quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Larry Laudan, racionalidade, progresso científico e tradições de pesquisa




"Eu defendo que a racionalidade e a progressividade de uma teoria estão mais intimamente ligadas não à sua confirmação ou à sua refutação, mas sobretudo com sua eficácia na resolução de problemas." (Tradução própria)

LARRY LAUDAN, Progress and its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth 

A posição do filósofo americano Larry Laudan caracteriza-se por uma redefinição dos conceitos usados tradicionalmente na epistemologia no tratamento da questão acerca das relações entre racionalidade e progresso. Segundo o filósofo americano, até hoje, todas as discussões sobre essa questão passaram pela subordinação do progresso à racionalidade. Aquele nada mais era do que a sucessão temporal de escolhas baseadas em padrões atemporais.

Assim, o progresso era uma conseqüência da aplicação em casos particulares de uma racionalidade auto-fundada e fora das vicissitudes do tempo. Por isso se justificava a busca por um método distintivo para as ciências que as legitimasse a priori. Entretanto, tal modelo não deu os frutos que se esperava.

É essa perspectiva que Laudan pretende ultrapassar. Para tanto, ele apresenta a tese de que deveríamos inverter a relação tradicional que vê o progresso dependente de noções de racionalidade. A tese então é aquela segundo a qual a racionalidade será definida em termos de progresso. Logo, ser racional é aceitar a teoria mais progressiva, a que exibe maior progresso cognitivo “com respeito às aspirações intelectuais da ciência” distinto do progresso material, social ou espiritual.

No primeiro capítulo de seu livro Progress and its Problems, Larry Laudan afirma que ciência é essencialmente uma atividade de resolução de problemas. Ele admite que essa é uma definição quase trivial (já encontrada em Popper) e que, por outro lado, outros objetivos são encontrados na atividade científica.

Entretanto, segundo ele, um modelo baseado na caracterização da ciência como atividade de resolução de problemas é capaz de capturar melhor o traço distintivo da empresa científica do que outros modelos baseados em outras definições.

Ciência é resolução de problemas. Mas que tipo de problemas? Laudan apontará o que considera como problemas científicos e, em seguida, apontará para dois tipos principais de problemas que as teorias científicas deverão dar conta. O primeiro tipo é o dos problemas empíricos e o segundo o dos problemas conceituais.

Segundo Laudan, os problemas científicos não são fundamentalmente diferentes de outros tipos de problemas e o modelo por ele defendido pode ser estendido para outras disciplinas. O autor não dá nenhuma definição demarcatória de ciência e diz que as teorias nada mais são do que tentativas de resposta adequada para os problemas. As teorias então devem fornecer uma explicação, trazer o irregular para as cercas da uniformidade e permitir a antecipação preditiva dos eventos.

Assim, toda teoria deve fornecer respostas aceitáveis para questões consideradas importantes e interessantes. Todavia, a aceitabilidade das respostas de uma teoria não será avaliada segundo idéias tradicionais de verdade, confirmabilidade e corroboração e sim segundo o critério de constituírem elas adequadas soluções para problemas importantes.

O que define um problema como empírico é o fato de ele ser tratado dentro de determinada ciência, por conseguinte dentro de seus pressupostos teóricos, como um problema acerca dos objetos de estudo do domínio em questão. Não importam aqui questões sobre se tais problemas correspondem a reais estados de coisa. Basta que eles sejam pensados como reais e tratados como tal.

O que faz um fato corriqueiro se tornar um problema empírico é o fato de alguém, em determinada época, decidir que tal fato merece ser explicado. Um evento pode passar séculos sendo encarado com naturalidade e indiferença e depois, num tempo posterior, tornar-se um problema cognitivamente importante.

Dentre os problemas empíricos, Laudan distingue três tipos: problemas não-resolvidos, problemas resolvidos e anomalias. Os primeiros são aqueles problemas ainda não resolvidos adequadamente por nenhuma teoria. Os problemas resolvidos são aqueles problemas já resolvidos adequadamente por alguma teoria e as anomalias são problemas que uma determinada teoria não resolveu e que, no entanto, já foram resolvidos por uma teoria rival.

Os problemas não-resolvidos contam somente como problemas genuínos e de importância quando eles são resolvidos. Até então, eles são somente potencialmente problemas para as teorias. Isso se deve ao fato, observado muitas vezes na história da ciência, de não se poder prever a priori a qual domínio de teorias um fenômeno pertence. 

Até que seja solucionado adequadamente por alguma teoria T, não se pode dizer com certeza que um problema não-resolvido P deve ser resolvido por uma teoria da química, da física ou da biologia. Não se podendo determinar a priori de quem é a responsabilidade de resolvê-lo, o problema não ameaça a nenhuma teoria.

