"Quando o pote é quebrado, o espaço interior é absorvido no espaço infinito e torna-se indiferenciado. Quando a mente (mánas) torna-se pura, não percebo qualquer diferença entre a mente e o supremo Ser (Śiva)."
DATTATREYA, Avadhūta Gītā, Capítulo I, 16
"Pois aquilo que é transformado em outra coisa torna-se um com essa coisa. Se, então, sou transformado n'Ele de tal maneira que Ele me produz como a Seu próprio ser, um com Ele e não semelhante a Ele, pelo Deus vivente, então é verdade que aqui não há distinção."
MEISTER ECKHART, Sermão 6
Mestre Eckhart comenta no Sermão 6 a passagem bíblica do livro da Sabedoria (5,15) segundo a qual "os justos viverão eternamente, e sua recompensa está no Senhor". Quem são os justos dos quais fala o texto inspirado? São aqueles que dão a Deus aquilo que é Lhe próprio: a glória. Glorificam a Deus os que não buscam nada de seu no que quer que seja. Nem o bem, nem a glória, nem a concordância, nem o prazer, nem o interesse, nem a interioridade, nem a santidade, nem a recompensa e nem mesmo o Reino dos Céus.
O segundo sentido de justo se refere àqueles que recebem equanimemente o que quer venha de Deus, sejam elas grandes ou pequenas, agradáveis ou peníveis. Os justos não possuem absolutamente nenhuma vontade própria. No Céu ou no Inferno, tudo seria o mesmo. Eckhart não quer dizer com isso que o justo, que é a mais alta expressão da santidade, possa ser equiparado ao réprobo condenado merecidamente ao Inferno.
O que o mestre renano sinaliza com sua hipérbole é que o mais desesperador estado concebível de sofrimento seria aceito pelo justo tão equanimemente quanto o mais sublime estado concebível de gozo. Não são estados agradáveis ou desagradáveis que importam para o homem justo. Se desejasse um estado e rejeitasse o outro, estaria ainda preso às suas preferências, e não permaneceria o mesmo em tudo.
A equanimidade e a ataraxia (ἀταραξία, "imperturbabilidade") são tradicionalmente características definidoras do sábio. O imperador romano e filósofo estoico Marco Aurélio considerava que o homem deveria receber com absoluta imperturbabilidade e equanimidade qualquer situação que o Todo lhe trouxesse. A renúncia às avaliações e aos juízos sobre a realidade fundados nas preferências pessoais é o outro lado da identificação do sábio com a ordenação suprapessoal do Todo.
Os acontecimentos não são nem bons e nem maus, diz o estoico. São meramente o resultado da ordenação intrínseca que rege o Todo. Porém, o juízo pessoal sobre o que nos acontece é o que tinge os acontecimentos com as cores da ventura ou do infortúnio. Quando encarados a partir das razões do Todo, os mesmos acontecimentos são libertados da superimposição dos juízos e se apresentam segundo a sua natureza verdadeira.
Analogamente, o justo de Eckhart não possui vontade própria, não faz juízos sobre a realidade baseados nas suas preferências. Mas, diferente do sábio estoico, identificado com a ordenação cósmica do Todo, o justo é imperturbável e equânime porque está identificado com o Uno, o fundamento último e indizível da realidade no qual as dualidades são absorvidas e abolidas. Ausente a diferença, não nascem as preferências.
"Os justos viverão", diz a passagem bíblica. A vida é o maior bem de todos os seres vivos. Eckhart afirma que "o ser divino é a minha vida. Aquilo que está em Deus, deve estar em mim, e a entidade de Deus deve ser minha própria entidade" O termo que o mestre utiliza na passagem citada, em alemão medieval, é "isticheit"*, do qual a tradução e a interpretação são difíceis. Pode ser traduzido como "entidade" ou mesmo "talidade", o tal de um ente. Algumas traduções utilizaram "essência", cujo correspondente em Latim é "essentia".
