sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Hilary Putnam sobre a dicotomia fato/valor



“O que estive a defender até aqui poderia ser sumarizado na afirmação de que se 'valores' parecem um tanto suspeitos a partir de um ponto de vista estritamente científico, eles têm, no mínimo, diversos 'cúmplices': justificação, coerência, simplicidade, referência, verdade, e outros termos, todos exibem os mesmos problemas que bondade e gentileza exibem, de um ponto de vista epistemológico. Nenhum deles é redutível a noções físicas; nenhum deles é governado por leis sintaticamente precisas. Ao contrário de abandoná-los todos (o que significaria abandonar as idéias de pensar e de falar), e ao contrário de fazer o que estamos fazendo, que é rejeitar alguns - aqueles que não se encaixam em uma concepção instrumentalista limitada de racionalidade a qual carece ela mesma de justificação intelectual -, nós deveríamos reconhecer que todos os valores, incluindo os cognitivos, derivam sua autoridade de nossa idéia de florescimento humano e de nossa idéia de razão. Estas duas idéias estão interconectadas: nossa imagem de uma inteligência teorética ideal é simplesmente uma parte de nosso ideal de um florescimento humano total e não faz sentido deslocado do ideal total, como Platão e Aristóteles sabiam." (tradução minha)

HILARY PUTNAM, Beyond the Fact/Value Dichotomy


Em seu livro Reason, Truth and History, o filósofo da ciência norte-americano Hilary Putnam, tenta mostrar que a pretendida dicotomia positivista entre fato e valor é fundamentalmente errônea. O livro é amplo nos assuntos que aborda, indo desde o problema da referência, passando por uma crítica ao relativismo e ao realismo metafísico , até chegar à concepção de ciência no mundo contemporâneo.

Putnam assevera que ao longo do século XIX desenvolveu-se uma visão na qual os ditos valores morais e éticos foram aos poucos relegados a um segundo plano, preteridos pelos chamados “fatos” da ciência. Essa visão afirmava que os valores são não-objetivos, variam de cultura a cultura (e também de indivíduo a indivíduo!), são objeto de intermináveis e cansativas disputas filosóficas que não chegam perto de um fim e que não podem ser determinados para além de controvérsias.

Por outro lado, os fatos da ciência, principalmente aqueles da Física, são objetivos, gozam de um limitado espaço para controvérsias e alcançavam a concordância geral de todos os homens racionais. Assim, no positivismo lógico, essa visão chega à uma formulação madura, na qual os valores são tidos como “expressões de tendências subjetivas”, e as proposições éticas e metafísicas são relegadas à categoria de pseudoproposições sem sentido.

A tese de Putnam é, grosso modo, a de que sem valores não existem sequer fatos. Nosso critério de aceitabilidade racional depende de um corpo de valores que vão muito além da mera verificabilidade dos fatos empíricos. Em sua crítica, Putnam ataca principalmente a pretensão positivista de reduzir a racionalidade e a ciência a um método formal de verificação de teorias.

O formalismo positivista tinha por objetivo criar um critério de verdade científica que estivesse para além de todas as infindas disputas da metafísica e da ética. Entretanto, se considerarmos qual critério de aceitabilidade racional que é revelado ao olharmos o que cientistas e as pessoas em geral consideram racional aceitar, veremos que o que se quer construir é uma representação do mundo que seja instrumentalmente eficaz, coerente, compreensiva e funcionalmente simples.

E um tal sistema de representações é parte de nossa idéia de um florescimento cognitivo humano vigoroso. Só há um mundo empírico, só há mundo, porque há um tal critério de aceitabilidade racional.

Se consideramos os valores como algo acessório, sem assertibilidade e cognitivamente vazios, como sustentar que teorias científicas devem ser coerentes, simples, instrumentalmente eficazes? Acaso coerência, simplicidade e eficácia não são valores? Sem tais valores não existe mundo ou fatos.

A ciência não busca somente teorias universais e verdadeiras sobre fenômenos empíricos, mas teorias verdadeiras e relevantes. Relevância traz consigo uma série de valores e interesses, e Putnam defende que não somente nosso conhecimento pressupõe valores, mas que, radicalmente, o que conta como real depende de nossos valores.

Não há um mundo independente de nossos valores cognitivos, há mundo por causa de nossos valores cognitivos. E estes se encontram ligados à idéia do “bem”. Para exemplificar como fatos e valores estão inerentemente imbricados, Putnam considera os significados de palavras como “honesto”. Tomemos uma declaração do tipo:

“Fulano é honesto.”

É possível, sem dúvida, encará-la como uma simples descrição do comportamento manifesto de alguém assim como é possível encará-la como o reconhecimento elogioso de uma virtude num indivíduo. Em ambas, “honesto” significará alguém cujo comportamento se coaduna com os valores morais de uma sociedade, age segundo tais valores, cumpre seus deveres a despeito de suas inclinações pessoais entre outras características.

Consideremos uma sociedade tal cujos valores fossem orientados por uma idéia de “bem” que grosso modo significaria “a maior felicidade para o maior número de indivíduos”. Em tal sociedade, que Putnam apelidou de Super-Benthamites (referência ao utilitarista Jeremy Bentham), não haveria problema em perpetrar atos cruéis se estes pudessem, reconhecidamente, realizar “ a maior felicidade para o maior número de indivíduos“. Certamente nenhum de nós concordaria com tais valores, considerando-os então errados e cruéis.

Vejamos o que aconteceria, no contexto dos Super-Benthamites, com a palavra “honesto”. Alguém honesto em nossa sociedade não poderá contar mentiras ou perpetrar atos cruéis com vistas a realizar “a maior felicidade para o maior número de indivíduos". Entretanto, na sociedade dos Super-Benthamites, isso será possível e justificado moralmente.

O uso descritivo da palavra “honesto” será diferente entre nós e os Super-Benthamites. O mesmo acontecerá com termos como “considerado” e “bom cidadão” por exemplo. O vocabulário disponível aos Super-Benthamites para a descrição de situações de relacionamento entre pessoas será, cada vez mais, diferente daquele disponível a nós.

A imagem do seu mundo humano começará a mudar e, por fim, os Super-Benthamites e nós viveremos em mundos humanos bem diferentes. Nossas descrições dos fatos serão completamente diferentes das deles e nenhum dos lados considerará a representação do mundo humano feita pelo outro como adequada e perspicaz.

A discordância, então, não será sobre valores somente, mas sobre fatos também. Seus padrões errados de aceitabilidade racional tornarão seu mundo humano algo radicalmente diverso do nosso a ponto de não poder haver concordância sequer sobre fatos.

O que Putnam defende é que qualquer escolha de um esquema conceitual pressupõe valores. Não se pode escolher um esquema que simplesmente seja uma “cópia” do mundo, pois nenhum esquema conceitual é uma cópia do mundo. A noção mesma de verdade pressupõe e depende de nossos padrões de aceitabilidade racional e estes dependem de nossos valores. A teoria da verdade pressupõe a teoria da racionalidade que, por sua vez, pressupõe a teoria do “bem”.

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