Se um problema só conta como tal quando ele é resolvido por alguma teoria, quando um problema pode ser considerado como resolvido?


"(..) podemos afirmar que um problema empírico está resolvido quando, dentro de um contexto particular de pesquisa, os cientistas não o encaram mais como uma questão não respondida, isto é, quando eles acreditam que compreendem porque a situação proposta pelo problema é do jeito que é."


Além do que foi dito, para Laudan os problemas resolvidos têm ainda três importantes características. Primeiramente, as soluções para os problemas são sempre aproximativas, variando o graus de aproximação de ciência para ciência. Por exemplo, o grau de discrepância aceitável entre as predições e os dados serão maiores em domínios como os da cosmologia e menores em domínios cotidianos da mecânica newtoniana.

Em segundo lugar, é irrelevante se as soluções para os problemas são verdadeiras ou falsas. Basta para que uma teoria T seja vista como uma solução adequada para um problema P se de T possamos inferir P como conclusão. E, por último, as soluções serão sempre impermanentes. Ou seja, o que conta hoje como uma resposta adequada ao problema P pode no futuro ser considerada inadequada.

Tradicionalmente as anomalias têm sido vistas como motivos sérios para o abandono das teorias que as exibem. Entretanto, desde a crítica Duhem/Quine, sabe-se que a existência de anomalias não necessariamente exige o abandono da teoria. Uma teoria é composta de outras teorias das quais se derivam dedutivamente predições. Se as predições se revelam falsas, não é possível determinar qual das teorias componentes é a culpada.

Por outro lado, os próprios dados experimentais que refutam a teoria em teste são, eles mesmos, frutos de teorias. Assim, sua confiablidade não é total. Se a teoria T é refutada pelos dados experimentais, o problema pode estar nos dados e não em T. Diante disso, Laudan propõe que a existência de anomalias numa teoria T faz nascerem dúvidas sobre ela, mas não obrigam o abandono de T.

Todavia, a inconsistência lógica entre teoria e observação está longe de ser (como foi tradicionalmente considerada) a única forma de anomalia. Uma das mais importantes espécies de anomalia são aquelas em que uma teoria T, embora consistente com resultados observacionais, não é capaz de resolver um problema já solucionado por uma teoria rival no mesmo domínio. Qualquer problema empírico resolvido por uma teoria T se tornará uma anomalia para qualquer teoria do mesmo domínio que não o consiga solucionar. 

Assim, o peso de resolver uma anomalia será grande na avaliação crítica de uma teoria. Se um problema P for uma anomalia para uma teoria T, a resolução do mesmo se tornará uma tarefa importante para T e, uma vez solucionado, P entra para a lista de sucessos da teoria T.

Se a tarefa das teorias, e da ciência por extensão, é resolver problemas cognitivamente importantes, como avaliar o grau de importância desses problemas? Laudan pretende dar alguns critérios, sugestivos e não exaustivos, para essa avaliação.

O peso e a importância dos problemas empíricos podem variar de um tempo para outro, de época para época. Com o intuito de possibilitar uma avaliação, Laudan fornece alguns critérios. A importância de um problema pode crescer justamente porque ele foi resolvido. O status de problema só se torna evidente quando ele é adequadamente solucionado, pois até aquele momento, não se poderia dizer qual teoria deveria resolvê-lo. Pode-se dizer, inclusive, que é somente após sua solução que o reconhecemos como um problema.

Um problema também pode crescer de importância quando ele é uma anomalia há muito resistente e que é finalmente resolvida; quando são arquetípicos, ou seja, se mostram como instâncias particulares dos problemas considerados básicos em um domínio (problemas de choque entre corpos para teorias cartesianas, por exemplo); quando um problema é considerado mais geral que os outros.

Alternativamente, um problema pode decrescer em importância quando as crenças sobre o que há no mundo mudam e, com elas, os problemas que lhes são próprios; quando um problema passa de um domínio para outro e quando o tipo de problemas considerados básicos em um domínio muda.

Laudan fornece alguns critérios para a avaliação da importância cognitiva das anomalias. Ela varia segundo o grau de discrepância entre as predições e os dados experimentais; segundo o tempo de resistência da anomalia frente às tentativas teóricas de resolução; e segundo a situação comparativa das teorias rivais dentro de um determinado domínio.

Segundo Larry Laudan, a importância dos problemas conceituais foi geralmente ignorada por epistemólogos e historiadores da ciência. Entretanto, o papel desempenhado por tais problemas é, no mínimo, tão importante quanto aquele dos problemas empíricos. Enquanto estes se caracterizam como questões sobre as entidades substanciais constituintes de um determinado domínio, os problemas conceituais se caracterizam como problemas de primeira ordem concernentes aos fundamentos das estruturas conceituais (as teorias).

