segunda-feira, 23 de abril de 2012

Descartes, Newton e a filosofia natural





"Antes de fazer uso dos princípios que foram estabelecidos, creio que não será fora de propósito entrar no exame daqueles que o Sr. Newton faz servir de fundamento de seu sistema. (...) Inimigo de todo limite e, sentindo que a Física constantemente o embaraçava, ele a baniu de sua filosofia. E, com medo de ser obrigado a solicitar sua ajuda ocasionalmente, ele tomou para si erigir como leis primordiais as causas íntimas de cada fenômeno particular. Assim fazendo, toda dificuldade foi aplainada. Sua obra não versa sobre nenhum problema a não ser aqueles tratáveis por meio de cálculos que ele sabia como realizar. Um fenômeno analisado geometricamente se torna para ele um fenômeno explicado. Dessa forma, esse ilustre rival do Sr. Descartes cedo experimentou a singular satisfação de se achar grande filósofo somente pela virtude de ser um grande geômetra.  (...) concluo que, seguindo o método desse grande geômetra, nada é mais fácil que desenvolver o mecanismo da natureza. Quereis estabelecer a razão de um fenômeno complicado? Exponha-o geometricamente e tereis feito tudo." (Tradução minha do original em francês)

E. S. DE GAMACHES, Principes généraux de la Nature appliqués au méchanisme astronomique et comparés aux principes de la Philosophie de Monsieur Newton, 1740, p.67


O trecho acima citado pertence à uma obra científica francesa já do século XVIII e mostra as razões da resistência francesa ao newtonianismo como filosofia natural. Ao avaliar os fundamentos teóricos newtonianos, De Gamaches chega à conclusão de que eles são insustentáveis e chega a afirmar que Newton não é um filósofo natural.

Há uma disputa científico-conceitual crucial em toda essa discussão, mas também uma disputa entre países tradicionalmente rivais. De um lado a Inglaterra e do outro a França, velhos adversários desde antes da Guerra dos Cem anos ainda na Idade Média.

De Gamaches, em outra passagem, afirma que Newton, embora grande geômetra, sentia-se particularmente incomodado com o fato de sua nação ter de buscar e tomar emprestado de um povo estrangeiro "a arte de esclarecer os processos da natureza e seguí-las em suas operações". Em outros termos, Newton seria um nacionalista exacerbadamente incomodado com o protagonismo de uma nação estrangeira na filosofia natural. 

E qual seria tal nação a quem a Inglaterra tinha sempre que "pedir emprestado" a arte do conhecimento do mundo natural? De Gamaches, um cartesiano convicto, não deixa dúvida de que é à França a que se refere e de que é Réné Descartes o grande mestre nessa arte.

Não obstante, a despeito da diatribe nacionalista de De Gamaches contra Newton, resta aí um problema que ultrapassa as querelas pouco científicas entre nações rivais. A questão central se encontra na própria concepção do que é, afinal, a Física.

O cartesiano francês afirma que Newton, embaraçado com os problemas próprios da Física, expulsou-a de sua filosofia. É uma grave acusação. Mas ela está fundamentada nas bases conceituais daquilo que ele concebe como uma Física.

O cerne da questão, para De Gamaches, é o fato de que Newton considera como explicado qualquer fenômeno que possa ser analisado geometricamente. Em outros termos, Newton era um belíssimo geômetra, mas um péssimo físico.

E qual a razão de um julgamento tão severo? Ora, as bases da física cartesiana. Para Descartes, a Física deveria, por obrigação, ser derivada de princípios metafísicos. É através da consideração da natureza última da matéria, por exemplo, que se podem deduzir as leis gerais da Física e daí as leis dos fenômenos mais particulares.

A matéria cartesiana não será mais que um "substância que tem extensão em comprimento, largura e profundidade". O mundo físico é, então, feito de corpos extensos, sem cheiro, sabor, cor, valor ou finalidade que se movimentam por impacto segundo leis geométricas. Dessas bases todo e qualquer fenômeno pode ser deduzido com o rigor e a certeza de uma demonstração matemática. Tudo se resolve em termos de figura e movimento, para o escândalo de Pascal.

A Física cartesiana lançava suas raízes na Metafísica, na medida em que é esta, e não a experiência sensível ou a observação, que determina, concomitantemente, quais os objetos próprios da Física e qual a natureza dos mesmos.

Quão inadequada parecerá a um cartesiano uma filosofia natural cujas bases postulam a existência de "propriedades ocultas" como as forças newtonianas que não podem ser deduzidas das bases metafísicas do mecanicismo!

