o influxo do poder divino. Assim como para exercer certas tarefas ou contemplar certas realidade precisamos nos concentrar, ignorando tudo o que não é parte de nosso foco, assim também a oração é a atitude que nos coloca em sintonia, e, portanto, nos dá acesso, a Deus, sem que Ele em nada seja afetado por isso.

Marsílio Fino, ao comentar essa passagem de Dionísio mais de mil anos depois, dirá que há uma cadeia na realidade constituída pela ordem e pela série das coisas obedecendo a Providência divina. Portanto, há uma certa comunhão, uma conexão mútua, nesse universo ligado como uma cadeia, no qual a Providência se estende desde os seres mais elevados até os seres mais humildes. Sem sofrer mudança, a Providência ordena os seres mutáveis, e dá azo à liberdade das almas racionais e às suas orações.

Os Magos sobem por essa cadeia a partir dos elos mais baixos a fim de alcançar os bens celestes. Os elos da cadeia intelectual atraem os contempladores da metafísica, que desse modo se aproximam gradativamente da luz inteligível. A cadeia pela qual sobe o devoto para alcançar Deus é a da lei natural inscrita no coração de todos os homens. E a lei promulga que há um só Deus, que Ele é o autor de todas as coisas, e que Ele deve ser amado acima de todas elas.

Jâmblico, cita Ficino, já reconhecia que a oração era mais importante que o sacrifício, pois este recebia todo o seu poder daquela, e que Deus não muda nada por conta das nossas orações, mas, ao contrário, somos nós que somos mudados pela oração, e tornados capazes de receber os dons que vêm do alto. Platão, na República, ensina que devemos iniciar, seja no pensamento ou na palavra, sempre a partir de Deus.

Se há uma simpatia que une todos os entes do universo, tal qual as partes de um ser vivo estão organizadas segundo a regra geral do Todo, assim também há uma comunhão entre todos os seres ainda mais profunda realizada pela Providência, que ordena todas as coisas segundo a sabedoria divina. Sendo o princípio ordenador, Deus mesmo está livre de toda a variação que caracteriza as coisas que são por Ele ordenadas e a Ele submetidas. Portanto, há uma cadeia do Ser, uma comunhão ontológica que liga não só as coisas que são, mas também as que foram e que serão um dia.

As orações e as súplicas são como a corda pela qual se sobe essa cadeia, não um meio de subvertê-la ou de controlá-la. Como tudo na realidade, trata-se de encontrar a configuração correta que permite abrir passagem para determinados poderes e capacidades aparentemente fechados, separados e inalcançáveis. A chave só abre a porta porque há entre essas duas configurações pontos de encaixe, ou seja, pontos em que há concordância de estrutura que permitem a comunicação entre suas diferenças, consequentemente, a liberação de certos efeitos.

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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Antirrealismo, epistemologia e teorias científicas


"Toda teoria científica implica uma classificação conceitual do mundo em uma ontologia de entidades fundamentais e propriedades. Mas são exatamente essas ontologias que são mais sujeitas a mudanças radicais ao longo da história da ciência."

MARY HESSE, Truth and the Growth of Scientific Knowledge

O livro "Resisting Scientific Realism" (2018), de autoria do Professor K. Brad Wray, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, pretende reunir e responder aos tradicionais argumentos contra o antirrealismo científico, além de adicionar novo argumentos contra o realismo. Em seu primeiro capítulo, é apresentado um caso paradigmático da história da ciência que ilustra bem a posição que será defendida no resto do livro. O caso é o da Astronomia grega, cujo princípio de salvar os fenômenos permanece sendo um dos pilares do antirrealismo moderno.

O ponto em questão é o de que os astrônomos gregos faziam uso de modelos matemáticos que descreviam com acuidade os eventos do céu visível sem, contudo, atribuir a eles a noção de verdade, isto é, de correspondência com o que de facto acontecia no mundo celeste. As órbitas dos planetas não são visíveis, mas todos os modelos astronômicos tinham como princípio primeiro a utilização de órbitas circulares concêntricas para descrever os movimentos dos corpos celestes.

Essa pressuposição não significava necessariamente um compromisso com a afirmação de órbitas concêntricas na realidade. A função desses modelos era salvar os fenômenos, isto é, descrever da forma mais exata possível os eventos celestes e permitir predições acuradas de fenômenos futuros (eclipses, etc). Em termos técnicos, o seu objetivo era a adequação empírica, a coadunação do que era exposto no modelo com aquilo que era observável a olho nu. 

A fim de dar conta dos fenômenos visíveis nos céus que não eram contemplados somente pela utilização de órbitas circulares concêntricas (por exemplo, o movimento retrógrado) os astrônomos gregos introduziram uma série de hipóteses tais como os epiciclos e as órbitas excêntricas. Alguns desses modelos utilizavam epiciclos, enquanto outros preferiam fazer uso de equantes. Havia também a combinação desses diversos apetrechos matemáticos em um só modelo. A despeito do fato de que essas adições resolviam certos problemas manifestos, elas também aumentavam a complexidade matemática dessas teorias.

A consequência da postura epistemológica adotada por esses astrônomos gregos era a existência de modelos equivalentes em adequação empírica. Embora um modelo A pudesse ser teoricamente incompatível com o modelo B (um utiliza epiciclos e o outro não, por exemplo), não era infrequente que ambos os modelos descrevessem satisfatoriamente o que era observado. Nesse caso, tanto A quanto B eram empiricamente adequados, ainda que fossem teoricamente incompatíveis. De todo modo, quando tomados como instrumentos, nenhuma contradição advinha da aceitação de ambos.

O cenário muda com o advento da Astronomia de Copérnico, Kepler, Tycho Brahe e Galileu, principalmente pela afirmação explícita ou não de uma postura epistemológica realista. Naquele momento histórico, os astrônomos tinham diante de si três teorias astronômicas diferentes: a clássica ptolomaico-aristotélica, a copernicana, e correndo por fora, a teoria de Tycho Brahe. As observações de Galileu das imperfeições da superfície lunar, a descoberta das luas de Júpiter e a observação das fases de Vênus, além de outros fatores, deram a vitória ao copernicanismo.

A matematização da realidade, efetuada com sucesso por Galileu, Descartes, Newton, entre outros, trouxe consigo o problema epistemológico da verdade das teorias científicas. Haveria uma diferença fundamental entre obter uma teoria ou modelo que fosse adequado empiricamente e obter uma teoria ou modelo que fosse verdadeiro, isto é, que correspondesse a como é o mundo realmente. O problema não é novo, fora apontado já nos inícios da revolução científica por pensadores diversos como Marin Mersenne, Pierre Gassendi, G. H. Leibniz, George Berkeley, entre outros.

O próprio Newton estava ciente da questão, como mostram seus comentários no Scholium Generale acerca da interpretação matemática (e não ontológica) das forças. A formulação mais importante e influente do problema é apresentada pelo físico, historiador, matemático e filósofo da ciência francês Pierre Duhem. De acordo com sua filosofia, as teorias físicas (basicamente as ciências físico-matemáticas) não podem ser verdadeiras e nem falsas, mas tão somente adequadas empiricamente. Para Duhem, as teorias físicas meramente descrevem o comportamento manifesto das magnitudes físicas em uma classificação natural, que é uma estrutura de expressões matemáticas na qual leis menos universais podem ser derivadas logicamente de leis mais fundamentais.*

A posição de Duhem é a inspiração de muito do que se denomina hoje em filosofia da ciência como antirrealismo científico. O filósofo Bas van Fraassen defende um empirismo construtivo que é por ele definido a teoria segundo a qual o "objetivo da ciência é fornecer teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como crença somente que ela é empiricamente adequada". Tanto a concepção das teorias quanto a sua aceitação têm como parâmetro a mera adequação empírica, ou como diziam os astrônomos gregos, a teoria deve somente salvar os fenômenos.

Há muitas versões do realismo científico e do antirrealismo científico. Mesmo Pierre Duhem não se encaixa totalmente nas categorias de positivismo, antirrealismo, convencionalismo ou instrumentalismo. Tampouco o antirrealismo é uma forma de ceticismo puro e simples. O Professor Wray observa que o antirrealista não é um cético tout court, mas que suas dúvidas se limitam a dois aspectos das teorias científicas:

1) As afirmações que nossas teorias fazem a respeito de entidades e de processos inobserváveis;
2) A afirmação de que temos boas razões para acreditar que uma teoria verdadeira se encontra entre a série de teorias que os cientistas selecionaram.

