PLATÃO, Timeu, 92c
O Corpus Hermeticum é uma coleção de dezoito discursos em grego que faz parte de uma pletora mais ampla de textos afins a qual ficou conhecida posteriormente como Hermetica. Os libelli que formam o Corpus remontam aos primeiros séculos da era cristã, e foram atribuídos a Hermes Trismegistos (Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, o "Hermes Triplamente Grande"), figura mítica que combina em si aspectos do deus grego Hermes, o mensageiro divino e psicopompo e de Thoth, divindade egípcia da sabedoria, da escrita, da magia e do julgamento.
A influência do hermetismo, enquanto tradição filosófico-religiosa, se fez sentir na alquimia, na magia, no neoplatonismo, e mesmo no cristianismo. Preservados pelos mil anos do Império Romano do Oriente, enquanto a Europa ocidental vivia a chamada Idade Média, os discursos herméticos foram traduzidos ao latim somente em 1463 pelo padre católico, filósofo neoplatônico e mago Marsilio Ficino, a pedido de Cosimo de Medici, antes mesmo que completasse a tradução dos diálogos platônicos.
A grande historiadora Frances Yates, em seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, mostra que o projeto de restauração religiosa de Giordano Bruno estava centrado em concepções greco-egípcias de uma prisca theologia contida nos escritos herméticos, os quais considerava serem mais antigos que a lei mosaica. Porém, em 1614, o filólogo e classicista Isaac Casaubon determinou que a data de composição do Corpus Hermeticum estaria entre os séculos III e IV da era cristã. Não obstante, o hermetismo permaneceu sendo uma das principais fontes (se não a principal) do esoterismo ocidental.
No artigo La Tradition Hermétique, publicado em 1931 na revista Le Voile d'Isis, René Guénon esclarece que o hermetismo é um conhecimento de ordem estritamente cosmológica, não da ordem metafísica pura. Portanto, não representa uma doutrina tradicional completa, mas sim um ponto de vista secundário e contingente de aplicação dos princípios metafísicos ao "mundo intermediário". No ano seguinte, na mesma revista, em artigo intitulado Hermès, Guénon reitera seu juízo sobre o hermetismo, acrescentando que
"De todo modo, deve ser bem entendido que não quisemos de forma alguma depreciar as ciências tradicionais que são da alçada do hermetismo, nem aquelas que lhes correspondem em outras formas doutrinais no Oriente e no Ocidente. Todavia, é necessário saber colocar cada coisa em seu lugar, e tais ciências, como todo conhecimento especializado, são somente secundárias e derivadas com relação aos princípios, dos quais não são mais que a sua aplicação a uma ordem inferior de realidade." (tradução minha do original em francês)
O próprio caduceu (κηρύκειον, "kerykeion"), o "cajado do arauto", que a tradição grega atribui a Hermes, simboliza o âmbito do hermetismo: duas serpentes (ou uma única serpente com duas cabeças) que se enrolam em espiral em uma bastão, e cujas cabeças se encaram mutualmente. O bastão vertical representa o Axis Mundi, o "Eixo do Mundo", que unifica e fundamenta todos os níveis da realidade, da Terra ao Céu. As duas serpentes que se encaram horizontalmente representam as dualidades e a manifestação dos diversos estados do Ser que são reunidos pelo "Eixo do Mundo".
Hermes, o Mercúrio romano, é uma divindade do intermediário. Na Grécia antiga, as estradas eram pontuadas por hermas (ἕρμα), pilares de pedra encimadas por cabeças esculpidas de Hermes e com um pênis na parte inferior, onde os gregos faziam libações e oferendas. O deus grego era o protetor dos arautos, dos ladrões, dos viajantes e dos comerciantes*, aqueles cujas atividades se dão na estrada, o medium que separa e une a um só tempo. No canto XXIV da Ilíada, Hermes guia e protege o incognito rei troiano Príamo na sua rota até à tenda de Aquiles, a quem implorará a devolução do corpo de seu filho, o herói Heitor.
O condutor realiza a união entre pontos distanciados, é um intermediário que possui a arte (τέχνη) da orientação não somente no espaço, mas também entre domínios da realidade. Hermes Chtonico é o psicopompo, o guia das psychai, invocado ao fim do terceiro dia da festa dionisíaca da Anthesteria para reconduzir os mortos que haviam entrado na cidade de Atenas aos campos de asfódelos no Hades, tal como narrado por Homero no canto XXIV da Odisséia:
"E o Auxiliador, Hermes, levou-as por caminhos bolorentos; chegaram às correntes do Oceano e ao rochedo branco; passaram além dos portões do Sol e da terra dos sonhos e chegaram rapidamente às pradarias de asfódelo, onde moram as almas, fantasmas dos que morreram." (tradução de Frederico Lourenço)
O caráter intermediário do hermetismo fica claro na doutrina da correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo da Tabula Smaragdina: "quod est superius est sicut quod est inferius, et quod est inferius est sicut quod est superius". O que está em cima é como o que está embaixo, e vice-versa. Existe uma simpatia (συμπάθεια, tema caro aos neoplatônicos)** que une todos os níveis do Cosmos, o deuteros theos (δεύτερος θεός, o "segundo deus"). Sejam eles simbólicos, cósmicos ou ontológicos, os vínculos que unem todas as coisas permitem que se passe de um nível a outro da realidade, desde que as transposições adequadas sejam feitas.
