"O singular é de per si incomunicável. Contudo, há comunicação entre os singulares, mas pelo que têm de universal, de comum. Toda coisa tem uma diferença individual e uma natureza universal. Se houvesse só a singularidade, não haveria assimilação, nem conhecimento."
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 49
Qualquer ente atua, opera, segundo o seu eidos. Só pode realizar e sofrer aquilo que está contido na sua estrutura eidética, no tipo de ser que ele é. Qualquer cachorro pode realizar e sofrer tudo o que é permitido dentro da estrutura eidética dos cachorros. Voar não está inscrito nessa estrutura eidética, portanto cachorros não voam. Resumindo de uma forma negativa, ninguém dá aquilo que não tem.
Os seres concretos que nos cercam possuem também uma estrutura hilética, isto é, são constituídos por componentes materiais que são ordenados segundo a estrutura eidética, que, por sua vez, pode ser substancial (intrínseca nos seres naturais como o cachorro) ou acidental (extrínseca nos seres artificiais como o relógio). Então, podemos pensar na estrutura eidética do cachorro fazendo abstração de todos os cachorros concretos, e nesse caso ela corresponderá puramente à espécie, ao gênero (no sentido ontológico, não biológico).
O cachorro concreto, por ser um compositum, um composto dessa estrutura eidética que ordena uma estrutura hilética, adquire uma realidade própria que é incomunicável a qualquer outro ser. Primordialmente, o cachorro difere de todos os outros seres (não é um ser humano, nem um gato, nem uma águia, etc.) por conta da estrutura eidética que determina/define o tipo de ser que ele é. Mas, além disso, todo cachorro é um cachorro, este cachorro hic et nunc, aqui agora, diferente de todos os outros cachorros que existem, existiram e existirão.
A estrutura eidética que pertence a todos os cães é individualizada, aqui e agora, neste cão concreto que possui características distintas de outros cães (cor, tamanho, etc.). Quando consideramos a estrutura eidética de todos os cães, ela é invariável. Quando consideramos a estrutura eidética concretizada nos cães individuais, ela adquire variabilidade. O meu cachorro é numérica e materialmente diferente do cachorro do meu vizinho, possui características individuais (temperamento, cor, tamanho, idade, etc.) e sofreu, sofre e sofrerá mudanças (internas e externas) que o distinguiram, o distinguem e o distinguirão do cachorro do meu vizinho (e de todos os cães).
Analogamente, em um ente artificial, a estrutura eidética imposta à matéria é sempre formalmente idêntica e invariável. Um oleiro que faz vasos aplica na massa amorfa sobre a qual trabalha sempre a mesma forma (o vaso) que possui em sua mente. Todavia, ao realizar essa operação, o artista individualiza o eidos na matéria gerando assim vasos concretos que serão igualmente vasos na sua estrutura eidética, mas que diferirão uns dos outros numérica e materialmente.
Este vaso aqui e agora é tão invariavelmente vaso quanto qualquer outro vaso, embora este possua características variadas que o distinguem dos outros. Por exemplo, a massa pode ser materialmente mais ou menos adequada para o vaso que o oleiro quer moldar, o que resulta em vasos que são melhores ou piores a depender do caso. Mais ainda, cada vaso sofreu, sofre e sofrerá mudanças, sejam internas ou externas, que o distinguirão individualmente de todos os outros. Este vaso sofre uma queda e se quebra, aquele não sofre uma queda, mas é demasiadamente exposto ao Sol, adquirindo uma coloração diferente da original, etc.
A variabilidade pertence à estrutura eidética considerada in concreto, no compositum, naquilo que Aristóteles denominava sínolo (συνόλων, aproximadamente "todo unido" ou "todo ao mesmo tempo"). Mário Ferreira distingue uma estrutura eidética concreta (variável em cada ser considerado individualmente) do eidos (a estrutura eidética invariável quando abstraída dos seres concretos). Uma não pode ser confundida com a outra sob pena de não se compreender o que é dinâmico e o que é estático nos seres.