Os problemas conceituais podem ser internos ou externos. No primeiro caso, quando uma teoria T exibe inconsistências internas (inconsistências lógicas e auto-contradições) ou ambigüidade nas suas categorias básicas. Certamente algum grau de ambiguidade deve ser esperado de qualquer conceito ou termo usados em teorias científicas. Entretanto, o esclarecimento e especificação progressivos desses termos é tarefa das mais importantes na atividade científica.

No segundo caso, os problemas são externos, quando uma teoria T entra em conflito com uma outra teoria qualquer do domínio cujos proponentes consideram-na bem-fundada. Nesses casos, duas teorias podem apresentar inconsistências lógicas entre si, como quando uma teoria mais recente faz afirmações que desafiam as afirmações de uma teoria mais antiga, bem-fundada e universalmente aceita.

Um outro caso comum de problema conceitual é quando duas teorias não são incompatíveis, mas cuja adoção de uma torna a outra implausível. Geralmente isso se dá quando uma teoria T, embora compatível com T1, afirma mais que esta, sendo portanto mais plausível a aceitação de T do que a aceitação de T1.

Também há o caso em que duas teorias são meramente compatíveis. Uma teoria química que somente seja compatível com a mecânica quântica sem, no entanto, utilizar nenhuma categoria teórica da última, torna-se suspeita.

Com tudo o que foi dito acima, resta uma questão importante: quais as fontes dos problemas conceituais? Se isso não for determinado, qualquer teoria científica pode ser impugnada por não se coadunar com alguma crença qualquer. Segundo Laudan, existem três tipos de dificuldades que podem, legitimamente, gerar problemas conceituais.

O primeiro deles nasce de dificuldades intra-científicas e se dá quando duas teorias estão em conflito. Quando isto acontece não há regras para definir de antemão qual das duas deverá ser eliminada. A suspeita é igualmente partilhada entre as duas e nada obriga o cientista a abandonar uma das teorias que constitui o par. A inconsistência somente indica que há ali motivos para se considerar a possibilidade de abandono de pelo menos uma das duas teorias.

O segundo tipo diz respeito aos problemas nascidos de dificuldades normativas. Eles surgem quando uma teoria infringe as regras metodológicas esposadas por uma determinada época. Na maior parte das vezes, o trabalho é de reconciliar a teoria com a metodologia, embora em muitos casos, ao contrário, são as metodologias que acabam por se coadunar com as teorias.

Por fim, o terceiro tipo de problemas conceituais nasce quando uma teoria está em conflito com algum aspecto relevante de nossa comum visão de mundo. Essas dificuldades se dão não mais, como nos dois casos anteriores, no interior a ciência, mas sim em um campo de discussão que extrapola o âmbito científico. Assim, teorias podem entrar em conflito com nossas crenças não-científicas que vão desde a metafísica, a lógica, a ética até a teologia.

Como no caso dos conflitos entre teorias científicas, quando a suspeita recaía sobre todas as teorias envolvidas, também no caso de conflitos entre teorias científicas e crenças não-científicas a suspeita será compartilhada por todas as visões envolvidas.

Não há, de antemão, nenhum privilégio a ser dado, como se poderia imaginar, à teorias científicas. A avaliação desse conflito deverá levar em conta o quão entranhada uma crença está em nossa visão de mundo como também o aumento de nossa capacidade de resolução de problemas.

Laudan afirma que os problemas conceituais, em geral, são mais sérios que os problemas empíricos. Isto se deve ao fato de que problemas empíricos são mais fáceis de solucionar do que os problemas conceituais. E a importância desses problemas varia de acordo com a confiabilidade que se tenha em cada uma das teorias em conflito, com o estado comparativo das teorias no momento e com a idade do problema conceitual.

Para sumarizar suas idéias acerca dos problemas científicos, Larry Laudan aponta para uma forma, ainda que aproximativa de como um modelo de progresso científico deve ser. Segundo tal modelo, o problema resolvido – seja empírico ou conceitual – é a unidade básica do progresso científico e maximizar o escopo de problemas empíricos resolvidos, minimizando ao mesmo tempo o escopo de anomalias e problemas conceituais, é o objetivo da ciência.

Para acentuar a importância dos problemas conceituais no modelo acima descrito, Laudan afirma que pode haver progresso sem crescimento de solução de problemas empíricos e que a troca de uma teoria por outra pode ser regressiva mesmo que o número de problemas empíricos resolvidos cresça se, na troca, apareçam mais anomalias e problemas conceituais do que aqueles que a teoria antiga apresentava.

