"Quando os objetos de estudo, em qualquer área, possuem princípios, condições ou elementos, é por meio da intimidade com eles que o conhecimento, isto é, o conhecimento científico, é alcançado. Pois não consideramos que conhecemos algo até que estejamos cientes de suas condições primárias ou primeiros princípios, e tenhamos conduzido nossa análise tão longe até seus mais simples elementos. Obviamente, então, na ciência da natureza, como em outros ramos de estudo, nossa primeira tarefa será tentar determinar aquilo o que se relaciona a seus princípios."
ARISTÓTELES, Física, Livro I, 184a [10] a [15] (tradução minha)
No início do primeiro livro da Física, Aristóteles assevera que em qualquer investigação, seja qual for o seu objeto, é necessário buscar seus princípios, condições ou elementos, pois é justamente por meio do conhecimento dos princípios que se pode alcançar legítimo saber científico (epistḗmē, ἐπιστήμη) do objeto. Não pensamos que conhecemos algo a não ser se estamos a par de suas condições primárias ou de seus primeiros princípios, e se não conduzimos a nossa análise até seus mais simples elementos. Portanto, a ciência da natureza não será diferente no que também buscará determinar, como sua primeira tarefa, aquilo que se relaciona aos princípios.
Aristóteles mostra aqui que a investigação científica busca sempre os fundamentos e os princípios daquilo que está sob seu escrutínio. Explicar é mostrar aqueles elementos que, em conjunto, tornam um ente o que ele é, e dão conta de suas características essenciais. Obviamente, os princípios, as causas ou os elementos de cada um dos objetos da realidade não serão todos do mesmo tipo: cada espécie da realidade terá seus princípios próprios. Os princípios de um ente natural, um peixe, por exemplo, não serão rigorosamente os mesmos de um objeto artificial, como os de uma cadeira.
Investigar os princípios das coisas é buscar a sua inteligibilidade, ou seja, é mostrar que eles são compreensíveis a partir de certos elementos que não são, por sua vez, compreendidos a partir de outros a não ser de eles mesmos. Quando encontramos, por análise (divisão), os elementos dos objetos geométricos, como fez Euclides, encontramos os constituintes últimos de todo e qualquer objeto geométrico. Não há para onde “descer” mais na cadeia da realidade. A inteligibilidade deriva do fundamento da coisa que está sendo analisada. Ocorre que, como Aristóteles observa, essa inteligibilidade dos objetos não é dada imediatamente. Não pomos os olhos nas coisas e já as entendemos como se elas fossem evidentes.
A maneira mais natural de se obter esses princípios é iniciando por aquilo que é mais cognoscível para nós, avançando até aquilo que é mais cognoscível em si mesmo. O fato de uma coisa ser mais cognoscível para nós não implica que ela seja cognoscível em sentido pleno. O procedimento deverá, então, partir daquilo que para nós é mais acessível, embora em si mesmo seja mais obscuro, na direção daquilo que em si mesmo é mais inteligível. Para nós, as coisas mais evidentes são aquelas que percebemos pelos sentidos. No entanto, aquilo que se apresenta aos nossos sentidos ainda não é compreendido cientificamente.
Ao contrário, o que cai sob nossa observação, em nossa experiência cotidiana, é um conjunto variabilíssimo de objetos sobre os quais não conhecemos nada ou muito pouco. Em outras palavras, as coisas primeiro se apresentam como entes sobre os quais pouco ou nada sabemos, como mistérios a serem revelados, como opacidades a serem esclarecidas. Esses entes, como dissemos, são todos cujos elementos não estão apresentados de modo evidente. Dessa forma, temos de passar daquilo que é mais acessível a nós ao que é mais inteligível em si, que são os princípios e causas dessas coisas que nos são apresentadas sensivelmente. Partindo desse todo que constatamos pelos sentidos, o investigador científico deve analisá-lo até encontrar os princípios e fundamentos que o explicam totalmente.
Por causa disso, o conhecimento científico não é um empreendimento fácil. Conhecer cientificamente é discernir a estrutura inteligível de um objeto dado para além do que o objeto mostra na sua apresentação aos sentidos. Portanto, para Aristóteles, toda ciência é abstrata: o que interessa não é o objeto dado aqui e agora na sua concretude e singularidade, mas sim a estrutura inteligível que explica e fundamenta todos os objetos do mesmo tipo.
Aristóteles supõe que os entes deste mundo sejam inteligíveis, que eles possam ser compreensíveis e explicáveis. Para tanto, é óbvio, embora o Estagirita não o diga nessa passagem inicial, que os princípios, os elementos ou as causas não podem ser infinitos. Afirmar que há infinitas causas para um objeto é o mesmo que afirmar que ele é ininteligível. Se não é possível alcançar algum (ou alguns) fundamento (s) além do (s) qual (quais) nada há o que buscar, qualquer explicação será impossível. Se a cada fundamento P houver um fundamento P1 que funda P, e um fundamento P2 que funda P1, um P3 que funda P2, um P4 que funda P3, assim ad infinitum, então realmente nunca haverá um ponto onde parar a explicação, o que significa que não há e nem pode haver explicação.
