sábado, 30 de agosto de 2014

"Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick




O real e a imitação, o ser e a aparência, o verdadeiro e o falso dominam a trama de Do Androids Dream of Electric Sheep do escritor de ficção científica americano Philip K. Dick. Como em outros de seus livros, a atração e a busca por aquilo que é real é obstaculizada por inúmeras ambiguidades nascidas, desta feita, do progresso da capacidade humana de produção.

O natural e o artefato - outra modalidade da oposição entre o verdadeiro e o falso - aparecem como o centro de gravitação dos conflitos do livro. O homem produz obras externas a ele, que não raro são mais longevas que ele mesmo e que, por assim dizer, tomam uma "vida própria" ameaçando a vida de seu próprio criador.

Em 2019 a Terra é um planeta devastado por uma guerra atômica, a Guerra Mundial Terminus, que matou todos os animais e que obrigou boa parte da população - aquela que podia pagar - a emigrar para colônias em outros planetas. "Terminus" é o nome do deus romano dos limites e dos limiares. Ele marcava o fim e o início, a linha que distingue a entrada e a saída.

Fica evidente que a Guerra Mundial Terminus marcou o início de uma nova era, de um novo tempo no qual a Terra não é mais o habitat natural do homem. Ele é obrigado então a exilar-se, a fugir de sua própria casa, apartando-se de seu centro. Os eleitos ascenderam às estrelas, os proscritos foram deixados para testemunharem o "choro e o ranger de dentes" de um mundo condenado à decrepitude progressiva.

O mundo é coberto por uma camada radioativa crescente chamada de "A Poeira". É ela a responsável pela decomposição de toda a superfície da Terra e pelas mutações bizarras de muitos de seus habitantes. Entre estes figuram os "cabeça de galinha", aqueles que foram afetados pela Poeira a tal ponto que suas faculdades intelectivas embotaram-se até à idiotia. 

Foi o homem que lançou sobre si mesmo esse destino lúgubre pela invenção e uso de um de seus artefatos, a bomba atômica. Tal engenho humano destruiu o habitat próprio do homem, o seu nascedouro. Eis o primeiro exemplo de como o natural é vencido pelo artefato.

A fim de reparar sua hubris, os homens criam animais elétricos. Estes se tornam presentes em inúmeras casas daqueles que permaneceram na Terra. São artigo comum e barato. Enfim Descartes estaria certo: animais são máquinas regidas por inflexíveis leis mecânicas. 

Os homens, entretanto, não sonham com ovelhas elétricas. O mecânico pode até ser exteriormente idêntico ao animal legítimo, emular todos os seus comportamentos típicos e mesmo possuir programas a fim de simular doenças e até a morte. Mas é só um produto, mais um exemplar produzido industrialmente. Em uma palavra, mais uma cópia

Não somos todos cópias e não pertencemos todos à uma unidade formal que nos define, a espécie? Sob esse aspecto, não somos todos iguais na generalidade e diferentes na singularidade como qualquer carro produzido em série? Por qual razão os homens não sonham com ovelhas elétricas?

Ovelhas elétricas não são naturais. Há mais do que a relação entre universal e singular. O que funda a desvalorização da cópia produzida é justamente o fato de que ela é um artefato. Não é natural. É uma junção de partes anteriormente existentes e que são dispostas em uma ordem imposta de fora. O natural é um desenvolvimento a partir de si mesmo, no qual as partes e o todo são coetâneos, as partes se formando e assumindo funções tendo em vista a realização do todo.

O natural é mais real. O artefato imita o natural e não o inverso. Rick Dekkard, o protagonista, sonha com ovelhas verdadeiras. Elas custam caro, são vendidas em catálogos junto com outros animais. São sinal de status. Para ele é vergonhoso possuir uma ovelha falsa e por isso ele finge que a sua é verdadeira. Quando sua ovelha pára de funcionar, Dekkard determina-se a comprar uma ovelha real. 

Sua esposa não entende sua obsessão por uma ovelha verdadeira. Ela vive deprimida e escolhe o tipo de emoção que irá sentir utilizando um aparelho de modulação de emoções por ondas. Se quiser ficar feliz, escolhe no menu o número corresponde à alegria. Mais uma vez, o artefato domina o natural, toma o seu lugar. Nem mesmo as emoções e os sentimentos nascem espontaneamente. São produzidos por um engenho.

Dekkard é um caçador de "andys", andróides exteriormente idênticos aos humanos produzidos por megaindústrias como as organizações Rosen. O problema é que a perfeição dos engenhos humanos é tanta que o risco é de que eles se infiltrem entre os homens reais e acabem por dominá-los. O dever de Dekkard é impedir que isso aconteça. Cabe ele ser a linha de frente da distinção entre o natural e o artefato, aquele que decide o que é real e o que é falso, aquele que impede que a humanidade seja tragada por suas invenções.