No Corpus Hermeticum, o quinto libellus de Hermes a seu filho Tat esclarece o aparente paradoxo de "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Trata-se de um discurso iniciático acerca do melhor dos nomes, que é Deus, e constitui-se numa ascensão ontológica que vai do manifestado ao imanifestado. O que é para muitos o imanifesto (ἀφανής, "invisível", "oculto"), vai se tornar para Tat o mais manifesto.***
Na tradição hindu, o termo sânscrito prādurbhāva significa "aparecer", "vir-a-ser" ou ainda "manifestar-se", e é geralmente empregado para designar aquilo que está no mundo de nāmarūpa ("nome-forma"), isto é, no mundo das limitações (upādhi) e das condições que constituem os seres. Por conseguinte, Brahman, o Incondicionado, o "Um sem Segundo", a realidade absoluta e fundamental, é, par excellence, o Imanifestado.
A maioria dos homens só consegue reconhecer o fenômeno (φαινόμενον, "aquilo que aparece"), o que pode ser testemunhado pelos sentidos. O fundamento da realidade visível, no entanto, é invisível. O orfismo atribuía a origem do mundo a Phanes (Φάνης), divindade nascida do "ovo cósmico", símbolo tradicional das potências cosmológicas enquanto ainda contidas no Princípio. Associado etimologicamente ao brilho e à luminosidade, Phanes simboliza a relação intrínseca entre o Cosmos e o visível.
Hermes Trismegistos afirma que Deus é ἀφανής, imanifesto, invisível. Isto é, ao contrário de Phanes, o "primeiro nascido" (Πρωτογόνος), Deus não é cósmico. Tudo o que é manifestado é engendrado, tem uma origem (genesis, Γένεσις), não existe desde sempre. Vir-a-ser, manifestar-se, implica ser engendrado, significa não existir desde sempre. "Pois não existiria sempre se não fosse imanifesto". A eternidade ou atemporalidade de Deus o distingue essencialmente das coisas manifestadas. O Cosmos é visível, e só comporta entes engendrados, temporais.
Note-se que já no Timeu de Platão são postulados dois axiomas fundamentais para a construção do Cosmos: "o que sempre é, e nunca vem a ser" e "o que vem a ser, e nunca é". O primeiro refere-se àquilo que possui absoluta estabilidade ontológica, e que, portanto, nunca passa por qualquer mudança. Em particular, não "vem a ser", não é gerado, engendrado em algum tempo.
O segundo axioma refere-se àquilo que "vem a ser", que é gerado, engendrado em algum tempo, e que, por isso mesmo, não possui estabilidade ontológica. Algo assim nunca é, nunca existe realmente, dado que não era, veio a ser, e depois deixará de ser. O que "é sempre" é conhecido pelo intelecto, enquanto o que "vem a ser" é conhecido pela sensação. Em suma, o sensível, o visível, o temporal, tem a sua tênue realidade ancorada ontologicamente no inteligível, no invisível, no atemporal.
Hermes Trismegisto prossegue dizendo sobre Deus que "sendo ele imanifesto, faz todas as outras coisas manifestas". O Princípio, é o fundamento das coisas limitadas e condicionadas justamente por não estar submetido às limitações e às condições dos seres por Ele originados. A afirmação seguinte, "como sempre existe, ele não é manifestado pelas coisas manifestas", parece negar o que foi prometido no início do discurso, a saber, que o imanifestado se tornaria a Tat o mais manifesto. A explicação para essa passagem é que as coisas não manifestam Deus tal como Ele é, fora de qualquer relação com elas.
As coisas são como lentes que permitem que o invisível seja visto, mas que "distorcem" em alguma medida aquilo que é visto. Se, por um lado, um objeto postado à longa distância só pode ser visto graças ao poder das lentes de um binóculo, por outro lado, aquele que vê o objeto deve descontar o efeito das lentes para fazer um juízo adequado da situação e não crer que o objeto esteja realmente próximo. As coisas revelam Deus na medida de suas capacidades. As suas limitações intrínsecas não devem ser atribuídas a Ele.
Sendo atemporal, Deus não é manifestado pelas coisas temporais. A razão ontológica disso é que a manifestação, o engendramento, é o modo de aparecimento próprio dos entes. O ilimitado não se manifesta enquanto ilimitado. Se o fizesse, tornar-se-ia limitado, o que é absurdo. O modo de "aparecimento" de Deus é o "desaparecimento" dos entes. Enquanto estes não são abstraídos, ultrapassados, nenhum conhecimento de Deus é possível.