Assim, a questão antirrealista  é ontológica, e não pragmática (Professor Wray não usa esses termos). Sem dúvida as teorias que os físicos apresentam são imensamente bem-sucedidas nas sua capacidade de descrever os fenômenos e de fazer predições acuradas, mas isso nos obriga a acreditar que o mundo é de facto tal qual as teorias afirmam? O problema epistemológico central é saber se aceitar uma teoria em termos de seus sucessos preditivos torna necessário aceitar que todas as entidades que ela postula, ainda que sejam inobserváveis direta ou indiretamente, existem do mesmo modo como uma cadeira existe. 

Posta sob outra perspectiva, a questão é se aceitar o inegável sucesso descritivo-preditivo da física newtoniana exige aceitar, por exemplo, a existência de entidades reais chamadas forças. Ademais, é possível manter a estrutura matemática do newtonianismo, utilizá-la pragmaticamente, mesmo não aceitando mais a existência de forças. Bastaria para isso que encarássemos o mundo como se ele fosse exatamente como a teoria o descreve a fim de nos beneficiarmos daquilo que a teoria tem para oferecer dentro de seu escopo. 

Ora, para resolver essa questão seria necessário termos meios epistemológicos e lógicos de determinar, para além de toda dúvida, que uma teoria científica é verdadeira na sua integralidade. É preciso distinguir claramente entre a verdade factual de uma teoria e a nossa capacidade de saber que ela é verdadeira. A primeira é uma questão ontológica, isto é, se ou não o mundo é tal como enunciado na teoria. A segunda é uma questão epistemológica, isto é, se sabemos ou não que uma teoria é verdadeira. 

Em suma, podemos estar certos sem saber que estamos certos. Pode acontecer que o que dizemos de fato corresponda a como o mundo é. Teríamos uma opinião verdadeira, algo que Platão já identifica no Teeteto. Trata-se, todavia, somente de uma opinião que está de acordo com a realidade sem que seu proponente tenha quaisquer condições de apresentar as razões pelas quais acredita naquilo que diz. Considerada do ponto de vista prático, uma opinião verdadeira serve tanto quanto o conhecimento.

Epistemologicamente, no entanto, a opinião verdadeira não é suficiente. É preciso saber justificar para si mesmo e para os outros por quais razões alguém acredita que sua opinião seja verdadeira. Ou ainda, é necessário transformar a opinião em conhecimento. A justificação é justamente o modo de transpor os limites da opinião na direção do conhecimento legítimo. Ao apresentar boas razões para acreditar em suas declarações, o proponente demonstra que o que ele diz pode ser considerado verdadeiro por todos os que considerarem honestamente as mesmas evidências. 

As formas tradicionais de determinar se uma teoria científica é verdadeira ou falsa são a verificação e a refutação respectivamente. Em ambos os casos, a pedra de toque são o sucesso e o fracasso preditivos. Grosso modo, se as predições de uma teoria se mostram verdadeiras, ela está verificada, demonstrada, provada. Se as predições não se confirmam, ela está refutada. Mas há vários problemas lógicos e epistemológicos envolvidos nesses dois métodos de averiguação científica.

O mais óbvio problema com a verificação é que é logicamente possível que de premissas falsas sejam inferidas conclusões verdadeiras. Mais ainda, tentar provar uma conjectura por suas consequências verdadeiras é cair na falácia da afirmação do consequente.** Karl Popper, por seu turno, mostrou que nenhum conjunto limitado de predições verdadeiras é logicamente suficiente para afirmar uma lei, cuja característica definidora é ser uma sentença universal.

No caso da refutação, bastaria em tese uma só predição falsa para logicamente se inferir a falsidade da teoria. Acontece, porém, que mesmo Karl Popper admite que os cientistas avaliam os testes das predições ancorados em diversas condições laboratoriais e teóricas que podem muito bem ser colocadas em xeque a cada refutação de uma predição. Está nas mãos dos cientistas aceitar ou não a validade dos testes realizados. A lógica não fornece nenhum amparo para a decisão concreta dos cientistas.

Esses problemas foram em grande parte antecipados nas obras de Duhem. Professor Wray apresenta em seu livro o famoso argumento da subdeterminação das teorias, também conhecido como tese Duhem-Quine. O argumento afirma que um teste empírico de uma teoria nunca é feito isoladamente, mas como um conjunto de asserções, e que o fracasso de uma predição implica na refutação do complexo inteiro de asserções tomado como um bloco. O trabalho do cientista nessas condições é tentar encontrar onde se encontra o erro. 

Nas palavras de Duhem:

"Em resumo, o físico não pode jamais submeter ao controle da experiência uma hipótese isolada, mas somente todo um conjunto de hipóteses. Quando a experiência está em desacordo com suas previsões, ela lhe ensina que uma ao menos das hipóteses que constituem esse conjunto é inaceitável e deve ser modificada. Mas ela não designa aquela que deve ser mudada." (La Théorie Physiqye, p.262)

O ponto é que, sendo formada por um conjunto de afirmações, a teoria cuja predição se mostra falsa nunca especifica qual parte dela está errada e qual parte está certa. A refutação de uma predição mostra que, tomada como um bloco, a teoria é falsa, mas isso não significa que cada uma das afirmações que a constituem seja falsa. Aqui se aplica a diferença lógica entre todo e cada. Uma coisa é afirmar que a conjectura como um todo é falsa, outra coisa completamente diferente é dizer que cada uma das suas partes constituintes é falsa. 

A tarefa agora é determinar quais são as afirmações erradas e modificá-las. Ocorre que não há regra lógica que guie esse processo. O cientista pode tanto abandonar a teoria inteira e substituí-la por uma nova quanto pode se dedicar a mudar partes específicas a fim de remontar a teoria tornando-a imune aos erros preditivos que a refutaram. Em ambos os casos o cientista está sendo absolutamente racional, dado que logicamente nada impede nenhuma das duas decisões. Somente o bom senso, diz Duhem, vai determinar a direção a ser tomada e por quanto tempo ela deve ser mantida.

Em termos puramente lógicos, tanto o cientista que abandona a sua teoria nas primeiras predições falsas quanto aquele que a mantém fazendo modificações pontuais indefinidamente estão racionalmente justificados. Tanto o abandono pode ser uma decisão justificada quanto a modificação contínua da teoria pode ser conduzida indefinidamente, sem nenhum limite determinado. Só um etéreo bom senso vai decidir a questão, quando os cientistas percebem que tomaram o curso errado ou que estenderam por tempo demasiado os pretendidos consertos na sua teoria.

Se não podemos logicamente decidir entre dois caminhos diante do erro preditivo de uma teoria, podemos ao menos determinar um experimentum crucis que decidirá entre duas teorias qual é a verdadeira. O raciocínio aqui é próximo de uma reductio ad absurdum, na qual uma consequência absurda deduzida rigorosamente das premissas de uma tese demonstra inequivocamente sua falsidade. Teríamos então duas teorias, A e B, e se cada uma das duas predisser fenômenos diferentes, aquela que acertar a predição será a vitoriosa.

Duhem assevera que isso é impossível no campo das ciências físico-matemáticas. A razão é simples: se entre A e B não houvesse possibilidade lógica de nenhuma outra alternativa, então o acerto de A condenaria definitivamente B. Contudo, não é necessariamente verdade que só existam duas alternativas. Em uma disjunção, A ou B, se A é verdadeiro, necessariamente B é falso. Mas seria falacioso afirmar que em toda disjunção as opções dadas ou escolhidas esgotam completamente as possibilidades. A disjunção não tem por si mesma o poder de restringir absolutamente as possibilidades àquelas que foram postas.

Assim, o cientista diante de A e de B, a não ser que ele consiga mostrar que essas são as únicas opções concebíveis, jamais poderá afirmar que A é absolutamente a verdadeira resposta somente pelo fato de que B é falsa. Uma comparação que não esgota entre as suas opções todas as possibilidades concebíveis pode somente determinar qual das opções dadas é a verdadeira. Entre A e B podemos decidir que A é a verdadeira, mas não podemos afirmar que A é a única opção verdadeira concebível. 

