quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro XI) - a Paz

"A paz divina, a unidade supraessencial, gera a paz ela mesma per se, isto é, a paz ideal que une tudo na presença de Deus e na mente angélica, pois, ao seu modo, as Ideias existem em ambos. A paz de Deus cria igualmente a paz universal que é a compartilhada união do universo, e a paz particular que é adequada a cada coisa singular, ou seja, a sua própria união individual."

MARSILIO FICINO, "Comentários aos Nomes Divinos", CCCXIX

Os sentidos dos nomes "Paz" (εἰρήνης), "Ser em si" (αὐτοεῖναι), "Vida em si" (ἡ αὐτοζωή), "Poder em si" (ἡ αὐτοδύναμις) dados a Deus são esclarecidos por Dionísio no Livro XI. O primeiro nome refere-se ao poder unificador divino que traz todas as coisas à harmonia, a despeito de suas contrariedades e oposições no mundo. 

A pacificação é um aspecto do Uno (τὸ ἕν), o princípio último do neoplatonismo grego. Ao comentar a proposição XIII de seu tratado "Os Elementos de Teologia", o neoplatônico grego Proclo ensina que "A bondade, por conseguinte, é a unificação (ἕνωσις). O Bem é um, e o Uno é o bem primordial". Melhor um ente será quanto mais estiver unificado consigo próprio e com a unidade transcendente que dá realidade e sustentação às coisas.

Tudo está unificado em Deus e por Deus, em que pese o fato que, para que isso aconteça, como Marsílio Ficino observa no seu comentário a Dionísio, seja necessário haver no mundo, ao mesmo tempo, união (unio) e distinção (distinctio). Considerados apenas segundo as suas naturezas, os seres manifestam-se tanto em unidades quantitativas (um cavalo) quanto qualitativas (um cavalo). Os entes, assim constituídos, entram em acordos e em desacordos uns com os outros.  

Os acordos não podem ser tais que exijam que os entes percam as suas naturezas próprias mergulhando numa completa indistinção. Tampouco os desacordos podem ser tão profundos a ponto de isolar completamente os seres uns dos outros. Vale recordar que, as duas possibilidades, de distinção e de indistinção absolutas, foram alvo de refutação no diálogo "Sofista", de Platão. 

Ficino usa a imagem da deusa romana Concordia ("cum": com, "cor", "cordis": coração) para ilustrar a comunidade que governa os entes no mundo. Há que se distinguir, contudo, dois níveis da unificação. No seio eterno da natureza supraessencial de Deus, todas as distinções estão anuladas na coincidentia oppositorum enquanto meras possibilidades. No mundo criado, algumas coisas concordam com algumas, porém não todas com todas. A unidade, neste caso, harmoniza as distinções num Todo coerente, espelhando na multiplicidade a absoluta unicidade divina, como a imagem imita o rosto que está diante do espelho.

A paz de Deus é um silêncio indizível, incompreensível, transcendente e indivisível que é a origem e o fundamento da diversidade ordenada que caracteriza o mundo. As coisas desejam a paz na medida em que todas querem permanecer na existência, mantendo as suas unidades individuais e as suas propriedades essenciais. Mais ainda, enquanto realizam as mudanças e as ações correspondentes às suas naturezas e às suas funções respectivas na estrutura universal, elas manifestam o desejo de participar de uma paz que as supera, a da ordem do Cosmo, e de contribuir para a sua preservação.

Quanto às coisas que se afastam da ordem e quebram a simpatia que une as partes do universo como estão unidas as partes de um animal? Dionísio responde, alinhado com o que foi ensinado anteriormente acerca do Mal, que nada consegue realmente abandonar a unidade imposta por Deus ao Todo, e que aquilo que é instável e indefinido não possui ancoragem no Ser. Mesmo os seres que se opõem à ordem o fazem desejando a paz, ainda que estejam enganados sobre os meios para alcançá-la graças à perturbação causada pela desordem de suas paixões.

Dionísio, em seguida, explica por qual razão Deus pode receber os títulos de "Vida em si", "Ser em si" e "Poder em si" ao mesmo tempo em que é chamado de "Sustentador da Vida", "Sustentador do Ser" e "Sustentador do Poder". Ele é a própria "Vida" ou só o seu "Sustentador"? A aparente contradição é resolvida quando atentamos aos sentidos nos quais são empregados esses nomes. A denominação "Sustentador" (ὑποστάτης) é utilizada para indicar a absoluta transcendência da natureza divina supraessencial com relação às coisas.  