Sua posição é a de todo homem: busca orientar-se precariamente entre a realidade e a aparência. Por isso ele é um sujeito comum, até mesmo apagado, sem graça e meio burocrático. Até como caçador de recompensas Dekkard não se destaca. É somente quando o melhor caçador é gravemente ferido por um andy que ele consegue ascender ao primeiro escalão de sua corporação. 

Ele não é exatamente "o homem certo para o trabalho certo". Ao contrário, ele é o que estava disponível, o segundo que finalmente se torna o primeiro somente pela ausência de alguém melhor. Nem mesmo ele seria a opção natural para o trabalho. Sua entrada no caso é também artificial.

Seis andys Nexus-6, os mais avançados no mercado, fugiram de Marte e pousaram na Terra. Depois de colocarem o melhor caçador de recompensas fora de ação, eles infiltraram-se na sociedade humana e desapareceram. A missão de Dekkard é "aposentá-los", isto é, matá-los. O que parece à primeira vista ser um mero eufemismo descortina-se em uma questão crucial: se eles são andróides, eles morrem? 

Um artefato não morre. Deixa de ser útil, perde sua validade, esgota-se, acaba sua bateria. Mas morrer, não morre. Quem morre são os que estão vivos. Os seres orgânicos e naturais. Sendo assim, matá-los, digo, aposentá-los não é uma questão ética. É como desligar um aparelho que já cumpriu sua função. Se os criamos, então os desligamos.

Se os andys são exteriormente idênticos aos humanos, se conseguem imitar os comportamentos humanos com perfeição, o problema evidente será saber como distinguí-los de humanos legítimos. Eles são somente res extensa, máquinas regidas por inflexíveis leis mecânicas. Mas nós não somos exatamente res cogitans, algo pensante, e sim algo empático. No livro de Philip Dick, o que nos distingue dos andróides é nossa capacidade de sentir empatia.

A empatia é o centro, por sua vez, do mercerismo. Não se sabe qual sua origem, mas esse culto é o que há de mais próximo de uma religião em todo o livro. Consiste basicamente em um aparelho de realidade virtual interativa na qual os "fiéis" testemunham a difícil caminhada ladeira acima de um homem idosos chamado Wilbur Mercer. Durante o processo, há uma união de todos aqueles conectados naquele momento e eles compartilham inclusive os ferimentos sofridos pelo idoso em sua subida.

Evidentemente, Mercer tem algo de Cristo. Sua mensagem é semelhante à mensagem de amor, embora se limite a um exercício momentâneo de empatia compartilhada. Mercer sofre, sua subida parece uma missão a cumprir e ela implica em sofrimento e sacrifício. Alguns afirmam mesmo que ele seja de origem não-humana, divina.

Estranhamente, é também um culto via artefato, uma liturgia - se assim podemos dizer - mediada por aparelhos, muito distante do contato direto com o transcendente através de uma real experiência místico-religiosa. A artificialidade é sua marca. Por medíocre e superficial que o mercerismo seja, reduzido como é a um congraçamento virtual baseado no sentimento, ele aparece como uma refirmação da natureza humana e da diferença essencial que separa os homens dos andys.

Os andys seriam capazes de fingir empatia, simular sua aparência externa. Não conseguem, contudo, fingir as micro-reações físico-corporais espontâneas e involuntárias que acompanham o sentimento de empatia em humanos. A distinção é feita na medição dessas reações em um teste de empatia chamado de escala Voigt-Kampf. Mais uma vez, é o natural que separa o verdadeiro do falso.

A medição, o quantitativo, o externo pretende identificar o que não é mensurável, o estado qualitativo, o interno, aquilo que é pessoal e intransferível, o que somente um ser animal individual vivo pode sentir. Eu não sinto a dor de um outro homem. Seu comportamento externo ma indica. Ele pode fingí-la, contudo, como um ator finge uma dor que não sente. 

O espontâneo e o involuntário não podem ser simulados. Eles são a sede da verdade, imunes ao falso. É neles que o fantasma na máquina se revela. A mão humana, entretanto, avança na imitação e ameaça essa fronteira que pode bem não ser intransponível. O teste Voigt-Kampf pode ser eficiente mesmo com os andys Nexus-6, os mais avançados robôs já criados. No futuro, pode tornar-se obsoleto. 

Há a possibilidade de que um humano seja tomado por um andy e que seja, em seguida, aposentado, digo, morto? Há homens bem pouco ou nada empáticos. Ainda assim permanecem homens. De todo modo, uma anomalia não anula a natureza. Impede-a de efetivar-se plenamente. Homens sem empatia são filhos de outros homens, portanto humanos. O problema é que Dekkard só tem um medidor de reações físico-corporais externas espontâneas para decidir quem é homem e quem não é.