Na realidade, nenhum cientista pode conceber todas as possibilidades lógicas de explicação de um fenômeno. O que ele faz é somente escolher entre algumas opções à disposição. Dentre essas opções, alguma pode talvez resistir a todos os testes e derrotar todas as outras. Não se segue logicamente daí que a opção vitoriosa seja definitivamente a única possível. Escolher entre as cartas que se tem à mão em um jogo não significa escolher entre as únicas cartas do baralho. 

Os realistas científicos que confiam nesses métodos de verificação ou de refutação têm que resolver esses problemas para que faça algum sentido a sua pretensão de que os cientistas conseguem de fato identificar entre as suas opções teóricas aquela que é verdadeira ou aproximadamente verdadeira. No caso da refutação (ainda que admitamos que uma refutação definitiva seja possível), mostrar que uma teoria é falsa não nos conduz para mais próximo da verdade. 

Sim, como queria Karl Popper, quando uma opção errada é eliminada há menos um concorrente na disputa. Mas somente se o número de opções realmente for limitado poderíamos nos sentir mais próximos da verdade. Dado que não conseguimos conceber todas as opções logicamente possíveis, a refutação de uma teoria não nos coloca necessariamente mais próximos da teoria definitivamente verdadeira. 

No caso da verificação, encontrar uma teoria vencedora entre as suas rivais significa somente encontrar aquela que se sustenta melhor diante das concorrentes. Logicamente, nada indica que a vencedora seja a opção derradeira. A consequência disso é que os realistas não podem afirmar que necessariamente a teoria absolutamente verdadeira ou aproximadamente verdadeira estava entre as opções avaliadas pelos cientistas. Em um momento histórico, uma teoria pode vencer a competição com as suas rivais e ser considerada um conhecimento definitivo e inalterável. Nada impede que tempos depois apareça uma nova rival até então impensada.

A circunscrição da avaliação das teorias àquelas que estão no momento disponíveis é o centro "argumento a partir da subconsideração". Basicamente, os cientistas nunca são capazes de esgotar todas as possibilidades de explicação de um fenômeno, sendo sua decisão por uma teoria sempre limitada às alternativas disponíveis na atualidade. Em certo sentido, o argumento não é novo, pois Thomas Kuhn, e, principalmente, Imre Lakatos e Larry Laudan, já haviam defendido que a avaliação de paradigmas, programas de pesquisa ou tradições de pesquisa, respectivamente, sempre são tentativas e só se referem ao seu estado atual e nunca ao futuro.

Professor Wray salienta que o argumento não diz que os cientistas não sejam confiáveis em seus juízos sobre as teorias escolhidas. Eles o são, mas tão somente na sua habilidade em escolher a melhor teoria entre as alternativas disponíveis. Possuir o know how para identificar, dentro de parâmetros estabelecidos (adequação, simplicidade, beleza, coerência, etc), qual é a melhor teoria entre as alternativas é algo bem diferente de saber identificar qual delas é a verdadeira. Atender a certos parâmetros pode manifestar a qualidade superior de uma teoria frente às concorrentes, mas não necessariamente garante a sua veracidade.

Um argumento que pode ser contraposto é o de que os cientistas avaliam teorias que já foram selecionadas por sua concordância com outras teorias e asserções mais básicas e estabelecidas pelo tempo (background theories), sendo então improvável que sua escolha entre as alternativas selecionadas seja errônea. Isto é, o cientista não busca somente uma nova teoria sobre um fenômeno da realidade, ele busca também uma nova teoria que esteja em concordância com as teorias estabelecidas no passado. 

Essas teorias de fundo e asserções bem assentadas são consideradas verdadeiras pelos cientistas, de modo que seria improvável que a nova teoria escolhida (a melhor entre as que estão em concordância com as teorias de fundo) não fosse também verdadeira. O Professor Wray responde a essa objeção admitindo que tal background realmente restringe o número de alternativas disponíveis para a avaliação. Entretanto, o problema é que o próprio background pode ser igualmente um empecilho para o desenvolvimento de teorias verdadeiras. A história da ciência mostra o quanto o apego a certos fundamentos obstaculizou a aceitação de teorias hoje estabelecidas.

Ora, mais do que isso, nada impede que as teorias de fundo também estejam erradas, por mais bem estabelecidas que pareçam ser. Reformas conceituais nos fundamentos fazem parte da história do pensamento científico. Karl Popper, apesar de realista, demonstrou muito bem o caráter inelutavelmente conjectural das teorias científicas. A corroboração das teorias, explica Popper, se refere somente ao seu status atual, ou seja, significa somente que elas resistiram aos testes até o momento. Nada garante que no futuro elas não sejam refutadas.

A filósofa da ciência Mary Hesse observou em seu artigo Truth and the Growth of Scientific Knowledge que as teorias atuais são passíveis de sofrer revisões radicais tanto quanto as antigas. Ela distingue dois tipos de progresso científico: em um sentido pragmático-instrumental progredimos muito em observações e na acuracidade das predições, o que não implica em um progresso ontológico, isto é, em uma aproximação cada vez maior da verdadeira essência da realidade. 

Hesse não defende que não possa haver verdade entre as teorias científicas aceitas. A questão é que teorias muito bem assentadas, e consideradas verdadeiras no passado, foram depois abandonadas e substituídas por outras. Não há nenhum motivo epistemológico relevante para se considerar que as teorias atuais estejam ao abrigo do mesmo destino no futuro imediato ou distante, e nem que os cientistas de hoje possuam algum privilégio epistêmico que os impeça de cometer erros como aqueles cometidos por seus antecessores. 

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** Na forma lógica de um condicional: Se P, então Q/ Q é verdadeiro/ então P é verdadeiro. Como P é uma mera hipótese, não sabemos se é verdadeiro ou falso. A verdade de Q, no entanto, não garante a verdade de P. Por exemplo, se o preço do arroz for diminuído, então haverá mais compra de arroz pelos consumidores/ Há mais compra de arroz pelos consumidores/ então o preço foi diminuído. Nada indica que necessariamente o preço abaixou só porque a venda aumentou. Outro fator pode ser o responsável, como a falta de outros produtos.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Maimônides, Criação e eternidade do mundo


"No princípio criou Deus o céu e a terra."

GÊNESIS, 1,1 *

"Com relação às provas de Aristóteles e de seus seguidores para a eternidade do mundo, elas são, de acordo com minha opinião, inconclusivas, e são sujeitas a fortes objeções, como explicarei adiante. Pretendo mostrar que a teoria da Criação, como exposta nas Escrituras, não contém nada que seja impossível, e que todos aqueles argumentos filosóficos que parecem refutar nossa visão contém pontos fracos que os tonam inconclusivos."

RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, "O Guia dos Perplexos", Livro II, capítulo XVI

No capítulo XIII do Livro II de sua obra mais importante, "O Guia dos Perplexos", o filósofo, teólogo e rabino cordobês medieval Rabbi Moisés ben Maimônides discute o candente problema da eternidade do mundo. A questão será de grande importância por todo o período da Antiguidade tardia, passando pela Idade Média até nossos dias por conta de sua aparente discordância com a doutrina da Criação ex nihilo, característica das três religiões abraâmicas. 

A Criação, segundo a Lei de Moisés, significa que o mundo, com tudo o que ele contém, inclusive o tempo, foi trazido da inexistência à existência por Deus. Isso implica dizer que Deus precede o mundo, existindo em um infinito espaço de tempo anterior ao ato da Criação. Mas é preciso esclarecer, Maimônides assevera, que não usa tempo em seu sentido real, pois o tempo é uma consequência da mudança, e foi criado junto com o mundo. O termo tempo deve ser entendido em um sentido análogo ou similar, não unívoco. Sendo o tempo algo criado, um acidente das coisas criadas, Deus não o produziu no princípio (be-reshit, בְּרֵאשִׁית)

O Professor Maurice-Ruben Hayoun, em seu livro "Maïmonide", explica que "Maimônides pretende mostrar que os primeiros versos do Gênese devem ser interpretados filosoficamente, sob pena de se cair necessariamente no erro. Assim, a própria expressão 'be-reshit' (=no princípio) é inadequada e militaria diretamente contra a Criação ex nihilio que ela pretende defender, se se devesse tomá-la em seu sentido óbvio. (...) Quando a Bíblia diz be-reshit (= no princípio), ela implica, se essa expressão fosse compreendida em seu sentido literal, que já existia alguma coisa, e ela nega por isso mesmo aquilo que queria provar." (p.64)

Se se admite a existência do tempo antes da Criação, cai-se no erro da eternidade do mundo. A tese aristotélica é justamente que o mundo sempre existiu e sempre existirá. Dado que o mundo físico é a esfera dos entes que mudam, que sofrem e que operam mudanças, e que a mudança tem como consequência o intervalo entre dois "agoras" (ou instantes), o que constitui o tempo, então o mundo da mudança é temporal. 