Deus não é a "Vida" se por isso entendemos um modo particular de existência. Ele não pode ser identificado a nenhum tipo de entidade, por mais excelsa que ela seja. A fim evitar erros de compreensão, Deus é chamado "Sustentador da Vida", enfatizando assim o caráter de dependência ontológica da "Vida" com relação a Ele. Porém, Deus é a "Vida em si" no sentido de que é a causa Imparticipável (ἀμέθεκτος) desse dom providencial do qual os seres vivos participam limitadamente.

Conhecendo os viventes (este cavalo e aquele homem, por exemplo), sabemos que eles participam da "Vida", considerada aqui como a propriedade comum que os torna a todos entes vivos. Subindo da "Vida" até Deus, a causa última de tudo, encontramos não somente a "Vida em si", mas também o "Ser em si", o "Poder em si", etc... Porém, todos esses dons estão reunidos no seio da natureza divina supraessencial sem distinção de qualquer espécie (coincidentia oppositorum). É somente a fraqueza de nosso entendimento que distingue esses poderes dentro da unicidade absoluta de Deus.
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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro X) - o Antigo dos Dias

"As Sagradas Escrituras empregam o termo 'eterno' em quatro sentidos: o primeiro, para designar o incriado, isto é, Deus e aquilo que lhe é próprio; o segundo, para significar o imortal e o imutável, como os anjos; o terceiro, para designar o antigo; o quarto, para indicar a vida eterna do homem."

MARSILIO FICINO, "Comentários aos 'Nomes Divinos'"

O livro X de "Os Nomes Divinos" dedica-se a explicar a atribuição dos nomes "Governante Universal" (παντοκράτορος), "Antigo dos Dias" (παλαιοῦ ἡμερῶν), "Eterno" (αἰῶνος) e "Tempo" (χρόνος). Deus é denominado "Governante Universal", o Pantocrator, porque contém em si todas as coisas, e as governa como sua origem e seu retorno. Seu domínio, contudo, não é violento, pois a violência age contra a natureza da coisa violada. Tudo o que existe tem em Deus seu primeiro Princípio (ἀρχή) e seu derradeiro Fim (τέλος). Portanto, há uma natural reversão (ἐπιστροφή) dos seres na direção do Bem.

Tudo o que é possível, isto é, aquilo que tem aptidão para existir em algum momento, está contido eternamente no seio do poder divino. O filósofo alemão G.W. Leibniz, no seu escrito Échantillon de découvertes sur les secrets de la nature prise en général, de 1688, definiu Deus como a "raiz da possibilidade". Isso significa que Ele é o único que pode ser dito Onipotente. Sendo o fundamento de toda e qualquer possibilidade de existência, nada pode estar fora de seu poder, de seu domínio e de seu governo. 

"Antigo dos Dias" simboliza a anterioridade ontológica de Deus. Ele não é antigo temporalmente como um idoso que tem mais anos de vida do que um jovem. Sua natureza supraessencial é eterna, e precede a todo tempo enquanto Princípio dos seres temporais. Uma causa será mais fundamental quanto mais for universal, e aquilo que é mais fundamental é mais venerável. Então, as Santas Escrituras comparam Deus, o fundamento universal, a um ancião (πρεσβυτέρος), símbolo tradicional daquele que é digno de reverência por conta de sua experiência e de sua sabedoria 

A fim de evitar qualquer tentação de se conceber o divino literalmente como um ancião, as Escrituras também o chamam de Jovem (νεώτερος). Os entes vêm e vão, uns antes e outros depois no tempo, mas o Princípio que dá origem a eles é atemporal, "anterior" e "posterior" a tudo que é passageiro, "antigo" por sua precedência ontológica e "novo" por seu poder criador inesgotável. Toda antiguidade e toda novidade que se apresentam no mundo têm em Deus somente a sua razão de ser.