Ora, como Thomas Kuhn bem salientou, a adição das forças de atração e de repulsão ao mecanicismo criou um enorme problema conceitual para os adeptos daquele gênero de explicação científica que se gabava de haver expulsado as qualidades ocultas características da Física escolástica:


"Em meados do século XVIII foi quase universalmente aceita, e o resultado foi uma genuína reversão (o que não é o mesmo que um retrocesso) a um padrão escolástico. Atrações inatas e repulsões juntaram-se ao tamanho, forma, posição e movimento como propriedades fisicamente irredutíveis da matéria." (The Structure of Scientific Revolutions, p.105)


De onde Newton retirou essas forças? Segundo ele mesmo, da experiência. Mas como a experiência poderia fornecer o conhecimento da estrutura última da matéria? Para um cartesiano, isso só pode se dar via razão, ou seja, como resultado da apreensão racional das idéias claras e distintas. 

E outra, como atrações e repulsões à distância poderiam ser compatibilizadas com uma física cujos fundamentos do movimento estão no impacto? Se não há choque ou tração, como um corpo pode agir sobre outro corpo à distância?

Todavia, o próprio Newton admite que não conhece a natureza dessas forças e que, sobre elas, não constrói hipóteses. Basta-lhe que alguns poucos princípios fundamentais possam ser derivados da experiência, confirmados por experimento e depois utilizados para explicar o comportamento de outros fenômenos. O questionamento das causas últimas desses mesmos fenômenos deve ser deixado de lado.

A situação fica ainda pior. Não contente em adicionar propriedades ocultas ao mecanicismo, Newton ainda pretende derivá-las da experiência e eximir-se de fornecer sua causa última, a natureza dessas mesmas forças.

Por essa razão, De Gamaches afirma que, no final das contas, Newton não faz Física. Como ele não sabe como fazer Física, ele trata nos fenômenos somente aquilo que pode ser calculado e acha que, uma vez tendo geometrizado os fenômenos, explicou-os satifatoriamente.

Para De Gamaches o que falta a Newton é fundamentar sua Física em princípios metafísicos indubitáveis de tal forma que todos os fenômenos do mundo natural possam ser deles logica e rigorosamente deduzidos, assim como Descartes teria fundado sua Física em princípios indubitáveis acerca da natureza da matéria.

Não basta então, diz o cartesiano francês, geometrizar os fenômenos, dar uma descrição matemática de como eles se comportam na experiência comum, mas deduzir esse comportamento de fundamentos certos e inabaláveis acerca da sua natureza fundamental.

Expor a razão de um fenômeno é deduzí-lo de suas propriedades últimas descobertas por uma sã metafísica e não somente expô-los geometricamente. O conflito aqui gira em torno não da adequação empírica dessas geometrizações dos fenômenos, mas do tipo de explicação que a Física exige.

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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Tomás de Aquino: Prova, Física e Astronomia




“É possível, diz ele, dar a razão de uma coisa de dois modos diferentes. A primeira consiste em provar de maneira suficiente um certo princípio. É assim que na Cosmologia [Scientia Naturalis] dá-se uma razão suficiente para provar que o movimento do céu é uniforme. No segundo modo, não se prova de uma maneira suficiente o princípio, mas o princípio sendo postulado no início, mostra-se  que suas consequências concordam com os fatos. Assim, em Astronomia, é proposta a hipótese dos epiciclos e das excêntricas, pois, posta essa hipótese, as aparências sensíveis dos movimentos celestes podem ser salvaguardados. Contudo, isso não é uma razão suficientemente probante, pois elas poderiam ser salvaguardadas por uma outra hipótese.”

TOMÁS DE AQUINO

O trecho acima reproduzido consta no capítulo III da obra La Théorie Physique de Pierre Duhem e é citado entre as opiniões acerca da natureza da pesquisa física. Duhem, como diversas vezes já explicamos aqui, defende a tese segundo a qual a teoria física não é uma tentativa de explicação da natureza última dos fenômenos, mas sim uma descrição matemática do comportamento manifesto das magnitudes físicas, organizada como uma classificação logicamente ordenada na qual as proposições matemáticas mais particulares são deduzidas de um conjunto menor de proposições mais gerais e mais simples.

Por conseguinte, as teorias físicas são independentes de considerações de natureza mais metafísica e, da mesma forma, não engendram afirmações sobre a constituição ontológica dos fenômenos por elas estudados. Em outros termos, as teorias físicas somente "salvam os fenômenos", isto é, constroem hipóteses matemáticas somente adequadas ao comportamento observável das magnitudes.