Ora, mundo e tempo são coetâneos, isto é, são inseparáveis. Seria algo sem sentido perguntar em qual momento do tempo o mundo veio à existência ou mesmo em qual momento futuro cessará de existir, pois a noção mesma de tempo só possui significado no mundo. Consequentemente, nunca houve um tempo no qual o mundo não tivesse existência, e nunca haverá um tempo no qual o mundo não terá existência. Nesse sentido, é possível afirmar a eternidade do mundo, isto é, a sua perpétua existência em qualquer tempo do passado, do presente e do futuro.

Maimônides rejeita a tese de Aristóteles acerca da eternidade do mundo por dois motivos. O primeiro é de ordem argumentativa: o filósofo não teria conseguido fornecer provas de sua posição. O segundo é de ordem religiosa e se baseia no fato de que a a profecia bíblica vai além daquilo que é possível ao homem conquistar argumentativamente por meio de suas faculdades racionais naturais. Portanto, Maimônides aceita a Criação pela autoridade divina da Torá. Mas isso não o impedirá de mostrar as falhas no raciocínio aristotélico acerca da eternidade do mundo.

O argumento de Maimônides inicia com uma premissa engenhosa: não é possível inferir da natureza de algo já plenamente desenvolvido como eram suas condições no início de seu processo de desenvolvimento. Um homem adulto tem características muito diversas daquelas que tinha o mesmo homem quando era um bebê. A árvore é bem diferente da semente que um dia foi. Se não tivéssemos testemunhado o processo inteiro de desenvolvimento, do início ao fim, não poderíamos saber, conhecendo somente o fim, como teria sido seu início.

Os aristotélicos podem assumir, pela consideração de como o mundo é atualmente, que as suas condições iniciais eram as mesmas que hoje imperam. Ninguém nega as condições do mundo atual, mas isso não assegura que elas tenham sido as mesmas no início. Por isso, nada impede que as coisas, quaisquer que sejam as suas características atuais, tenham sido tiradas por Deus da absoluta inexistência no momento mesmo de sua produção.

Em outros termos, Maimônides quer mostrar que uma coisa é explicar como os seres deste mundo são produzidos ordinariamente, outra coisa completamente diferente é explicar como o próprio mundo foi produzido. Não é necessário logicamente que os modos de produção dos seres no interior do mundo sirvam como explicação adequada para o mundo considerado como um Todo. Haveria aqui uma falácia da composição, na qual se julga que necessariamente o Todo terá as propriedades das suas partes.

Aristóteles julgava que a matéria prima (pura potencialidade) não poderia ser produzida, sendo portanto eterna. Maimônides concorda que a matéria prima não pode ser produzida como as coisas são produzidas no mundo. Afinal, ela é a base da produção dos entes deste mundo. Mas isso não impede que ela tenha sido criada por Deus diretamente do nada. Maimônides emprega o mesmo raciocínio anteriormente exposto: a matéria, tal como ela existe, tem determinadas características, mas daí não se pode inferir que essas características fossem as mesmas ou valham igualmente para a sua produção ab origine.

O mesmo se dá com a mudança. Aristóteles afirma que a mudança não pode ser produzida ou destruída, pois a produção da mudança já seria uma mudança, assim como a destruição da mudança já seria uma mudança. Maimônides concorda que o mundo é desse jeito, e que a mudança no interior do mundo tem essas características. Ocorre que isso não acarreta, diz Maimônides, que a produção da mudança em termos absolutos, isto é, que o modo como Deus cria a mudança na sua totalidade seja idêntico ao modo como a mudança se dá no interior do mundo. 

O Rabbi admite que nenhum desses argumentos pode provar a Criação desde o nada. A sua intenção é só e tão somente estabelecer a admissibilidade da Criação pela análise da fraqueza das objeções dos defensores da eternidade do mundo. A estratégia argumentativa não é mostrar demonstrativamente que Deus tudo criou a partir do nada. Basta mostrar que os argumentos contrários são fracos, e que, portanto, nada há que impeça a admissão da possibilidade da Criação ex nihilo.

Um desses argumentos é o de que a Criação implicaria uma mudança em Deus. Se o mundo teve um início, então houve um tempo em que Deus nada fazia, e, posteriormente, um momento a partir do qual Deus dedicou-se a criar as coisas. A própria passagem da inatividade à atividade constituiria uma mudança no seio da divindade. Isso é impossível, pois a mudança é algo que implica temporalidade, e Deus é eterno justamente porque é imutável. A Criação não preserva a eternidade e a imutabilidade divinas.

Maimônides argumenta, novamente de modo engenhoso, que essa tese seria verdadeira se ela se referisse a entes deste mundo, compostos de Forma e matéria. De fato, se algo não age em um determinado momento e passa a agir em outro momento posterior, a passagem da inatividade à atividade só acontece como uma mudança na coisa que passa a agir. Porém, como foi determinado antes, uma coisa é o mundo tal como ele é depois de trazido à realidade, outra é como o mundo foi trazido à realidade. 

Será que a Criação realmente implica mudança em Deus do mesmo modo que nas coisas deste mundo uma ação posterior à inação implica mudança? A resposta, segundo Maimônides, é negativa. Deus não é alguma das coisas deste mundo que contém em si sempre um conjunto de potencialidades que podem ou não ser efetivadas. Portanto, Deus não possui potencialidades no sentido de possibilidades ainda por realizar. 

Todavia, os próprios aristotélicos, seguindo o De Anima de Aristóteles, admitem que no caso do Intelecto Ativo (pelo qual inteligimos os inteligíveis), ele está sempre em exercício. Se não inteligimos o tempo todo é porque nós nem sempre temos preparados os elementos necessários à intelecção. Por essa razão, pode-se dizer que o Intelecto Ativo nem sempre age, e, ao mesmo tempo, podemos dizer que o Intelecto Ativo age sempre. A razão disso reside no fato de que não é o Intelecto Ativo que age agora e depois cessa de agir, mas sim as condições externas a ele que só são adequadas de tempos em tempos.

Ilustrando para melhor compreensão, a bomba de água que fornece a água da torneira está sempre funcionando. Entretanto, a água só jorra quando a torneira é aberta. Em um sentido, a bomba está sempre em ação, e em outro sentido, ela só age quando a torneira é aberta. Não se pode dizer, contudo, que a bomba só age exclusivamente quando a torneira é aberta e a água jorra. Analogamente, o Intelecto Ativo sempre está em exercício, embora nem sempre tenhamos as condições necessárias para que esse exercício surta efeito.

Maimônides aplica o mesmo raciocínio a Deus, ou seja, a Criação não implica necessariamente qualquer mudança em Deus, assim como as condições necessárias para a intelecção não mudam o caráter de perpétuo exercício do Intelecto Ativo. Com isso, ao menos, consegue-se afastar a objeção de que a Criação seria uma mudança em Deus. O rabino é claro, porém, com relação àquilo que se pode inferir de seu argumento. Tudo o que se pode afirmar é que, qualquer que seja a razão pela qual o Intelecto Ativo não age sempre, não é necessariamente verdade que ele tenha passado por alguma mudança.

Aplicando-se o argumento a Deus, não é possível dizer que Deus age em um tempo e não em outro, de modo semelhante ao Intelecto Ativo, que age intermitentemente. Seria falacioso inferir isso do argumento. O que pode justamente ser inferido é que, não sendo um objeto corporal ou uma força em um corpo, o Intelecto Ativo age intermitentemente, e, no entanto, qualquer que seja a causa dessa intermitência, não dizemos que o Intelecto Ativo passou da potência ao ato. Analogamente, Deus, não sendo corpo ou poder em um corpo, qualquer que seja a razão pela qual Ele não age sempre ou a razão pela qual a Criação aconteça em determinado tempo e não em outro, nada disso implica necessariamente qualquer mudança no próprio Deus. 