"Pois a aparência sensível é somente dos engendrados. Por isso, nada mais é o engendramento do que a aparência sensível". O discurso hermético estabelece a implicação mútua entre ser sensível e ser gerado. É sempre sensível o ente que não existia e passa a existir (pela ação causal de outro ente que já existe). "E o inengendrado, plenamente e inaparente e imanifesto é Um". Deus é mónos (μόνος, "único", "sozinho", "desacompanhado"), não como indivíduo (ser numericamente distinto dos outros seres), mas como Princípio de todas as coisas.
Contrastando com a unicidade divina, as coisas sensíveis são múltiplas, e se manifestam em todas as coisas. Hermes Trismegisto exorta seu filho a orar ao Senhor (κύριος) e Pai (πατήρ), pois um só raio que seja lançado por Ele no pensamento de Tat em resposta à sua petição pode fazê-lo compreender tão grande Deus. "Pois somente a intelecção, e como sendo ela imanifesta, vê o imanifesto". Na filosofia grega, platônica ou aristotélica, a intelecção ("nóesis", νόησις) capta a Forma (εἶδος, no sentido de "padrão", "essência") das coisas individuais que são percebidas pela sensação (αἴσθησῐς, "aísthēsis").
O intelecto (νοῦς,"nous") é, ao mesmo tempo, o atributo que define o ser humano e a sua parte mais divina. É por meio dele que o homem possui ciência (ἐπιστήμη,"epistēmē") daquilo que é mais fundamental e universal nas coisas, e, portanto, mais verdadeiro e mais real. Os sentidos só percebem o sensível, o múltiplo. O intelecto apreende aquilo que, não sendo sensível, unifica e causa os entes sensíveis. Subindo na cadeia das causas dos entes, Deus é a causa universal de tudo o que há e pode haver.
Nos discursos anteriores do Corpus Hermeticum, Deus é repetidamente denominado Nous. Ele é o intelecto que produz todas as coisas, e o ser humano, dotado de nous é capaz de apreendê-Lo. O que está em cima é como o que está embaixo. O intelecto divino é refletido no homem como um objeto é refletido no espelho. A imagem guarda semelhança, embora nunca seja o objeto na sua inteireza. O nous humano é o Nous divino refletido no espelho das condições que definem o tipo de ser que é o homem.
"Se puderes, ele se manifestará aos olhos da mente, ó Tat". Caso seu intelecto seja forte o suficiente, preparado para isso, o Nous vai se revelar ao nous de Tat. "Pois o Senhor é livre para se manifestar através de todo o mundo". O termo grego "aphthónos"(ἄφθονος), que é traduzido aqui como "livre", é o antônimo de "phthónos" (φθονος,"ciúme" ou "inveja"), pode ser traduzido também por "liberalidade" ou "generosidade".
No Timeu, o mesmo termo ἄφθονος é atribuído ao Demiurgo (δημιουργός, "artífice"), o criador do mundo. A intenção era opor a "generosidade" (generoso é quem gera, genesis) do Demiurgo ao temido "ciúme" das divindades tradicionais. Na religião grega, o homem cuja vida fosse excepcionalmente feliz atrairia a "inveja" dos deuses, que o castigariam com a desgraça. O Nous é isento de mesquinhez, e gera todas as coisas sem reservas.
"Podes ver a intelecção e receber com as próprias mãos, e contemplar a imagem de Deus?". O conhecimento adequado de Deus não se dá pelos sentidos e nem pela imaginação (φαντασία, "phantasia", "fantasia"), que só pode combinar e recombinar os dados sensíveis guardados pela memória. A imagem (εἰκών, "ícone") que é objeto de contemplação (θεωρία, "theoria") não é sensível e nem imaginativa.
"Porém, o imanifesto está em ti e por ti". O Nous está em Tat. "Como, o si mesmo em ti mesmo, através dos olhos, será manifestado a ti?" De que modo é possível reconhecer o imanifestado naquilo que é manifestado é a questão a que vai se dedicar na sequência o quinto discurso de Hermes Trismegisto.
(continuará na parte 2)
...
* Note-se que o comerciante é um intermediador entre o que é produzido e o consumidor.
** A simpatia, por sinal, é o fundamento da magia segundo Plotino nas Enéadas.
*** Sigo basicamente a excelente edição bilíngue do Corpus Hermeticum Graecum do Prof. David Pessoa de Lira, publicada em 2023 pela editora Cultrix. Consultei também a tradução inglesa de Clement Salaman, Dorine van Oyen, William D. Wharton e Jean-Pierre Mahé, intitulada The Way of Hermes, de 1999.
2 comentários:
Excelente, pois o texto me esclareceu várias questões importantes da tradição mística ocidental, como o rosacrucianiamo, por exemplo. Parabéns e obrigado.
Adílio
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