Note-se, entretanto, que as Sagradas Escrituras não utilizam o nome "Eterno" (αἰῶνος) para designar exclusivamente a natureza divina que não tem início (ἀγένητος) e nem sucessão de qualquer espécie. Também é considerado eterno aquilo que é imutável, invariável e imortal, como é o caso da aeviternitas dos anjos que, embora criados, não estão submetidos ao fluxo temporal. Outro emprego de eternidade refere-se àquilo que é muito antigo, ou ao próprio curso do tempo tomado em sua inteireza, pois este mede as mudanças que sofrem os seres cambiantes deste mundo.

O filósofo neoplatônico Proclo (412/485 D.C.), no seu tratado "Elementos de Teologia", distinguia dois tipos de perpetuidade (ἀΐδιος): a eterna, característica daquilo que é um Todo simultâneo, simples e indiviso, que não implica qualquer mudança ou sucessão, e a temporal, que implica numa sucessão de momentos sem início ou fim. Dionísio parece supor essa distinção quando assevera que há a eternidade que significa a ausência de mudança (Deus e os anjos) e a eternidade que significa um processo perpétuo, o que define a essência do tempo.

Cuidadoso com o uso dos termos, Dionísio adverte que nenhum ser é coeterno com Deus (nem os anjos). Se assim fosse, a natureza divina supraessencial compartilharia um atributo, a eternidade, com outros entes. Na verdade, Deus transcende até mesmo aquilo que é eterno. Marsilio Ficino explica essa passagem mencionando o fato de que quando concebemos na inteligência um ser eterno, pensamos num estado particular que não é simplíssimo e primeiro. Ou seja, a transcendência divina não admite qualquer comparação, de modo que nenhum termo, por mais sublime que seja, pode ser aplicado a Deus sem o risco de reduzi-lo a um ente entre outros entes.

Assim, declara Dionísio, existem coisas que devem ser entendidas como realidades intermediárias entre a imutabilidade e a mudança, participando tanto da eternidade quanto do tempo. Abaixo delas, estão os seres temporais que vêm a ser e deixam de ser. No caso dos seres humanos, embora submetidos à mudança, a eles é prometida a participação futura na incorruptível vida eterna. 

Por fim, Deus é denominado "Tempo" por ser a origem e o fundamento da perpétua sucessão temporal. Simbolicamente, o tempo representa a inesgotável força produtiva divina, a Natura Naturans, a mítica cornucópia repleta de bens e de riquezas que se manifesta continuamente pela renovação das coisas. 
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domingo, 7 de setembro de 2025

Semyon Frank e o incognoscível no ser objetivo

"A realidade é incognoscível, misteriosa e maravilhosa não por causa da fraqueza de nossas capacidades cognitivas, nem porque está oculta ao nosso olhar cognoscente, mas porque sua composição, que está explicitamente presente diante de nós, transcende essencialmente tudo o que é expressável em conceitos, e é algo absolutamente diferente do conteúdo conceitual. Nesse sentido preciso, ela é essencialmente incognoscível."

SEMYON L. FRANK, O Incognoscível, p. 30

Quando tomamos o conhecimento de alguma coisa na realidade em seu significado filosófico, pensamos em conteúdos que podemos identificar e unir em conceitos. Se conheço o que é um cavalo, sei apresentar o conjunto de conteúdos, de características, que compõem o conceito de cavalo. Sob essa ótica, nada daquilo que se apresenta ao homem é incognoscível, já que o conhecimento aí significa a identificação de uma série de conteúdos cognoscíveis pela experiência.   

Obviamente, o conceito de cavalo não é a mera apresentação de todas suas características. Primeiro porque elas excederiam de muito a nossa capacidade de percepção e de identificação. Segundo, porque não se trata de uma soma de elementos ou de um feixe de percepções arbitrariamente recolhido e unido. O conceito de cavalo expressa uma ordem específica na qual seus elementos estão alocados segundo a disposição adequada para a realização de um Todo.

Nenhum ente pode ser o que ele é sem apresentar a ordenação própria que caracteriza o seu tipo ou natureza. Este cavalo não pode ser o que ele é se não apresentar a ordem específica de todo e qualquer cavalo. O conhecimento conceitual é possível porque há um aspecto de definição, no qual os conteúdos de um conceito são claramente diferenciados uns dos outros, e um aspecto de fundamento, no qual esses mesmos conteúdos estão unidos ordenadamente em uma unidade.