Alguns dirão que, se a Criação não se dá no momento mesmo da vontade divina, então algo mudou em Deus ou Ele foi impedido por algo externo de realizar a Sua vontade. Maimônides responde a esse argumento apontando para o fato e que essa descrição cabe para os seres finitos e corporais, não para um ser imaterial como Deus. Nada pode impedir Deus de criar o que desejar no momento em que Ele desejar, sendo Sua vontade eterna e imutável. E vale aqui o mesmo argumento contra a mudança em Deus visto acima: o fato de que a Criação aconteça em algum momento, não implica logicamente nenhuma passagem de potência a ato em Deus.

Outro argumento apresentado contra a Criação é o de que se Deus quer que algo tenha existência, esse algo existe imediata e necessariamente. Tudo o que há se deve à sabedoria de Deus que, por seu turno, é eterna como Deus é eterno. Se a causa do mundo é a sabedoria eterna de Deus, então o mundo deveria ele também ser eterno. Maimônides considera o argumento fraco. A sabedoria de Deus é o próprio Deus, portanto tão incompreensível quanto Deus. Somos completamente ignorantes quanto aos modos e às vias divinas. Nada nos permite saber por qual razão Deus agiu antes ou depois.

Os aristotélicos consideram, fundamentalmente, que o mundo é um efeito necessário e inseparável de Deus. Segue-se daí que o mundo não é resultado de escolha, desígnio ou desejo. Ao fim e ao cabo, o mundo é um efeito que se segue necessariamente da existência de sua causa. Contrariando Aristóteles, Maimônides afirma que as coisas são produto do desígnio, não somente da necessidade. E aquele que é a fonte do desígnio pode mudá-lo, embora nem todo desígnio seja mutável (há o impossível, o que não pode ser mudado).

Aristóteles tem como certeza que tudo neste mundo é resultado da natureza intrínseca às coisas, e não da escolha ou do arbítrio livre (não se está referindo aqui aos atos do ser humano, mas somente das coisas puramente materiais). Toda a sua Física é construída para demonstrar essa tese. No que tange ao mundo sublunar, isto é, o mundo abaixo da esfera da Lua que é composto pelos quatro elementos materiais (água, terra, fogo e ar), Maimônides considera que as explicações do filósofo grego são verdadeiras, ilustrando corretamente as relações de causa e efeito.

Entretanto, quando Aristóteles se volta para o mundo supralunar, o mundo dos corpos celestes e das suas esferas (constituído de matéria diferente, o éter), ele não consegue o mesmo sucesso em mostrar as relações de causa e efeito. Em alguns casos, as esferas celestes movem-se em maior velocidade com relação às outras, e em outros casos a velocidade é a mesma. Nada disso é explicado a contento somente pelo apelo às naturezas dos corpos celestes. 

Ao que parece, Aristóteles tinha consciência desse defeito, tanto que afirma que vai explicar esses problemas na medida de sua "capacidade, sabedoria e opinião". Maimônides refere-se aqui aos problemas envolvendo a velocidade e a direção do movimento circular perpétuo das esferas celestes, nas quais estavam localizados os planetas. Para dar conta do movimento aparente desses planetas, Aristóteles sentiu-se obrigado a atribuir velocidades diferentes a esses corpos celestes, sem que razões físicas consistentes fossem apresentadas.

Todo esse problema pode ser resolvido facilmente pelo desígnio divino que, por sua livre sabedoria, ordenou as coisas da maneira em que estão ordenadas. O que não significa que saibamos a razão pela qual Deus organizou as coisas do modo como o fez. Por exemplo, como explicar o porquê das estrelas permanecerem estacionárias e as esferas dos planetas estarem sempre em movimento? Este e outros problemas não são solucionados por apelo à necessidade de pretensas leis permanentes da natureza. 

A resposta é que essas coisas são resultado do desígnio divino cujo propósito é impossível para nós desvendar. Sabemos, no entanto, que nada é feito sem razão, por acaso ou em vão. Então, quaisquer que sejam os motivos de Deus, essas coisas estão ordenadas segundo algum propósito, e não são o resultado da necessidade das naturezas intrínsecas das coisas. As diferentes velocidades e direções das esferas e a fixidez das estrelas são os melhores argumentos a favor do desígnio divino, segundo Maimônides.

Quando Maimônides nega que o mundo não é um "resultado necessário" da causa eficiente (Deus), ele quer dizer que não se trata do caso de algo que não pode ser separado de sua causa. As porções do mundo são cada uma delas o resultado necessário de sua causa anterior, subindo na escala dos seres até à Causa Primeira. Maimônides concorda com Aristóteles, fazendo a ressalva de que essa Causa Primeira, Deus, "criou o universo inteiro com desígnio e vontade, de tal modo que o Universo que não tinha existência anterior foi trazido à existência".

O rabino cordobês quer preservar a liberdade criativa de Deus. O mundo não pode ser um efeito necessário de Deus como o calor é um efeito necessário do fogo (onde não há nenhuma ação deliberada na criação de seu efeito). Uma vez que alguém acenda uma chama, o calor advirá como consequência necessária e inseparável do fogo. Não existe desígnio, decisão ou vontade do fogo em criar o calor. Simplesmente este se segue naturalmente daquele. Não pode ser esta a relação causal que se estabelece entre Deus e o mundo, dado que Deus não é comparável às coisas deste mundo.

Se no interior do universo os efeitos são resultados necessários de suas causas, o mesmo não pode ser dito do universo (tomado na sua totalidade) com relação a Deus. Maimônides aponta para a absoluta diferença entre aquilo que há no mundo e o que é Deus. É óbvio que podemos subir dos efeitos às causas, chegando assim a Deus como Causa Primeira de todas as coisas. Permanece válido o raciocínio que mostra Deus como a causa do mundo. O que é problemático é conceber que a causalidade exercida por Deus é do mesmo gênero que a causalidade exercida pelas coisas no interior do mundo já existente.

Recai sobre Aristóteles conclusão severa de Maimônides segundo a qual o grego estava certo em tudo o que referia ao mundo sublunar, mas no tocante ao mundo supralunar suas doutrinas eram, em sua maioria, "mera imaginação e opinião".  Deus possui perfeito conhecimento do que vai nos céus. O homem só conhece aquilo que está em seu próprio mundo sublunar. Devemos nos ater àquilo que está sob nosso alcance como seres humanos, e não tentar perscrutar mundo celeste que está tão longe de nós.

Ademais, a razão pela qual rejeita a eternidade do mundo se encontra em dois motivos, assevera Maimônides: a primeira é que se há uma prova racional que implique em uma contradição patente com as Escrituras, estas devem ser interpretadas de modo diverso do que têm sido. O problema é que a eternidade do mundo, embora esteja em contradição com o relato mosaico, não oferece razões probantes para a sua adoção. Sendo assim, o sentido literal da Torá deve ser mantido. 

O segundo motivo é que a ideia de que o mundo é eterno, e resultado da causalidade necessária de Deus, envolve a impossibilidade de qualquer mudança nas leis naturais fixas, expulsando de vez qualquer ação sobrenatural como os milagres e os sinais, pilares da fé. Com a Criação, milagres são perfeitamente possíveis. Afirmar com Aristóteles que tudo se dá por meios naturais seria negar a própria Torá. Deus criou e mantém as coisas deste mundo com um determinado comportamento natural invariável. Somente no milagre, de forma passageira, as coisas individuais podem ter suas propriedades alteradas. 

Maimônides logo tem o cuidado de esclarecer que nem tudo no relato da Criação deve ser interpretado literalmente, sob pena de criar blasfêmias e concepções errôneas de Deus. É mister interpretar as Escrituras com o conhecimento intelectual e demonstrativo. Por exemplo, na Torá, quando se diz no princípio, é preciso distinguir dois sentidos diferentes: primeiro e princípio. Aquilo que é princípio de algo é coetâneo com aquilo do qual é princípio, como o coração é o princípio do ser vivo. O coração não vem antes do ser vivo, mas, ao contrário, o ser vivo só pode viver justamente porque o coração está nele ao mesmo tempo em que o ser vivo vive.