O cão não pode possuir ao mesmo tempo a estrutura eidética de um papagaio, e o armário não pode possuir a mesma estrutura eidética da cadeira. O que não significa que a matéria da qual o cachorro é feito não guarde potencialidades que poderiam se atualizar com outras formas. O cachorro morre, deixa de ser cachorro pela corrupção corporal, e seus componentes (físicos, químicos, etc.) servem de matéria para outros seres vivos (vermes, plantas, etc.). O armário pode ser desfeito, e suas partes serem reutilizadas na construção de cadeiras.
Nem toda matéria é apta a realizar qualquer forma, há que haver proporcionalidade ou adequação entre ambas. Um transatlântico real não pode ser feito de papelão. Porém, toda matéria é apta a realizar alguma forma, inclusive algumas que não estão realizadas nela em um determinado tempo. É isso que permite as transformações que testemunhamos no mundo. A matéria que compõe um cão poderia compor outros seres vivos, e efetivamente vai compor outros seres vivos quando ele deixar de ser cão por conta da morte e da corrupção. A madeira do armário poderia compor outros artefatos, e efetivamente vai compô-los tão logo o armário seja desfeito e suas partes sejam reutilizadas para construir cadeiras.
A matéria recebe a estrutura eidética individuando-a, tornando-a este ou aquele. A humanidade, tomada mentalmente como universalidade, está presente inteira em cada ser humano, mas de modo individualizado, nos entes concretos João, Pedro, Maria, Paulo, etc. A humanidade nunca se manifesta concretamente enquanto humanidade, somente como estes ou aqueles indivíduos. Não haverá jamais no mundo "o vaso" (ou a "vasidade"), mas tão somente estes ou aqueles vasos.
O indivíduo, contudo, não é comunicável a outro. Pedro e João possuem individualmente tudo aquilo que é próprio da natureza humana (que é "comunicada" a eles ou "partilhada" por ambos). Pedro é tão humano quanto João, mas não existe uma "Pedreidade" que Pedro possa partilhar com João, e nem uma "Joanidade" que João possa comunicar à Pedro. O indivíduo, tomado na sua singularidade, não é compreensível em conceitos que englobam necessariamente outros indivíduos.
Este Pedro (nascido em tal local, em tal data, com aqueles pais, com tais e quais características físicas, etc.) é absolutamente único e irrepetível. Só podemos compreender Pedro naquilo que ele compartilha com muitos outros. Quando afirmamos que "Pedro é brasileiro", comunicamos seu pertencimento a um grupo humano específico: o brasileiro. Se dizemos que "Pedro é impaciente", comunicamos um aspecto psicológico que ele partilha com muitos outros seres humano: a impaciência.
Ao nos referirmos a Pedro, somos capazes de apontar várias de suas características físicas, psicológicas, sociais, biográficas, etc. Apesar de todas essas informações darem alguma ideia de como é Pedro, jamais chegaremos a uma "Pedreidade" no sentido de uma essência que, em tese, poderia ser compartilhada por outros. Os indivíduos não são esquemas eidéticos presentes nas coisas concretas, e, por conseguinte, não podem ser compreendidos abstratamente pela inteligência como o são os esquemas eidético-noéticos.
Mário Ferreira explica que "o que faz que a unidade formal, que há no indivíduo, seja incomunicável, não se deve a ser formal, mas à sua individuação, o que pertence à onticidade. Onticamente é incomunicável, porque o comunicável é apenas segundo o aspecto formal, que é o aspecto repetível."
Este Pedro é humano por que repete em si o mesmo padrão (a humanidade) presente em todos os seres humanos. Porém, este Pedro só é absolutamente idêntico a ele mesmo. Não há, e nem haverá, outro Pedro igual a este. Para que existissem concretamente dois "Pedros" seria necessário que houvesse alguma mínima diferença entre eles. Se não existe nada que diferencie Pedro dele mesmo, então não existe nada que possa ser abstraído deste Pedro e comunicado (ou aplicado, atribuído) a um suposto "outro Pedro".
Nenhum indivíduo pode ser repetido em muitos. Somente o aspecto formal possui essa faculdade. A humanidade não é um indivíduo, dado que está presente nos indivíduos humanos. Se a humanidade fosse um indivíduo, ela seria numericamente distinta de Pedro e de João do mesmo modo que estes são numericamente distintos um do outro. Haveria três indivíduos em vez de dois: Pedro, João e a humanidade. Excluída a universalidade que os unia essencialmente, Pedro e João não seriam mais humanos.