O conhecimento conceitual encontra seu limite, segundo mostra o filósofo russo Semyon L. Frank no segundo capítulo de sua obra "O Incognoscível", justamente nessa unidade que subjaz a todo ser objetivo. Não captamos uma gama de percepções variadas que posteriormente unimos num Todo. Ao contrário, captamos um Todo do qual distinguimos mentalmente os elementos que o compõem. Com sorte, conseguimos identificar a ordem geral das relações estabelecidas por esses elementos e expressá-la em um conceito.

Porém, a unidade concreta que o ser objetivo apresenta é ontologicamente anterior ao conhecimento conceitual e distintivo, embora possa ser expressa conceitualmente em termos de elementos diferenciados numa ordem determinada. Essa unidade metalógica, como Frank a denomina, ultrapassa o que pode ser expresso em conceitos abstratos, pois trata-se da unicidade que todo ser objetivo  apresenta concretamente, qualquer que ele seja. 

Consequentemente, há dois tipos de conhecimento implicados na experiência acima: o conhecimento abstrato, de segunda ordem, expresso em juízos e conceitos, e o conhecimento intuitivo, de primeira ordem, a percepção imediata do objeto em sua unicidade metalógica e indivisível. Existe semelhança e correspondência entre os dois, mas não identidade. Daí que, na sua fonte primitiva, a realidade é indizível e incognoscível. Os conceitos podem, no máximo, traduzir a unidade metalógica das coisas como a música é traduzida numa partitura.

Nada disso significa que a realidade seja absolutamente incognoscível ou que nossa capacidade cognitiva não tenha acesso à ela por conta de alguma insuficiência ou limitação intrínseca. Nossos juízos são verdadeiros na medida em que correspondem ao que há na realidade. Sob esse ângulo, o realismo conceitual é verdadeiro. O filósofo russo não defende o nominalismo, isto é, a negação absoluta da realidade dos universais. 

A partitura traduz uma peça musical numa linguagem diferente, mas é inegável que existe uma correspondência entre uma e outra. Não fosse assim, um pianista não conseguiria ler uma partitura e executar um Noturno de Chopin. Não obstante, a tradução e a música são essencialmente diferentes. A partitura expressa, em símbolos gerais e conceituais, a unidade da peça musical. Nossos conceitos e juízos expressam a realidade tal como ela é em seus aspectos mais universais sem que a unidade metalógica de cada coisa seja jamais esgotada. 

O Todo que primordialmente constitui as coisas não pode ser senão "traduzido", "transposto" ou "expresso" em conceitos. Seria errôneo, entretanto, conceber que se trate de duas realidades independentes, uma metalógica e outra lógico-conceitual. O pensamento separa em dois elementos aquilo que concretamente é uma só e a mesma realidade. Por meio de um "pensamento negativo", no qual as qualidades definidas do objeto são deixadas de lado, o conhecimento alcança a unidade transdefinida do objeto.

Não obstante seja inegável a realidade dos universais, os entes deste mundo são singulares, isto é, únicos e irrepetíveis. Este cavalo, hic et nunc, é diferente daquele outro cavalo. Nunca haverá dois cavalos idênticos. Essa individualidade é incompreensível para o pensamento que depende de conceitos que expressam universalidades. Temos o conceito do que é cavalo sem jamais conhecer conceitualmente um único cavalo na sua singularidade

Todo ente é único, não pode ser outro a não ser ele mesmo. Expressamos logicamente essa verdade ontológica pelo princípio de não-contradição: não é possível afirmar e negar um atributo qualquer a um mesmo ente ao mesmo tempo e num mesmo sentido. E cada ser é o que é e não outro justamente por seu caráter finito. O objeto A não é o objeto B porque A os dois estão "contidos" dentro de seus respectivos limites

Ora, se subimos na escala dos seres, percebemos que a unidade metalógica se expande cada vez mais até alcançar a totalidade dos entes. Quando deixa de considerar a diferença intrínseca entre os objetos A e B, o pensamento busca uma unidade superior que os reúna sem contradição. No seu grau máximo, todas as coisas estão reunidas na Realidade, unidade metalógica omniabarcante que transcende as diferenças entre as coisas finitas. 

A Realidade é transfinita. Engloba não somente aquilo que existe, mas também aquilo que ainda existirá. Sob esse prisma, é transbordamento, poder infinito, inabarcável, e, portanto, essencialmente incognoscível para o pensamento conceitual que só pode captar o que é distinto e limitado. O incessante vir a ser e deixar de ser das coisas constitui o aspecto temporal da Realidade para o qual não há nenhum limite ou fim. 