Se o justo está unido ao Princípio, então nada pode haver de diferente do Princípio. O ser do homem se perde na istcheit divina. Assim como Deus, o justo não será igual ou semelhante a nada, uma vez que Deus mesmo não possui imagem e nem forma. Novamente, nenhuma preferência pessoal ou inclinação às coisas mundanas pode se formar quando só há o Pai na Sua eternidade inenarrável e inexprimível.
Tudo o que o Pai opera na Sua unidade originária e absoluta é Um. Na eternidade, o Pai engendra o Filho, e, por isso, engendra a própria alma do justo. Se este se identifica com Uno, então Deus engendra seu Filho, o Logos, e o justo numa única operação. Que fique claro que Eckhart em momento nenhum nega a diferença ontológica entre a geração do Logos e criação ex nihilo das almas e de todas as coisas contingentes. Essas afirmações têm sentido na alma totalmente mergulhada no Pai, e que por isso possui a operação una do Pai que é sempre a geração eterna do Filho.
"E o Pai, operando senão uma só obra, eis a razão pela qual ele me engendra enquanto Seu único Filho, sem nenhuma distinção." Tudo o que há no mundo é criado pelo Logos e no Logos. O justo, no seio do Pai, no Urgrung, no "fundo originário", testemunha o "momento" eterno no qual não somente o Filho é engendrado, mas também, por meio d'Ele, são engendradas todas as coisas, inclusive a si mesmo.
Tudo mais que a alma poderia desejar que não fosse o próprio Deus seria necessariamente algo infinitamente inferior a Ele. Se a beatitude fosse fundada na vontade, ela não seria una. A vontade implica separação, distinção. No amor, a alma entra em Deus. Ali, a alma é como a madeira lançada ao fogo, e que, absorvida e transformada, toma a natureza do fogo. Semelhantemente, Eckhart declara, "somos transformados em Deus, de modo a conhecê-Lo tal como Ele é".
Não obstante, nenhum discurso humano pode descrever a experiência da Unyo Mystica, tampouco definir o que é o Princípio. No Sermão 9, o mestre renano examina a definição formulada por um outro mestre segundo a qual "Deus é alguma coisa que necessariamente está acima do Ser". Nenhum dos entes que possuem ser, são temporais e espaciais, alcançam Deus em Sua sublimidade. No entanto, Ele está em todos os entes na medida em possuem ser, embora ultrapassando-os completamente.
Eckhart refere-se nessa passagem aos temas tradicionais da transcendência e da imanência de Deus. Não há disjunção entre, respectivamente, o fato de que Ele está acima de todas as criaturas e o fato de Ele está inteiramente presente em todas as criaturas. Ao contrário, é justamente porque Ele está presente, imanente, em cada um dos entes que Deus os ultrapassa, transcende, a todos. A razão disso é que aquilo que é uno em muitos (ένα στα πολλά) necessariamente deve estar acima das coisas.
Tomemos o exemplo da humanidade no sentido de essência humana. Em cada ser humano, quaisquer que sejam as suas características particulares (local de nascimento, cor, etnia, altura, etc.), a humanidade está presente una e inteiramente, ao mesmo tempo em que transcende os indivíduos nos quais se encontra. Platão e Sócrates são identicamente humanos na sua natureza, mas diferem enquanto indivíduos materialmente existentes. Isto é, a humanidade está imanente como natureza em cada indivíduo justamente porque os transcende a todos.
Do mesmo modo, a alma está presente indivisa em cada porção do corpo na qualidade de seu princípio de organização e de vida. Ela está presente tanto no ouvido quanto no dedão do pé, mas não como algo material, e sim como a ordem imanente que organiza a matéria e dá vida ao corpo. É o corpo que existe por causa da alma e não o contrário. A alma é o princípio pelo qual um corpo vivente possui existência. Por essa razão, a alma transcende todas as partes do corpo.