Dito de outro modo, em uma terminologia que o próprio Mário Ferreira não emprega, a realidade comporta condicionantes e condicionados. O condicionante é um estado que define as condições sob as quais um ente vai se manifestar concretamente. O condicionado é o ente concreto informado pelos condicionantes. A humanidade é um estado condicionante que reúne os atributos do que é um ser humano. Trata-se de um conjunto ordenado e permanente de camadas de limitação (que os hindus denominam Upādhi).
O estado condicionante não é este ou aquele ser individualmente. Ele é, façon de parler, o feixe de condições que torna possível que haja este ou aquele ser. Por exemplo, corporalidade é uma das condições implicadas na humanidade. Todo ser humano individual será, portanto, corporal. O erro fundamental daqueles que negam qualquer realidade às universalidades está em confundir o modo de ser dos condicionantes com o modo de ser dos condicionados: se Pedro e João são homens, então o que eles têm em comum (homem) será um "terceiro homem".
O modo de ser do estado condicionante tem que ser real para que o modo de ser do condicionado também possa sê-lo. O individual encontra o seu fundamento no universal. E se o fundamento é mais real do que aquilo que ele fundamenta, então, cremos, encontra-se aqui a positividade insuperável do platonismo. Em que pese o fato de que só existem concretamente os indivíduos, estes possuem seu fundamento em estados condicionantes cujo modo de ser, por definição, não está submetido às condições que impõem aos condicionados (os indivíduos).
Se negamos que a humanidade exista fora dos indivíduos humanos, daí não se segue que a humanidade seja irreal sob qualquer sentido. Certo, ela não existe individualmente como Pedro e João existem. Todavia, enquanto estado condicionante, a humanidade possibilita perpetuamente a existência desses indivíduos. O condicionado (o indivíduo) é o limite último, nec plus ultra, para além do qual não se pode descer. É o precipitado final que surge dos estados condicionantes.
Pedro, enquanto indivíduo, é incomunicável a outro. O individual é impartilhável, não pode ser transmitido inteiramente a um outro sem perder a sua individualidade. Posso partilhar um bolo com meus amigos, mas para isso tenho que dividí-lo, isto é, separá-lo em partes menores que o todo. O bolo perde a sua individualidade para ser partilhado. A humanidade não perde nada de si quando é "partilhada" em muitos indivíduos. Cada um destes será integralmente humano. Se a humanidade fosse um indivíduo, teria de ser dividida numericamente em Pedro e em João tal qual o bolo é dividido em porções a fim de ser distribuído aos convivas da festa.
Afirma Mário Ferreira que "o singular é o que é um em número; universal, o eidos do que é um". O ente concreto, encarado a partir de seu ser individual, de sua singularidade numérica, de sua heceidade (haecceitas, qualidade de ser "isto"), é incomunicável. Somente o universal é comunicável, sendo aquilo que o ente individual possui em comum com muitos. Negar a realidade do universal acarreta negar a possibilidade do conhecimento. O saber científico busca identificar o universal que explica os fenômenos singulares.
Uma fórmula da Física, por exemplo, expressa matematicamente a relação que se apresenta em diversos casos de um mesmo tipo. Se negamos a realidade dos universais, não haverá jamais dois casos sobre os quais aplicar a mesma fórmula ("pequena forma"). Cada ente singular será completamente diferente de todos os outros, seus atributos sendo irredutíveis a qualquer comunidade. Serão ilhas incomunicáveis e indizíveis. Como chamar dois entes de gatos se não há entre eles nada em comum?
Não obstante, nem sempre possuímos noeticamente (no intelecto) com precisão a estrutura eidética dos seres. Sabemos que gatos são diferentes de cachorros. Captamos as suas respectivas estruturas eidéticas, que são independentes de nossa mente. Não as produzimos ou as inventamos. Estão lá nos gatos e nos cachorros tornando-os o que eles são. Porém, nos referimos tentativamente ao quid ("o que é", quidditas) das coisas mesmo quando não conseguimos formular conceitos adequados para expressar as suas estruturas eidéticas.
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