O primeiro tem um sentido particular daquilo que vem temporalmente antes de algo, sem que seja a causa desse algo. Tal qual o primeiro morador de uma casa não implica qualquer relação causal com quem vier, se vier, a habitar a casa. O mundo não foi criado por nada anterior a ele, como se princípio implicasse qualquer coisa já existente. O tempo, como dito anteriormente, foi criado na Criação. A verdadeira explicação do verso bíblico é "na criação do princípio, Deus criou os seres acima e os seres abaixo." 

Maimônides resume em seguida os fundamentos da fé judaica: Deus criou tudo do nada (não havia nada anterior ao mundo), e o tempo não existiu previamente (foi criado), pois depende (da criação) do movimento das esferas celestes.

Alguns comentários podem ser feitos a esse texto reconhecidamente difícil do Rabbi Maimônides. O primeiro deles é que parece haver uma ambiguidade na argumentação apresentada com relação à diferença entre a Criação e a eternidade do mundo. Se o rabino admite claramente como o faz que o tempo foi criado com o mundo, qual a real diferença entre as duas teorias? Eliminado o tempo, a Criação seria um "evento" atemporal, isto é, nunca houve um tempo anterior à criação do tempo. 

Assim, o tempo seria necessariamente uma dimensão exclusivamente mundana, um aspecto inelutavelmente ligado ao próprio mundo. Dado que o mundo teria sido criado, não faria mais nenhum sentido em falar de tempo a não ser para se referir a eventos dentro do mundo. Dizer que o tempo foi criado com o mundo (porque, de facto, são realidades inseparáveis) é tornar a Criação não um evento com um antes e um depois (o que implicaria tempo). A Criação teria que ser reinterpretada em termos não mais de um acontecimento, mas sim de uma dependência ontológica do mundo com relação a Deus.

Não houve uma Criação na qual o mundo antes não existia e passou a existir,. O que está expresso na Criação não é um evento temporal, mas tão somente a afirmação de que o mundo (e tudo que há nele) não existe a não ser pelo poder causal de Deus. Nesse caso, a Criação e a eternidade do mundo se equivalem, pois para ambos o tempo seria necessariamente uma realidade do mundo, não cabendo nenhum momento no qual o mundo pudesse não ter existido (preservando-se aqui a sua dependência de Deus em ambos os casos). 

Os argumentos de Maimônides contra as objeções dos aristotélicos acerca da Criação não parecem ajudar muito a sua causa. Sabemos que o rabino aceita por fé a doutrina judaica da Criação ex nihilo, e que seus argumentos contra Aristóteles não têm a intenção de refutar a eternidade do mundo. O que ele quer é mostrar que os argumentos de Aristóteles a favor da eternidade do mundo são inconclusivos e que as objeções à Criação são fracas.

Sem julgar a afirmação de que os argumentos aristotélicos não são probantes, as respostas de Maimônides às objeções aristotélicas não parecem ser muito convincentes. O argumento de que Deus, como o Intelecto Ativo, pode ser a um só tempo sempre efetivo e causar em um tempo e não em outo esbarra no fato de que são condições exteriores que impedem ou limitam a atividade do Intelecto Ativo. Que forças externas podem haver que impeçam a ação divina? Qual seria o obstáculo diante do qual a efetividade perpétua de Deus seria limitada?

Engenhoso que seja, o argumento não parece realizar aquilo que o rabino quer: mostrar que não há contradição em que Deus seja sempre ativo e mesmo assim aja só em momentos determinados. Permanece o problema da mudança em Deus. Se houve um tempo em que Deus não agiu, então houve mudança entre o momento em que não agia e o momento em que passou a agir. 

Todavia, o argumento engenhoso da diferença entre a causalidade divina e a causalidade mundana é mais profundo. De fato, a causalidade divina não pode ser idêntica a das coisas deste mundo. Não parece ser possível falar do mundo como uma consequência necessária de Deus. Seria rebaixar Deus ao nível dos entes. Se há certamente alguma analogia entre a ação causal divina e ação causal das coisas deste mundo, isso não significa que Deus causa as coisas da mesma forma que as coisas causam umas à outras. Deus não é um ente entre outros entes.

As limitações das coisas não se aplicam a Deus, pois Ele é, por assim dizer, o princípio limitador de tudo, no sentido em que é Ele que impões às coisas os seus limites, circunscrições, configurações, essências, etc. Deus é o absolutamente livre, e como tal sua causalidade só pode ser pensada (ainda assim limitadamente, por conta de nossa compreensão limitada) como vontade livre e incontornável, sem que se possa sequer conceber quaisquer obstáculos entre a vontade e a sua realização. Tomada nesse sentido, a existência do mundo não é a realização de nenhuma necessidade ou constrangimento atuando sobre Deus. 

Não faz sentido perguntar sobre as razões do Princípio que é o fundamento das razões que o mundo exibe, comporta, e das quais é constituído.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Maimônides (oleniski.blogspot.com)

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* Em hebraico: בְּרֵאשִׁ֖ית בָּרָ֣א אֱלֹהִ֑ים אֵ֥ת הַשָּׁמַ֖יִם וְאֵ֥ת הָאָֽרֶץ:

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Huang Po, Prajñā e o Buddha


"É indispensável não sentir atração por qualquer coisa. Assim, quando virdes os Buddhas, com todas as suas marcas de perfeição, vindo ao vosso encontro, ou que tenhais toda sorte de visões agradáveis, que isso não vos entranhe em nenhum estado de espírito particular."

HUANG PO, Conversações

O mestre budista chinês Huang Po ensina a seu discípulo P'ei Sieou que o grande mestre indiano Bodhidharma, quando de sua vinda à China, transmitiu um só método: o Buddha com o Buddha. O método não é ensinável e o Buddha é inalcançável, pois ambos são o puro espíritoPrajñā, o conhecimento que ultrapassa o intelecto, a análise e o julgamento, é nosso espírito sem caracteres particulares.

Ainda que por só um instante, aquele que forma um julgamento sobre Saṃsāra já caiu no caminho infernal. Crer que há nascimento e extinção é sair da Via. Na verdade, nada nasce e nada sai. Sem essas crenças dualistas, não há mais desgosto ou atração pelo que quer que seja. Tudo é um só espírito, e é aí que começa o veículo do Buddha. As pessoas comuns experimentam todos os tipos de estados de espírito a reboque dos objetos. Mas se desejamos que não haja mais objetos, é necessário esquecer o próprio espírito, pois assim os objetos são vazios e o espírito se retira.

No caso em que não há o esquecimento do espírito, a mera expulsão dos objetos torna-os irremovíveis, e, em consequência, a confusão floresce. Aquele que é adepto de Prajñā não acredita que haja algo a se encontrar, pois a realidade única não é algo que se ganha na Iluminação. Cinco mil pessoas abandonaram o Buddha quando ele pregou o impensável. Foi para elas que ele afirmou não haver nada encontrado na Iluminação. A única coisa que importa é a coincidência silenciosa. 

Ao chegar à sua última hora, o homem comum não tem mais do que contemplar a total vacuidade (śūnyatā) dos cinco agregados, a ausência de ser dos quatro elementos, para ver seu espírito verdadeiro, sem início ou fim, sem características, de cuja essência não nos aproximamos pelo nascimento ou nos afastamos pela morte, absolutamente puro, perfeitamente pacífico, e que é uno com os objetos da talidade. Ser capaz de de alcançar diretamente a compreensão instantânea é desfazer os liames dos três tempos, o "homem que transcende o tempo".

Huang Po, mais uma vez, ensina que não há método de Iluminação. Não se busca o Buddha a não ser com o Buddha, e que, por estranho que possa parecer, o Buddha é inalcançável. Para a mentalidade moderna, que se move somente no nível do discurso sobre o fenomênico, as palavras de Huang Po não são mais do que contrassenso. Não há método, mas o método é o Buddha, que por sua vez é inalcançável. Não se trata aqui de vão gosto pelo paradoxo ou de uma simples negação do princípio lógico de não-contradição. 

O significado desse discurso aparentemente sem sentido se encontra no nível de um fundamento abrangente e transcendente que a tudo abarca sem nada negar. Enquanto permanecemos no mundo fenomênico, no mundo dos entes, daquilo que é limitado e que depende de todo o resto para se manter na existência, só encontramos o que é limitado e perecível. Sendo parte desta realidade, nenhum método pode ser a Iluminação. Somente o Buddha pode alcançar o Buddha. Não há medida de comparação entre o limitado e o ilimitado, entre Saṃsāra e Nirvāṇa.