Para ilustrar seu ponto de vista, Duhem mostra que a concepção de uma teoria matemática dos fenômenos observáveis e a consideração dos limites específicos desse método já se encontrava presente no pensamento das ciências da natureza grega e medieval.

Como Aristóteles havia determinado na Física, o físico trata os objetos da experiência sensível comum, da observação cotidiana, abstraindo a matéria particulas dos exemplares concretos e considera somente a estrutura essencial que se manifesta através desses exemplares. A Física trata, por conseguinte, da natureza última dos entes que estuda e é partir da definição formal dessa natureza (Forma, Eidos) que todas as demonstrações são construídas.

Já o matemático abstrai toda matéria e centra-se somente nas relações matemáticas instanciadas nos seres concretos como se tais relações fossem ou pudessem ser absolutamente separadas das coisas. Em outros termos, o matemático considerada essas relações como subsistentes em si mesmas, embora no real elas não sejam.

Entre a Matemática e a Física, diz o grego, estão as ciências intermediárias que estudam os seres concretos da experiência a partir de suas relações matemáticas sem, contudo, abstraí-las deles, tomando-as como ainda pertencendo a eles. Essas ciências são a harmonia, a ótica e a astronomia.

Tomás de Aquino, no trecho citado, esclarece precisamente quais são os gêneros de provas adequados à ciência física e à astronomia. Compara assim a Física, a ciência teorética da natureza por excelência, com a a Astronomia, ciência intermediária que está entre a própria Física e a Matemática.

Na sua explicação as questões de método estão intimamente ligadas e fundadas em considerações ontológicas. A razão das coisas pode ser dada de dois modos, diz o dominicano. 

No primeiro modo, o princípio é provado de maneira suficiente. Quer dizer, o princípio que explica o fenômeno é provado por uma razão que dá a natureza última da coisa. A Forma, o Eidos, o Logos, a essência da coisa é fornecida. Assim, quaisquer propriedade ou operação da coisa explicada deve ser derivada de sua natureza. Eis o ideal de conhecimento e o modo próprio de prova e demonstração da Física. Nada menos que a razão última da coisa.

Provar é deduzir aquilo a ser provado de princípios que sejam certos, verdadeiros e que determinem a razão última.

O outro modo, bem mais modesto, consiste, ao contrário da Física, não em dar a razão última da coisa estudada, mas postular um princípio, deduzir dele consequências e averiguar se elas concordam com os fatos. Contudo, tal concordância não é logicamente suficiente para provar o que foi postulado como princípio, pois diversos outros princípios podem igualmente dar conta desses fatos.

O exemplo dado por Tomás é a Astronomia. Enquanto uma ciência teorética intermediária entre a Matemática e a Física, sua função é formular descrições matemáticas e confrontá-las com os fatos observados. 

Ela não tem a possibilidade de determinar a natureza última de seus objetos, pois se concentra em somente um de seus aspectos - as relações matemáticas - e trata essas mesmas relações não como entidades abstratas subsistentes, mas como aspectos de objetos concretos da observação comum e cotidiana. Por esse fato, ela não pode ter a apoditicidade da Matemática.

Em outros termos, a Astronomia não estuda relações formais abstraídas de seus conteúdos concretos no real, como a Matemática, e nem considera a natureza última das coisas, que inclui e rege todas as relações - inclusive as matemáticas - como a Física.

Ela só pode propor descrições matemáticas do que é observado e averiguar a adequação das consequências dessas descrições aos fatos observados. O astrônomo pode propor epiciclos ou órbitas excêntricas para tratar das órbitas dos planetas, mas tais hipóteses têm somente a virtude de concordar com o que se observa. Nada impede que outras descrições matemáticas, incompatíveis com aquelas propostas, não possam ser igualmente adequadas aos fenômenos.

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domingo, 1 de abril de 2012

Curto comentário simbólico sobre as tentações de Cristo no deserto



Em Lucas 4, 1-13 são apresentadas as tentações de Cristo. Impelido pelo Espírito, Ele parte para o deserto e lá permanece durante quarenta dias. 

O deserto é símbolo do vazio. Mas esse vazio pode ser aquele do não-ser, do fim, da destruição ou do amorfo dissolvente, do subindividual, daquilo que não é forma por privação de qualquer determinação.

Por outro lado, é imagem do vazio divino, transcendente, daquilo que é supraindividual, supraessencial, além das palavras e dos conceitos, o que não tem forma por superabundância, do "oceano infinito de ser".