As redes de proposições que usualmente chamamos de teorias devem ser distinguidas em duas categorias. A primeira delas se refere às teorias particulares cuja avaliação se dá segundo sua adequação enquanto soluções para problemas empíricos e conceituais. Podemos citar a título de exemplo, uma teoria que tente explicar o comportamento dos ursos no acasalamento. O segundo tipo se refere à maxi-teorias de maior generalidade, menor testabilidade e caracterizadas como um conjunto de doutrinas ou asserções. Como exemplo, podemos citar o darwinismo.

As tradições de pesquisa não se restringem ao campo científico. Elas estão presentes também na filosofia, na teologia, na ética, na psicologia em toda e qualquer disciplina intelectual. Toda tradição de pesquisa tem um certo número determinado de teorias que a exemplificam e parcialmente a constituem.

Ao mesmo tempo, elas exibem um conjunto de asserções e comprometimentos de ordem metafísica e de ordem metodológica que as distingue de outras tradições. Ao contrário das teorias específicas, as tradições se desenvolvem durante longos períodos de tempo e exibem formulações diversas e mesmos contrastantes.

Entre as funções da tradição de pesquisa está aquela de fornecer linhas-mestras para a criação de teorias específicas. Ela diz quais entidades básicas existem em seu domínio e como essas entidades interagem entre si. As teorias específicas deverão explicar os problemas empíricos a partir desses pressupostos e , assim, reduzí-los à ontologia básica da tradição de pesquisa.

A tradição de pesquisa também fornece uma metodologia básica para as teorias específicas que a constituem. Tais pressupostos determinam em que se constituem os métodos de pesquisa legítimos bem como as técnicas experimentais, modos de teste e avaliação teóricos. O conceito de tradição de pesquisa é assim definido por Laudan:


"Uma tradição de pesquisa é uma série de afirmações gerais sobre as entidades e processos em um domínio de estudo e sobre os métodos apropriados a serem usados na investigação dos problemas e na construção das teorias naquele domínio."


As teorias que constituem uma tradição de pesquisa seguem os pressupostos metafísicos e metodológicos dessa tradição. Evidentemente, fugir ou violar esses parâmetros é colocar-se fora dos limites dessa tradição de pesquisa. Laudan aponta para o fato de que isso não é necessariamente ruim, pois grandes revoluções na história científica nasceram justamente por uma quebra, deliberada ou não, dos cânones de determinadas tradições de pesquisa.

A associação de teorias particulares à tradições de pesquisa não significa que essas teorias devam ser homogêneas. Ao contrário, o que mais ocorre é que elas sejam mutuamente inconsistentes, uma vez que cada uma delas representa tentativas, dentro da estrutura daquela tradição, de solucionar problemas e corrigir as teorias predecessoras.

As tradições não são elas mesmas explanatórias, preditivas, testáveis diretamente com são as teorias particulares. No entanto, isso não significa que elas não tenham função no processo de resolução de problemas que é o objetivo maior da ciência. As tradições proverão as teorias específicas com instrumentos necessários para a resolução dos problemas, sejam eles empíricos ou conceituais.

Assim, uma tradição de pesquisa pode ser avaliada através do sucesso na resolução de problemas de suas teorias constituintes. Uma tradição será progressiva se levar a um maior número de problemas resolvidos. Mas, ao avaliá-la deste modo, não estaremos dizendo nada acerca de sua verdade ou falsidade. Estaremos somente avaliando sua capacidade de resolver problemas, sem nos determos no questionamento acerca da veracidade ou falsidade de seus pressupostos metafísicos e metodológicos.

E se uma tradição de pesquisa está estagnada ou não logrou sucesso até o momento, isso não significa que ela deverá ser esquecida para sempre. A decisão de abandoná-la será sempre tentativa, comparativa (escolhem-se outras tradições mais progressivas à disposição) e referente ao tempo da avaliação, não derivando daí nenhuma predição sobre o futuro dessa tradição.

Contudo, as teorias particulares compartilham do destino das tradições que por elas são constituídas. Uma teoria altamente bem-sucedida que se encontra numa tradição de pesquisa estagnada, terá seus méritos serão cobertos pela desconfiança. De forma inversa, uma teoria de poucos frutos pode ser defendida pelo fato de pertencer a uma tradição bem-sucedida na resolução de problemas.

O fato de as teorias particulares serem construídas a partir dos pressupostos metafísicos e metodológicos da tradição de pesquisa a que pertencem não deve levar à idéia de que a relação entre tradição e teorias seja de derivação lógica. As tradições fornecem somente linhas-mestras gerais para a construção de teorias e estas articulam esses pressupostos na busca da solução dos problemas com os quais se defrontam.

Além disso, diversas teorias de uma mesma tradição de pesquisa são mutuamente inconsistentes. Por outro lado, uma mesma teoria pode ser sustentada coerentemente por diferentes tradições.

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