O teste deve ser testado. Dekkard vai até as organizações Rosen para aplicar a medição Voigt-Kampf em diversos voluntários da empresa, entre os quais se encontraria pelo menos um Nexus-6. A sobrinha do sr. Rosen, Rachael Rosen, é sua primeira candidata.  Ele descobre que ela é, sem o saber, um andy. Memórias implantadas a fazem pensar que é humana.

Sabendo que o teste ainda é efetivo, Dekkard parte para a caçada. Um andy tenta matá-lo travestido como comissário soviético, um grupo de andys o captura e o conduz à uma central de polícia falsa e ele conhece um caçador de recompensas que acreditava ser um andróide. O falso como armadilha, o falso como proteção e o falso como erro.

Restam três Nexus-6 a serem aposentados e Rachael Rosen se oferece para ajudá-lo a caçá-los. Dekkard envolve-se cada vez mais a situação dos andys e começa mesmo a ter empatia por eles. Por fim, acaba tendo relações sexuais com Rachael. Esta, no entanto, maquiavelicamente, deita-se com o caçador de recompensas - como fez com seus antecessores - somente para fazê-lo envolver-se emocionalmente com ela a fim de que não fosse capaz de aposentar os outros andys, principalmente um que era idêntico à Rachael.

Dekkard encontra os últimos três andys no apartamento de um "cabeça de galinha" chamado Isidore em um prédio abandonado desde o fim da Grande Guerra Terminus. Isidore é infantilizado e pouco inteligente. Um filho perfeito dos novos tempos. Discriminado, vive solitário e encontra nos andys fugitivos um consolo para sua solidão. Mesmo que seus "amigos" não sejam capazes de amizade. Isidore é o homem tão degradado intelectual e emocionalmente que não vê problemas em buscar o afeto de quem claramente não é capaz de dá-lo.

Tal incapacidade fica evidente quando ele encontra uma aranha viva real e assiste uma das andys friamente cortar as patas do bicho simplesmente para saber com quantas pernas ele conseguiria andar. Nenhuma empatia é demonstrada. Eles são máquinas. E Isidore é ainda abalado pela notícia de que o mercerismo é uma fraude. Mercer na verdade é um ator fracassado em um cenário pintado.

Dekkard chega ao apartamento de Isidore e aposenta os três andys restantes. Ao contrário do que Rachael esperava, ele sequer hesita em aposentar sua cópia. Ele termina sua missão. E, ao chegar em casa, sua mulher conta-lhe que sua cabra - que ele havia comprado com o pagamento dos dois primeiros andys aposentados - estava morta, lançada do alto de seu prédio por Rachael.

Incapaz de empatia, como qualquer andy, Rachael sabe bem como sentem os humanos. Ela sabe como usar a humanidade contra os homens. Compreende conceitualmente o que é empatia, mas não a sente. Sua atitude seria a vingança de uma mulher apaixonada ou simplesmente mais uma imitação de uma reação legitimamente humana?

Na volta para casa Dekkard encontra um sapo vivo em uma área abandonada, deserta e sem vida. Mas para sua surpresa, o sapo também é mecânico. A fim de consolá-lo, sua mulher compra moscas artificiais para o sapo artificial. O artefato vence mais uma vez e se impõe ao homem.

Assim como ele se impõe ao próprio mundo na qualidade de "bagulho", a acumulação progressiva de artefatos humanos abandonados, inúteis, sem sentido que aos poucos toma a face da Terra. A deterioração progressiva do mundo pela ação da Poeira e do "bagulho" parece ser a última palavra da vitória do artefato sobre o natural, do falso sobre o verdadeiro. E parece não haver esperança.

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Um comentário:

Sandro R. disse...

Muito bom seu texto sobre esse livro. Esse é meu livro preferido e eu gosto de como a questão da empatia é trabalhada nele. Aquele outro caçador de andróides que se junta ao Rick (não to lembrando o nome do personagem agora), por exemplo, sentia um prazer enorme no assassinato dos andróides, ao passo que o Rick começava a se apegar a eles. Lembra que ele se emociona com aquela andróide que cantava ópera? John Isidore, pra mim, é um personagem à parte no mundo de PKD: de todos os livros que li dele, Isidore é o único que considero realmente bom e puro de sentimentos (geralmente são todos muito ambíguos né?).
E do filme "Blade Runner", o que acha? O filme "Automata" tem muitas questões que lembram "Andróides Sonham...", já assistiu?
Parabéns pelos textos. Eu escrevo alguma coisa às vezes tb.
http://filmes-e-livros-como-eu-vejo.blogspot.com.br/