É impossível buscar o fundamento dos entes enquanto se olha para os entes. Procurar o Buddha entre as coisas do mundo fenomênico é torná-lo inalcançável. Ele não é isto ou aquilo. Manter-se entre as coisas é exilar o Buddha, é não enxergar que ele é o espírito puro que transcende a todas as limitações e condicionamentos. Caminhar entre as coisas para chegar ao Buddha é como querer arrancar a si mesmo de um buraco puxando os próprios cabelos. 

Prajñā é o espírito puro sem caracteres, ou seja, sem isto ou aquilo. O desejo mantém nossos olhos fixos nos objetos, e julgamos as coisas a partir de seu agrado ou de seu desagrado. Amamos isto e rejeitamos aquilo. Enxergamos tudo em termos de coisas que serão julgadas favoráveis ou desfavoráveis, prazerosas ou dolorosas, atraentes ou repugnantes. A mente se mantém presa a isto ou àquilo, dentro do dualismo que é característico daquilo que tem limites e condicionamentos.

Porém, nada há que tenha nascido ou perecido. Só há o espírito puro sem distinções, o fundo indizível de onde nada saiu jamais e nada sairá. A ideia de ponto de vista só faz sentido no mundo dos entes, onde uma coisa não é a outra. A partir de nosso ponto de vista, tudo é limitado, nasce e perece. Mas a limitação só existe para o limitado. Um só pensamento de distinção entre as coisas e o espírito puro desaparece mergulhado nas vagas incessantes dos seres.

O fundamento só aparece quando aquilo que ele fundamenta desaparece. Se as coisas somem completamente, se elas são reconduzidas à sua fonte última, se elas são engolidas pelo Absoluto que as abarca e as transcende infinitamente, nada resta a ser desejado, pois tudo está eternamente no espírito puro para além das três medidas do tempo. Mas não ganhamos nada com isso no sentido de que não nos apossamos de algum objeto, ente ou estado mental. Ganhar algo seria permanecer no mundo dualista dos fenômenos, no âmbito do ser e do não-ser.

Lá onde as coisas revelam a sua vacuidade, isto é, a sua originação dependente, é que resplandece Prajñā. Toda e cada coisa deste mundo depende de todas as outras para existir. O menor grão de areia, para que ele exista e permaneça existindo, exige que todo o resto da realidade esteja presente, pois uma coisa depende sempre de outras, e estas de outras, assim por diante. Tudo tende ao nada, e é nada em certo sentido. Os entes são desprovidos de real substancialidade, não possuem em si mesmos a verdadeira capacidade de existirem independentes uns dos outros.

O grande mestre budista Nagarjuna não hesita em dizer que as coisas são vazio (Śūnya) ao apontar para a instabilidade ou indigência ontológica dos seres. Nada há a ganhar com a Iluminação, no sentido de obter isto ou aquilo. Na sua absoluta não-dualidade, Prajñā é justamente o abandono de todas as coisas e de todas as limitações e condicionamentos. O iluminado perde todas as coisas, e, por isso mesmo, ganha tudo. O espírito individual, prenhe de desejos e de gostos, deve ser esquecido para que a realidade se apresente em sua talidade, isto é, em sua verdade última tal como a conhece o Buddha.

A única coisa que importa é a coincidência silenciosa. Quando todas as coisas, incluindo nosso composto psicofísico, coincidem com seu fundamento derradeiro, nada mais permanece, restando o profundo silêncio de Prajñā indizível. É vão tentar imaginar ou mesmo entender o que é Prajñā como se fosse algo, e, portanto, descritível em termos das coisas que conhecemos. Por isso Huang Po afirma que o Buddha é inalcançável. 

Comparar é colocar as coisas em pares, estabelecer relações entre dois ou mais entes. O espírito puro é incomparável, não é um ente entre outros entes. Seria um erro fatal pensar que Huang Po está opondo este mundo a um outro mundo. Qualquer outro mundo que haja ou possa haver será ainda um mundo, um conjunto organizado de entes limitados. O espírito puro não é um mundo alternativo a este em que vivemos ou a qualquer outro no qual vivemos antes ou poderemos viver depois. É justamente por isso que nada se ganha com a Iluminação, nada há de mundano na pura natureza Búdica.

Não há para onde ir, nem aonde chegar. Tudo já está aqui mesmo, pois Saṃsāra é Nirvāṇa e vice-versa. Mas não fora dito acima que não há medida de comparação entre os dois? Sim, de fato, são incomparáveis na medida em que não são realidades dualisticamente opostas. Não são duas realidades em um mesmo nível, o que permitiria uma comparação por semelhança, por identidade ou por oposição. Ao contrário, Nirvāṇa compreende em si Saṃsāra, mas Saṃsāra não compreende em si Nirvāṇa. Por isso, no Absoluto, só há Nirvāṇa, mas no relativo, e só para o relativo, há Saṃsāra. 

Na sua raiz última tudo é Nirvāṇa, e para compreender isso não é necessário sair de Saṃsāra como quem parte para um outro lugar. Nenhum ente, e nem a totalidade dos entes, pode se constituir em obstáculo real para atingir o Nirvāṇa. Nesse sentido, o Nirvāṇa é aqui em Saṃsāra. O Buddha é aquele que compreendeu que não há dualidade entre os dois porque Nirvāṇa e Saṃsāra não são duas realidades opostas no mesmo nível. 

Os fenômenos manifestam (prādurbhāva) o espírito puro, mas não possuem existência substancial absolutamente independente. Sua substancialidade é apenas relativa, dado que todos os entes dependem de todos os outros para existirem, e que, mesmo assim, todos são passageiros. A impermanência, tema central do budismo, manifesta que os fenômenos não possuem neles mesmos suas existências a não ser de modo relativo, condicionado e derivativo. O que permanece, o incondicionado, Nirvāṇa, portanto, não pode ser algo, algum ente, nem mesmo um mundo, um conjunto de entes

É também por isso que só se pode referir ao Nirvāṇa em termos negativos (não é isso, não é aquilo). O espírito puro, o Buddha, é indizível, incompreensível, informe e ilimitado. Não é coisa, nem ente, e nem algo que se possa conquistar ou se apossar por qualquer método. Só se conhece o Buddha pelo próprio Buddha. O Buddha histórico, enquanto aqui esteve, era o espírito puro do Buddha, indizível e incondicionado, e, ao mesmo tempo, o Buddha Sakyamuni, o sábio príncipe kṣatriya, de nome Siddhartha Gautama, que a tudo renunciou na busca pela Iluminação. 

Não há diferença porque não há dois entes para se instalar a diferenciação. Há o mundo fenomênico, no interior do qual se pode falar com sentido de diferença e de dualidade, e o espírito puro, que a tudo compreende transcendendo a tudo infinitamente. É o apego aos entes que não nos permite enxergar o Buddha manifestando-se em todos os fenômenos como lótus florescendo infinitamente.

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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Aristóteles, Física e os princípios científicos

"Quando os objetos de estudo, em qualquer área, possuem princípios, condições ou elementos, é por meio da intimidade com eles que o conhecimento, isto é, o conhecimento científico, é alcançado. Pois não consideramos que conhecemos algo até que estejamos cientes de suas condições primárias ou primeiros princípios, e tenhamos conduzido nossa análise tão longe até seus mais simples elementos. Obviamente, então, na ciência da natureza, como em outros ramos de estudo, nossa primeira tarefa será tentar determinar aquilo o que se relaciona a seus princípios."

ARISTÓTELES, Física, Livro I, 184a [10] a [15] (tradução minha)

No início do primeiro livro da Física, Aristóteles assevera que em qualquer investigação, seja qual for o seu objeto, é necessário buscar seus princípios, condições ou elementos, pois é justamente por meio do conhecimento dos princípios que se pode alcançar legítimo saber científico (epistḗmē, ἐπιστήμη) do objeto. Não pensamos que conhecemos algo a não ser se estamos a par de suas condições primárias ou de seus primeiros princípios, e se não conduzimos a nossa análise até seus mais simples elementos. Portanto, a ciência da natureza não será diferente no que também buscará determinar, como sua primeira tarefa, aquilo que se relaciona aos princípios.