Ali se decide a vida espiritual.  Para qual dos vazios irá o homem que se encontra nessa encruzilhada?

As Escrituras dizem que ali Cristo teve fome. Eis o símbolo do homem que anseia, que busca. 

Nesse momento decisivo, aparece o "príncipe deste mundo", o diabo, o dissolvente, aquele que tenta conduzir o homem à dispersão do usufruto das coisas, ao apego do limitado. É o símbolo deste mundo e de suas delícias quando vistos como a única realidade possível, como a fonte última da saciedade do faminto.

"É aqui", diz o diabo. É neste mundo fenomênico, de determinações e limites que está a realização. Quem a ele cede busca no fluxo incessante das coisas, uma após a outra e sempre de novo, saciar sua fome. Como esta sempre retorna, ele está à mercê dos desejos que nele nascem ininterruptamente e das imagens que a cada momento o mundo sedutoramente apresenta.

A primeira sedução é transformar pedras em pão. É a guna Tamas, o grau mais baixo da realidade, aquele  da rudeza da matéria inanimada (pedra) e da mera sobrevivência animal (pão, alimento). É interesse individual, segurança materialista, busca de bem-estar.

Cristo responde: "Está escrito, nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra de Deus."

A palavra de Deus é o conjunto das Escrituras Sagradas, mas também tudo o que d'Ele vêm. Vistas a partir de sua origem, o Eterno, nenhuma das coisas criadas pode fazer mal ou afastar o homem de sua origem última. Elas são palavras de Deus, símbolos do divino. Unidas a Ele, manifestando-O, as coisas são hierofanias, revelações do Altíssimo.

A segunda tentação é a dos reinos deste mundo. Tudo será dado a Cristo, todo o poder e força de todos os reinos e nações, caso adore o diabo. Tudo isso pertence ao maligno e ele dá a quem quiser. É a guna Rajas, vontade de poder, ação, luta pela existência e pelos bens, supremacia, esplendor.

Cristo responde: "Vai-te Satanás! Pois está escrito adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás!"

Nenhum reino e nenhuma riqueza pode salvar o homem, nem mesmo os governos, as instituições ou as nações. O único princípio diante do qual todo joelho se dobra é o regente e fonte última do ser. Ele é o realmente livre, o sem-senhor e todo o poder limitado que neste mundo se manifesta provém Dele e a Ele retorna.

A terceira tentação é lançar-se do pináculo do Templo para que Deus realize um milagre. Ora, o pináculo é o ponto mais alto, simboliza o grau mais elevado da vida espiritual. É a guna Sattva, o estado ideal de ser, bondade, perfeição, espírito e pureza.

Mas há um risco. O homem que se dedica às coisas divinas, que pratica ascese e realiza seus deveres devocionais e religiosos pode crer que já alcançou a Deus. Que o pináculo do Templo é o mais alto que se pode alcançar e que Deus deve nele realizar proezas para manifestar sua elevação espiritual. É o desejo dos poderes, das maravilhas.

Mas tembém é a tentação de confundir o caminho com o objetivo. Tal homem quer controlar Deus, fazer com que Ele se submeta a um método, ainda que espiritual. 

Cristo responde: "Está escrito: não tentarás o Senhor teu Deus!"

Nenhuma ascese ou exercício espiritual pode garantir ao homem a realização última. O Eterno é livre, absolutamente livre. Nada O alcança, nenhum esforço humano O constrange. Ele pode, inclusive, prescindir de sinais ou manifestações visíveis, bem como pode dispensar a ascese de seus devotos.

O diabo então se afastou. A dissolução é vencida. A marcha é ascendente, na direção do que está para além das palavras, para o deserto da transcendência divina, o "oceano infinito de ser", o ilimitado. Além de Nama-rupa e de toda limitação psico-física.

Como ensinava o divino Dionísio: "abandona os sentidos e as atividades do intelecto e todas as coisas que os sentidos e o intelecto podem perceber, bem como todas as coisas neste mundo de nulidade ou naquele mundo de ser e, vosso entendimento deixado de lado, inclinai-vos (tanto quanto podeis) para a união com Ele a quem nem o ser e nem o entendimento podem conter."

Para aquele que vence as tentações do "príncipe deste mundo", o deserto é união íntima com a superabundância que transcende qualquer forma ou limitação. Nada é rejeitado, tudo é transfigurado na luz da sua fonte inascessível e todo-abarcante.