Profeta Elias no deserto
Todo símbolo se presta a interpretações diversas de acordo com o ângulo sob o qual é encarado. O símbolo é sempre imperfeito, mais ou menos adequado ao simbolizado, também de acordo com o caso. E, em muitas circunstâncias, um mesmo símbolo pode referir-se a realidades diametralmente opostas.
Por outro lado, o símbolo jamais é arbitrário. Se o fosse, seria mero sinal, convenção, como ensina Mário Ferreira dos Santos.
O deserto, por exemplo, é tradicionalmente visto como um símbolo do vazio, ou em outros termos, da indistinção radical. Obviamente o deserto atual e existente no mundo não é um vazio total e nem mesmo apresenta absoluta ausência de seres distintos, limitados.
O deserto real não é idêntico àquilo que simboliza. Mas ele é uma das experiências sensíveis e temporais mais próximas da indistinção e do vazio.
O vazio pode ser símbolo tanto de ausência quanto de plenitude. Como ausência, é o símbolo do afastamento absoluto do Ser, da negação de todo e qualquer ente, possível ou efetivo. É o símbolo do mal, pois o mal é ausência de bem, que é sempre Ser.
A posse do órgão da visão e da sua respectiva faculdade são atualizações de potencialidades. São bens, são o Ser sendo. A cegueira é um mal porque é uma privação, a ausência do ser efetivo da visão.
Sob essa ótica, o deserto é o lugar próprio da privação e da ausência. É o lugar da negação pura e simboliza o negativo absoluto, a privação total e completa que jamais pode se manifestar enquanto tal, pois tudo que se manifesta é Ser, é ente.
O deserto é a morada do negador par excellence: o demônio. Para o espírito maligno que habita o deserto era enviado o bode expiatório que carregava os pecados, as transgressões e as negações do povo hebreu. Para o êrmo eram impelidos os endemoniados do Evangelho que de todos se afastavam, como exemplos da negação radical da convivência com o outro.
É no deserto que o Senhor é tentado logo após seu batismo no Jordão. Mas é nesse mesmo lugar que o Cristo repele decididamente as ofertas do tentador.
Neste ponto o simbolismo se reverte.
Jesus recusa o demônio, a negação personalizada, porque ele está no deserto que é plenitude. Está no vazio que é a suprema indistinção da divindade, que jamais pode ser classificada em nenhuma categoria humana. Deus não é isso ou aquilo. Está além de qualquer palavra ou pensamento, excede infinitamente toda expressão ou discurso humanos.
Em Deus nenhum limite há; portanto, aí nenhuma determinação, nenhuma classificação pode haver. Ele é Deus absconditus.
O deserto transmuta-se em símbolo do divino.
Moisés, após subir o monte Sinai, símbolo da ascensão espiritual, de Deus só vê trevas. Como ensina São Gregório de Nissa, comentando o texto mosaico, o conhecimento espiritual é cada vez mais perfeito quanto mais se reconhece a incompreensibilidade divina.
O deserto se torna então símbolo não da ausência radical dos seres, mas da realidade inapreensível que os ultrapassa e os funda primordial e absolutamente. De nenhum valor serão os reinos deste mundo oferecidos pelo demônio ao Cristo, pois Ele vive no vazio divino que está além de qualquer limite e determinação.
No Antigo Testamento, é para tal deserto que foge o santo profeta Elias, sofrendo "as perseguições movidas pelos poderes deste mundo", como expressa a Divina Liturgia Ortodoxa. O último profeta e precursor João Batista vem do deserto para anunciar a vinda do Senhor, que é a divinização do Cosmos.
É para esse deserto que a Igreja deve fugir toda vez que for tentada pelo poder temporal. É nesse deserto que se enraíza a autoridade espiritual. Quando a Igreja se tornou mundana, beneficiária dos privilégios concedidos pelos imperadores romanos, a verdadeira autoridade espiritual se destacou de seus representantes oficiais e se encarnou naqueles monges e anacoretas que partiam do saeculum para o deserto em busca somente daquilo que é mais importante.
O deserto dá testemunho tanto de plenitude espiritual quanto de perigos e tentações. Pode ser o vazio todo-excludente da negação pura ou a plenitude todo-abarcante do inabarcável ser divino. O monge ou anacoreta que partia para o deserto físico da privação material dos confortos deste mundo tinha como objetivo passar espiritualmente do vazio da negação e da ausência para o da união íntima com a supra-essência divina que ultrapassa infinitamente todo e qualquer conceito ou limitação.