Quanto aos princípios, eles podem ser (1) um somente, ou (2) mais de um. Se for um somente há duas possibilidades: que ele seja imóvel, como querem os eleatas, ou que sejam móveis, como querem os físicos. Por outro lado, se os princípios forem mais de um, eles podem ser finitos ou infinitos. Essa discussão é semelhante às investigações empreendidas por aqueles que se perguntam sobre o número de existentes na realidade. Eles discutem se há um só ente ou vários, e sendo vários, se são finitos ou infinitos. Aristóteles observa que essa discussão sobre os existentes não é útil aos físicos.
Isso porque não faz sentido para o físico questionar o próprio objeto de sua ciência. Se houver somente um ser no mundo, como querem os eleatas, não haverá mudança e, consequentemente, não haverá entes que mudam, que são o objeto de estudo precípuo da Física. Um geômetra não pode negar os princípios da Geometria. Isto é, cada ciência tem seus princípios próprios e compartilha certos princípios muito gerais com todas as outras. Uma ciência não pode pôr seus princípios em questão sem ao mesmo tempo destruir suas bases.
É por essa razão que um físico não tem a obrigação de discutir com alguém que não conhece ou não reconhece a validade dos princípios de sua ciência. Via de regra, como dirão os medievais, não se discute com quem nega os princípios (contra negantem principia non est disputandum). Debater se só há um ser na realidade é como discutir um argumento defendido meramente por espírito de contenda, sem seriedade, e que é obviamente absurdo por suas consequências.
Os físicos, afirma Aristóteles, enquanto praticantes da ciência física, não podem negar o fato de que no mundo todas as coisas, ou quase todas, estão em mudança. Ademais, o homem de ciência não tem a obrigação de responder a todas as dificuldades que possam ser concebidas, mas tão somente aquelas que são derivadas falsamente dos princípios. Cada ciência possui princípios próprios que são evidentes dentro de seu âmbito de investigação. Assim como há também princípios que são válidos e evidentes não só para esta ou aquela ciência particular, mas para toda e qualquer ciência (o princípio de não-contradição, por exemplo).
Para o físico, a existência da mudança é evidente, é um dado indubitável dos sentidos. Não se trata de um dogma, de uma pressuposição ou de uma mera hipótese. Trata-se de uma verdade evidente haurida diretamente pelos sentidos, nossa fonte primária de conhecimento. Mais ainda, a mudança é o objeto mesmo de investigação da física. Negar a mudança é negar a física como ciência.
Há, então, nesse ponto, uma concordância profunda entre a metodologia científica de Aristóteles segundo a qual nosso conhecimento se inicia nos sentidos, o que é mais evidente para nós, e a condição de possibilidade da ciência física, a evidência dos sentidos. Só é possível a física justamente porque nosso conhecimento inicia nos sentidos e não pode estar em contradição com eles. Qualquer raciocínio abstrato, por mais perfeito que aparente ser, não pode contradizer frontalmente o que os sentidos nos dizem diretamente pela experiência.
Compreende-se desse modo a razão pela qual Aristóteles considera que o físico não necessita responder aos argumentos contra o movimento engendrados pelos eleatas. Se Parmênides afirma que não há mudança porque o ser não pode vir do não-ser, há algo de errado nas premissas ou na interpretação das premissas desse raciocínio, e nunca na evidência direta e insofismável da experiência sensível. Sabemos com toda certeza que uma flecha lançada de um ponto A a um ponto B se desloca inexoravelmente para seu alvo a despeito de todos os raciocínios sutis de Zenão que implicam que a flecha jamais sai de seu ponto de partida porque ela tem que atravessar sempre a metade de qualquer distância, por menor que essa distância seja.
Não somente tudo a nossa volta nega a tese imobilista dos eleatas, até mesmo a nossa experiência interna milita decisivamente contra a sua absurdidade. Vemos e sentimos as coisas mudando, inclusive nosso corpo, mas interiormente sentimos a mudança pela passagem dos pensamentos em nossa mente. Negar a mudança é optar pela negação da realidade tal como a conhecemos, o que inclui negar a nossa própria existência nas suas duas dimensões, a externa e a interna.
Diante disso, o físico está completamente justificado, enquanto físico, a não perturbar-se com as alegações dos que negam a mudança. Contudo, Aristóteles admite que mesmo que as teses eleatas não tenham propriamente a Natureza como seu objeto, elas incidentalmente levantam algumas questões físicas, e, por isso, possuem algum interesse científico. O filósofo dedicará os parágrafos posteriores a responder a essas questões.
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Um comentário:
Sim o mundo dos sentidos existe mas não devemos toma-lo como absoluto...cada ser limitados pelo seus sentidos enxerga uma parte do todo Texto muito bom como sempre ...aguardamos a continuação
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