O dinamismo próprio do tempo escapa à estabilidade dos conceitos. A ciência somente consegue lidar com a passagem temporal transformando-a em algo encerrado. O movimento e o tempo medidos são sempre aqueles que já terminaram. Óbvio, há elementos de estabilidade em ambos, caso contrário nenhuma medição ou pensamento seria possível. Ocorre que a elusiva essência da duração temporal permanece incognoscível para o conceito.

O tempo exige a admissão do aspecto potencial da Realidade. O que não existia e passou a existir não pode vir do nada. Tudo o que vem a ser, não importa sob quais condições, era algo que residia no seio indefinido das possibilidades. Dado que só conhecemos aquilo que já existe (o que está limitado e definido), esse Urgrund dos possíveis é também incognoscível. 

A tentação racional é negar ou escamotear esse âmbito indefinido concebendo tudo como existente, estável e imutável. Assim, as doutrinas deterministas, físicas ou metafísicas, pretendem que o real é idêntico ao atual, e que todas as mudanças são aparentes. O que existe estava contido definidamente nas suas causas, semelhante à conclusão de um silogismo que está contida nas premissas. Do ponto de vista científico, que concebe a mudança somente como o que está terminado e definido, não há prejuízo para seus objetivos práticos.

futuro, enquanto não se atualiza, é indefinido e incognoscível. A predição do que acontecerá é possível porque o pensamento se concentra sobre os aspectos estáveis do real. Encarada sob o ângulo da produção de coisas novas, singulares e irrepetíveis, a Realidade exibe uma liberdade primordial da qual as coisas participam na medida em que são capazes de trazer à existência novos aspectos nelas mesmas ou em outros.

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Leia também: https://oleniski.blogspot.com/2025/05/semyon-frank-o-incognoscivel-e-o.html?spref=tw

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IX)

"Ao discutirem sobre as classes dos seres e sobre as Ideias, os platônicos frequentemente introduzem certos opostos: o mesmo e o outro, com relação à substância; o grande e o pequeno, com relação à quantidade; o semelhante e o dissemelhante, com relação à qualidade; e o repouso e o movimento, com relação ao ato. Os teólogos os atribuem a Deus por uma razão que os ultrapassa de muito."

MARSILIO FICINO, Comentários ao "Os Nomes Divinos"
 
À Causa Universal (τῷ πάντων αἰτίῳ), diz Dionísio Areopagita, são atribuídos os títulos de Grande (τὸ μέγα), Pequeno (τὸ μικρὸν), Mesmo (τὸ ταὐτὸν), Outro (τὸ ἕτερον), Similar (τὸ ὅμοιον), Dissimilar (τὸ ἀνόμοιον), Repouso (ἡ στάσις) e Mudança (ἡ κίνησις). Deus é Grande porque seu poder é infinito (ἄπειρόν) e, portanto, imensurável (ἄποσον), superando qualquer quantidade. Todos os seus dons, distribuídos às criaturas, não diminuem em nada, como acontece a um ser limitado e material que, dividido, fica menor do que era antes da divisão. 

Pequeno refere-se ao fato de que Ele "penetra" todas as coisas sem obstáculos. Qualquer coisa que possua algum tamanho, por menor que seja, não é capaz de estar em qualquer lugar. A extensão sempre ocupa algum espaço, de modo que será impedida de encontrar-se onde já houver outro naquele lugar. A Pequenez divina, no entanto, não é uma extensão material menor que todas as outras. É o poder criador que dá realidade a tudo o que existe sem jamais ser limitado ou obstaculizado por nada. 

Marsílio Ficino comenta que a Pequenez simboliza a simplicidade unida ao poder. Quanto mais uno algo é, mais excelso e superior ele é com relação ao que é múltiplo e dividido. A simplicidade da unidade, por exemplo, é o princípio do múltiplo, e contém em si, potencialmente, todos os números. Os elementos são os princípios que formam os compostos, e assim por diante. Quanto mais simples e indivisa a coisa é, mais ela atua como princípio de algo. Sendo infinito, Deus é simplíssimo, o Princípio de todas as coisas.

