domingo, 1 de abril de 2012

Curto comentário simbólico sobre as tentações de Cristo no deserto



Em Lucas 4, 1-13 são apresentadas as tentações de Cristo. Impelido pelo Espírito, Ele parte para o deserto e lá permanece durante quarenta dias. 

O deserto é símbolo do vazio. Mas esse vazio pode ser aquele do não-ser, do fim, da destruição ou do amorfo dissolvente, do subindividual, daquilo que não é forma por privação de qualquer determinação.

Por outro lado, é imagem do vazio divino, transcendente, daquilo que é supraindividual, supraessencial, além das palavras e dos conceitos, o que não tem forma por superabundância, do "oceano infinito de ser".

Ali se decide a vida espiritual.  Para qual dos vazios irá o homem que se encontra nessa encruzilhada?

As Escrituras dizem que ali Cristo teve fome. Eis o símbolo do homem que anseia, que busca. 

Nesse momento decisivo, aparece o "príncipe deste mundo", o diabo, o dissolvente, aquele que tenta conduzir o homem à dispersão do usufruto das coisas, ao apego do limitado. É o símbolo deste mundo e de suas delícias quando vistos como a única realidade possível, como a fonte última da saciedade do faminto.

"É aqui", diz o diabo. É neste mundo fenomênico, de determinações e limites que está a realização. Quem a ele cede busca no fluxo incessante das coisas, uma após a outra e sempre de novo, saciar sua fome. Como esta sempre retorna, ele está à mercê dos desejos que nele nascem ininterruptamente e das imagens que a cada momento o mundo sedutoramente apresenta.

A primeira sedução é transformar pedras em pão. É a guna Tamas, o grau mais baixo da realidade, aquele  da rudeza da matéria inanimada (pedra) e da mera sobrevivência animal (pão, alimento). É interesse individual, segurança materialista, busca de bem-estar.

Cristo responde: "Está escrito, nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra de Deus."

A palavra de Deus é o conjunto das Escrituras Sagradas, mas também tudo o que d'Ele vêm. Vistas a partir de sua origem, o Eterno, nenhuma das coisas criadas pode fazer mal ou afastar o homem de sua origem última. Elas são palavras de Deus, símbolos do divino. Unidas a Ele, manifestando-O, as coisas são hierofanias, revelações do Altíssimo.

A segunda tentação é a dos reinos deste mundo. Tudo será dado a Cristo, todo o poder e força de todos os reinos e nações, caso adore o diabo. Tudo isso pertence ao maligno e ele dá a quem quiser. É a guna Rajas, vontade de poder, ação, luta pela existência e pelos bens, supremacia, esplendor.

Cristo responde: "Vai-te Satanás! Pois está escrito adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás!"

Nenhum reino e nenhuma riqueza pode salvar o homem, nem mesmo os governos, as instituições ou as nações. O único princípio diante do qual todo joelho se dobra é o regente e fonte última do ser. Ele é o realmente livre, o sem-senhor e todo o poder limitado que neste mundo se manifesta provém Dele e a Ele retorna.

A terceira tentação é lançar-se do pináculo do Templo para que Deus realize um milagre. Ora, o pináculo é o ponto mais alto, simboliza o grau mais elevado da vida espiritual. É a guna Sattva, o estado ideal de ser, bondade, perfeição, espírito e pureza.

Mas há um risco. O homem que se dedica às coisas divinas, que pratica ascese e realiza seus deveres devocionais e religiosos pode crer que já alcançou a Deus. Que o pináculo do Templo é o mais alto que se pode alcançar e que Deus deve nele realizar proezas para manifestar sua elevação espiritual. É o desejo dos poderes, das maravilhas.

Mas tembém é a tentação de confundir o caminho com o objetivo. Tal homem quer controlar Deus, fazer com que Ele se submeta a um método, ainda que espiritual. 

Cristo responde: "Está escrito: não tentarás o Senhor teu Deus!"

Nenhuma ascese ou exercício espiritual pode garantir ao homem a realização última. O Eterno é livre, absolutamente livre. Nada O alcança, nenhum esforço humano O constrange. Ele pode, inclusive, prescindir de sinais ou manifestações visíveis, bem como pode dispensar a ascese de seus devotos.

O diabo então se afastou. A dissolução é vencida. A marcha é ascendente, na direção do que está para além das palavras, para o deserto da transcendência divina, o "oceano infinito de ser", o ilimitado. Além de Nama-rupa e de toda limitação psico-física.

Como ensinava o divino Dionísio: "abandona os sentidos e as atividades do intelecto e todas as coisas que os sentidos e o intelecto podem perceber, bem como todas as coisas neste mundo de nulidade ou naquele mundo de ser e, vosso entendimento deixado de lado, inclinai-vos (tanto quanto podeis) para a união com Ele a quem nem o ser e nem o entendimento podem conter."

Para aquele que vence as tentações do "príncipe deste mundo", o deserto é união íntima com a superabundância que transcende qualquer forma ou limitação. Nada é rejeitado, tudo é transfigurado na luz da sua fonte inascessível e todo-abarcante.




Um comentário:

Frank Wan disse...

No parágrafo que refere o "diabo" como "símbolo" deste mundo... é interessante que, etimologicamente, o diabo é justamento o antónimo de "sím-bolo" (sun-bole), é o "diá-bole", o separador, enquanto "símbolo" é o que promove a união.