Aristóteles mostra aqui que a investigação científica busca sempre os fundamentos e os princípios daquilo que está sob seu escrutínio. Explicar é mostrar aqueles elementos que, em conjunto, tornam um ente o que ele é, e dão conta de suas características essenciais. Obviamente, os princípios, as causas ou os elementos de cada um dos objetos da realidade não serão todos do mesmo tipo: cada espécie da realidade terá seus princípios próprios. Os princípios de um ente natural, um peixe, por exemplo, não serão rigorosamente os mesmos de um objeto artificial, como os de uma cadeira.

Investigar os princípios das coisas é buscar a sua inteligibilidade, ou seja, é mostrar que eles são compreensíveis a partir de certos elementos que não são, por sua vez, compreendidos a partir de outros a não ser de eles mesmos. Quando encontramos, por análise (divisão), os elementos dos objetos geométricos, como fez Euclides, encontramos os constituintes últimos de todo e qualquer objeto geométrico. Não há para onde “descer” mais na cadeia da realidade. A inteligibilidade deriva do fundamento da coisa que está sendo analisada. Ocorre que, como Aristóteles observa, essa inteligibilidade dos objetos não é dada imediatamente. Não pomos os olhos nas coisas e já as entendemos como se elas fossem evidentes.

A maneira mais natural de se obter esses princípios é iniciando por aquilo que é mais cognoscível para nós, avançando até aquilo que é mais cognoscível em si mesmo. O fato de uma coisa ser mais cognoscível para nós não implica que ela seja cognoscível em sentido pleno. O procedimento deverá, então, partir daquilo que para nós é mais acessível, embora em si mesmo seja mais obscuro, na direção daquilo que em si mesmo é mais inteligível. Para nós, as coisas mais evidentes são aquelas que percebemos pelos sentidos. No entanto, aquilo que se apresenta aos nossos sentidos ainda não é compreendido cientificamente. 

Ao contrário, o que cai sob nossa observação, em nossa experiência cotidiana, é um conjunto variabilíssimo de objetos sobre os quais não conhecemos nada ou muito pouco. Em outras palavras, as coisas primeiro se apresentam como entes sobre os quais pouco ou nada sabemos, como mistérios a serem revelados, como opacidades a serem esclarecidas. Esses entes, como dissemos, são todos cujos elementos não estão apresentados de modo evidente. Dessa forma, temos de passar daquilo que é mais acessível a nós ao que é mais inteligível em si, que são os princípios e causas dessas coisas que nos são apresentadas sensivelmente. Partindo desse todo que constatamos pelos sentidos, o investigador científico deve analisá-lo até encontrar os princípios e fundamentos que o explicam totalmente.

Por causa disso, o conhecimento científico não é um empreendimento fácil. Conhecer cientificamente é discernir a estrutura inteligível de um objeto dado para além do que o objeto mostra na sua apresentação aos sentidos. Portanto, para Aristóteles, toda ciência é abstrata: o que interessa não é o objeto dado aqui e agora na sua concretude e singularidade, mas sim a estrutura inteligível que explica e fundamenta todos os objetos do mesmo tipo.

Aristóteles supõe que os entes deste mundo sejam inteligíveis, que eles possam ser compreensíveis e explicáveis. Para tanto, é óbvio, embora o Estagirita não o diga nessa passagem inicial, que os princípios, os elementos ou as causas não podem ser infinitos. Afirmar que há infinitas causas para um objeto é o mesmo que afirmar que ele é ininteligível. Se não é possível alcançar algum (ou alguns) fundamento (s) além do (s) qual (quais) nada há o que buscar, qualquer explicação será impossível. Se a cada fundamento P houver um fundamento P1 que funda P, e um fundamento P2 que funda P1, um P3 que funda P2, um P4 que funda P3, assim ad infinitum, então realmente nunca haverá um ponto onde parar a explicação, o que significa que não há e nem pode haver explicação.

Quanto aos princípios, eles podem ser (1) um somente, ou (2) mais de um. Se for um somente há duas possibilidades: que ele seja imóvel, como querem os eleatas, ou que sejam móveis, como querem os físicos. Por outro lado, se os princípios forem mais de um, eles podem ser finitos ou infinitos. Essa discussão é semelhante às investigações empreendidas por aqueles que se perguntam sobre o número de existentes na realidade. Eles discutem se há um só ente ou vários, e sendo vários, se são finitos ou infinitos. Aristóteles observa que essa discussão sobre os existentes não é útil aos físicos. 

Isso porque não faz sentido para o físico questionar o próprio objeto de sua ciência. Se houver somente um ser no mundo, como querem os eleatas, não haverá mudança e, consequentemente, não haverá entes que mudam, que são o objeto de estudo precípuo da Física. Um geômetra não pode negar os princípios da Geometria. Isto é, cada ciência tem seus princípios próprios e compartilha certos princípios muito gerais com todas as outras. Uma ciência não pode pôr seus princípios em questão sem ao mesmo tempo destruir suas bases. 

É por essa razão que um físico não tem a obrigação de discutir com alguém que não conhece ou não reconhece a validade dos princípios de sua ciência. Via de regra, como dirão os medievais, não se discute com quem nega os princípios (contra negantem principia non est disputandum). Debater se só há um ser na realidade é como discutir um argumento defendido meramente por espírito de contenda, sem seriedade, e que é obviamente absurdo por suas consequências.

Os físicos, afirma Aristóteles, enquanto praticantes da ciência física, não podem negar o fato de que no mundo todas as coisas, ou quase todas, estão em mudança. Ademais, o homem de ciência não tem a obrigação de responder a todas as dificuldades que possam ser concebidas, mas tão somente aquelas que são derivadas falsamente dos princípios. Cada ciência possui princípios próprios que são evidentes dentro de seu âmbito de investigação. Assim como há também princípios que são válidos e evidentes não só para esta ou aquela ciência particular, mas para toda e qualquer ciência (o princípio de não-contradição, por exemplo).

Para o físico, a existência da mudança é evidente, é um dado indubitável dos sentidos. Não se trata de um dogma, de uma pressuposição ou de uma mera hipótese. Trata-se de uma verdade evidente haurida diretamente pelos sentidos, nossa fonte primária de conhecimento. Mais ainda, a mudança é o objeto mesmo de investigação da física. Negar a mudança é negar a física como ciência. 

Há, então, nesse ponto, uma concordância profunda entre a metodologia científica de Aristóteles segundo a qual nosso conhecimento se inicia nos sentidos, o que é mais evidente para nós, e a condição de possibilidade da ciência física, a evidência dos sentidos. Só é possível a física justamente porque nosso conhecimento inicia nos sentidos e não pode estar em contradição com eles. Qualquer raciocínio abstrato, por mais perfeito que aparente ser, não pode contradizer frontalmente o que os sentidos nos dizem diretamente pela experiência.

Compreende-se desse modo a razão pela qual Aristóteles considera que o físico não necessita responder aos argumentos contra o movimento engendrados pelos eleatas. Se Parmênides afirma que não há mudança porque o ser não pode vir do não-ser, há algo de errado nas premissas ou na interpretação das premissas desse raciocínio, e nunca na evidência direta e insofismável da experiência sensível. Sabemos com toda certeza que uma flecha lançada de um ponto A a um ponto B se desloca inexoravelmente para seu alvo a despeito de todos os raciocínios sutis de Zenão que implicam que a flecha jamais sai de seu ponto de partida porque ela tem que atravessar sempre a metade de qualquer distância, por menor que essa distância seja. 

Não somente tudo a nossa volta nega a tese imobilista dos eleatas, até mesmo a nossa experiência interna milita decisivamente contra a sua absurdidade. Vemos e sentimos as coisas mudando, inclusive nosso corpo, mas interiormente sentimos a mudança pela passagem dos pensamentos em nossa mente. Negar a mudança é optar pela negação da realidade tal como a conhecemos, o que inclui negar a nossa própria existência nas suas duas dimensões, a externa e a interna.

Diante disso, o físico está completamente justificado, enquanto físico, a não perturbar-se com as alegações dos que negam a mudança. Contudo, Aristóteles admite que mesmo que as teses eleatas não tenham propriamente a Natureza como seu objeto, elas incidentalmente levantam algumas questões físicas, e, por isso, possuem algum interesse científico. O filósofo dedicará os parágrafos posteriores a responder a essas questões. 

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