Ele é dito o Mesmo (ou Idêntico) porque é imutável (αμετάβλητοςna Sua absoluta unicidade supraessencial. Nos seres deste mundo, há sempre algo que permanece e algo que muda. A essência define o que uma coisa é, sendo, portanto, aquilo que não muda enquanto os aspectos acidentais variam. O cavalo é sempre cavalo, embora varie no tempo em seu tamanho, potência, maturidade, cor, etc. A estabilidade que existe nos seres imita a Identidade divina, ainda que imperfeitamente.

"Nele não há variação nem sombra de mudança", diz a Epístola de Tiago (1:17). Deus é invariável (αμετάπτωτος), puro (ἀμιγές), imaterial (ἄνυλος), inabalável (ἀῤῥεπές), simplíssimo (ἁπλούστατος) e independente (ἀπροσδεές). Nele não existe acréscimo (ἀναυξές) nem diminuição (ἀμείωτον). Não foi engendrado (ἀγένητος) por outro. Portanto, é autossuficiente (αὐτοτελὲς), eterno (ἀεὶ ὂν), sempre o mesmo (ταὐτὸν ὂν), e encontra em si e de si próprio, de forma única e idêntica, o fundamento de sua separação (ou do seu ser).

Dionísio faz menção aqui ao fato de que Deus tem seu fundamento na sua própria natureza. Aquilo que é engendrado ou causado, recebe sua realidade de outro. O termo causa sui (causa de si), utilizada por alguns filósofos e teólogos, tenta expressar inadequadamente essa absoluta autossuficiência divina. Mas o defeito dessa expressão reside no fato de que o que se deseja negar é precisamente qualquer dependência de Deus com relação a outra coisa. Ao se afirmar que Ele é sua própria causa, insere-se na natureza divina uma insuficiência ontológica que só cabe aos entes limitados.

Se algo tem uma causa, é porque não existe e nem pode existir a não ser pela agência de outro ente que já existe. No entanto, a "causa" de Deus não pode ser outro. Como dizer, sem contradição, que aquilo que depende de outro pode existir por si mesmo? O termo mais adequado, por conseguinte, para expressar a autarquia (αὐταρχία) divina seria ingênito (ἀγένητος) ou variações como incriado ou incausado.

A ordem do universo é fruto do Mesmo, pois o conjunto das coisas está unificado desde toda a eternidade no intelecto divino. Na sua natureza supraessencial, estão identicamente contidos, enquanto possibilidades, todos os opostos e riquezas deste mundo (coincidentia oppositorum). Encarado sob o ângulo da multiplicidade dos seres que existem, Deus é Outro (ou Diferença) porque está presente em todas as coisas pela sua providência (πρόνοια) enquanto princípio (ἀρχή) de tudo.

As coisas visíveis simbolizam a presença divina que é una, indivisível e invisível. De forma análoga, a alma está inteira presente por toda a extensão do corpo, mas se desejássemos imaginar as suas funções e representar cada uma delas por uma parte corporal, poderíamos dizer que o intelecto (νοῦς) seria simbolizado pela cabeça, a opinião (δόξᾰ) pelo pescoço, o ardor (θυμός) pelo peito, a concupiscência (ἐπιθυμία) pelo estômago e a natureza vital (φύσις) pelos pés e pelas pernas. 

A alma é una e indivisa, e seria errôneo pensar que ela possui partes materiais pelo fato de que a cabeça pode simbolizar o intelecto, etc. Trata-se de um único e mesmo poder que se manifesta em múltiplas funções e partes. A planta (ou projeto) de uma casa está presente em cada pedaço da casa construída sem que a planta, ela mesma, tenha partes materiais. O corpo, sendo material, é extenso e divisível, mas não a alma. 

A esse respeito, Marsílio Ficino comenta que Deus está presente em todas as coisas como uma única e mesma face está presente nas imagens refletidas em vários espelhos. Não haveria imagens se não houvesse uma face que as sustenta e permanece a mesma enquanto é refletida. Os bens individuais são como as imagens do Bem primordial. Outrossim, a unidade está integralmente presente em todos os números. 

Dionísio ensina que não se deve confundir o símbolo com o simbolizado, atribuindo a Deus os limites intrínsecos das coisas que o simbolizam. Ao atribuirmos a Deus comprimento, largura e profundidade, as propriedades definidoras do corpo, é mister purificar essas noções para compreender seu justo sentido quando aplicadas ao Princípio. O comprimento é seu poder que excede a tudo, a largura é sua emanação sobre todas as coisas e sua profundidade é a escuridão de seu mistério incompreensível.

Deus é chamado Similar quando encarado segundo a similitude que concede às suas criaturas, inclinando-as sempre a Ele. Todavia, Deus não é similar a nenhum ente. O rosto refletido no espelho não é semelhante à imagem refletida. Ao contrário, a imagem é que se assemelha ao rosto. Se Deus fosse semelhante a alguma coisa, ambos coincidiriam em alguns de seus aspectos. Isso é impossível, dado que Deus não é um ser limitado para participar com outros seres de um atributo qualquer.

Dois entes são semelhantes quando possuem alguns atributos em comum. Essa comunidade (κοινωνία) implica que ambos sejam comparáveis segundo certos aspectos. Supor que Deus se compare a um ser qualquer é reduzi-lo a uma coisa limitada. Os seres finitos é que, na medida que suas naturezas permitem, participam e dependem do infinito poder divino. Por isso, Deus é mais propriamente chamado de Dissemelhante por causa de sua natureza absolutamente incomparável.

O nome Repouso expressa a imutabilidade divina na qualidade de fonte última de toda estabilidade das criaturas. Contudo, o repouso não é uma condição a que Deus esteja submetido, como acontece com as coisas materiais deste mundo. Um corpo pode estacionar num lugar por um tempo e depois mover-se na direção de outro ponto. O repouso divino não é corporal ou espacial, mas significa o imutável fundamento metafísico de toda realidade

A atribuição da Mudança a Deus nas Escrituras expressa o poder de trazer as coisas à existência e sustentá-las pela sua providência em todos os momentos da duração temporal dos seres. O filósofo e polímata alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, na terceira parte de sua obra Essais de Théodicée, explica que "a criatura depende continuamente da operação divina, tanto no seu começo quanto após o seu começo. Tal dependência implica que ela não continuaria a existir se Deus não continuasse a agir." (385). 

A ação divina é imediata e atemporal, conquanto a permanência das coisas na existência seja temporal. A eficácia dessa ação criadora é representada pelo movimento em linha reta que vai direto de um ponto a outro sem nenhum obstáculo. O símbolo mais adequado dessa realidade, cremos, seria o movimento vertical descendente, o caminho que vai do céu à terra, o que o aproxima, quando deixamos de lado seu aspecto dinâmico, do simbolismo tradicional do Axis Mundi (eixo do mundo).

O movimento espiral simboliza a combinação da incessante criação e da estabilidade da natureza divina, pois a espiral move-se girando em torno de um eixo estável. Os seres são como ondas que "saem" do ponto central estendendo-se horizontalmente (isto é, na duração temporal) enquanto permanecem sempre unidas à estabilidade do eixo vertical, que representa o eterno poder engendrador e sustentador do Princípio. A serpente que se enrosca em torno da árvore do Paraíso.*

O movimento circular representa a Identidade de Deus. A circunferência não tem início ou fim em algum ponto, é autocontida, independente, e, por isso, é vista tradicionalmente como um símbolo da perfeição. Ademais, há um circuito da realidade no sentido de que as coisas "saem" de Deus e "retornam" a Ele sem jamais estarem separadas Dele. Os seres estão reunidos em Deus como os pontos opostos da circunferência são unidos pelo seu diâmetro e têm no centro sua origem.**

Por fim, depreende-se do Mesmo e do Justo que Deus é Igual (ῐ̓́σος). Ele se faz presente em todas as coisas igual e uniformemente, sem distinções. E qualquer igualdade que se manifeste no mundo estava contida na transcendente unidade divina.
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*Sobre esse tema, vide as observações de René Guénon nos capítulos 20 e 25 de sua obra "Le Symbolisme de la Croix".

**Em termos tridimensionais, cumpre recordar o simbolismo da esfera utilizado por Parmênides para representar o caráter totalizante do Ser. Na segunda definição do "Liber Viginti Quattuor Phisolophorum, Deus é "uma esfera infinita cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência está em lugar nenhum" (Deus est sphaera infinita cuius centrum est ubique, circunferentia nusquam).
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