Cada período de tempo determinado é sempre diferente de outro período de tempo determinado. O instante presente, todavia, contém em si, enquanto princípio, todos os períodos de tempo. Qualquer medição temporal inicia-se em um instante e encerra-se em outro instante. É no instante presente, nunc instans, que Deus cria o mundo. Nessa simultaneidade atemporal, eterna, o Juízo Final está tão próximo quanto o dia de ontem.
Os exemplos acima ilustram a inseparabilidade da imanência e da transcendência. Analogamente, Deus está presente em tudo e transcende tudo. "Deus é alguma coisa que necessariamente está acima do Ser", ou seja, acima das limitações típicas dos entes. O Princípio não está submetido às limitações próprias do principiado e nem pode ser compreendido completamente a partir do principiado.
Eckhart prossegue seu sermão comentando em seguida a definição de outro mestre segundo a qual "Deus é alguma coisa que opera na eternidade, indiviso em si". Todo ente opera segundo o que permite a sua natureza. O que um ente pode fazer e pode sofrer é determinado pelo tipo de ser que ele é. O homem, por exemplo, sendo um animal, é capaz de locomoção, e sendo racional, é capaz de encadear raciocínios. A natureza humana não inclui, contudo, o poder de voar que alguns tipos de animais possuem.
Ora, esse princípio universal da natureza não se aplica a Deus. Ele opera acima do Ser, no Não-Ser, antes do Ser. Deus opera o próprio Ser. Nesse momento, Mestre Eckhart ascende aos cumes da metafísica, e contempla o poder divino que "antecede" (atemporalmente) todo e qualquer ente. Na tradição neoplatônica, o Ser tem seu fundamento no Uno, uma vez que todo ente é sempre um antes de pertencer a algum tipo. Um cachorro deve ser primordialmente um para que possa ser cachorro.
O Ser, assim considerado, é um princípio de limitação essencial, ou seja, é aquilo que define (portanto, circunscreve) o tipo (a essência ou a natureza) de um ente. Deus não cabe em nenhuma categoria, nada pode defini-lo ou circunscreve-Lo. Consequentemente, a operação divina é ilimitada e absoluta. A própria estrutura da realidade que dá existência a todos os entes limitados, tal como a testemunhamos, é "posterior" a seu fundamento derradeiro, Deus.
Os mestres grosseiros, afirma Eckhart, dizem que Deus é um Ser Puro. Ele está tão distante do Ser quanto uma mosca está distante de um anjo. Seria tão errôneo dizer que Deus é um ser quanto dizer que o Sol é pálido ou que o Sol é negro. Deus não é nem isto e nem aquilo Essas declarações do mestre alemão estão em consonância com o radical apofatismo neoplatônico. Compreender o que é Deus significa não compreendê-Lo.
Filho espiritual de Platão, de Dionísio Areopagita e de Meister Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, cerca de um século depois, utilizará a expressão Docta Ignorantia para designar o "conhecimento ignorante" que o homem pode alcançar acerca de Deus. O intelecto compreende propriamente aquilo que é formal (logo, limitado), mas o ser humano é capaz de vislumbrar o que está acima da forma, ainda que jamais possa traduzir esse conhecimento (ou experiência) em palavras ou em conceitos.
As categorias, as formas de predicamento pelas quais descrevemos os entes (substância, qualidade, quantidade, relação, etc.), não se aplicam a Deus. A substância, que designa basicamente aquilo que existe de forma independente de outros, possui mais realidade que a relação, que só se estabelece entre dois ou mais entes. Sócrates e Platão são dois homens, duas substâncias que existem de modo independente uma da outra. Platão é discípulo de Sócrates, e essa relação se estabelece por causa dessas duas substâncias, e depende delas para existir.
As categorias, que expressam diferenças entre as coisas, são absolutamente iguais na unidade divina. Eckhart expõe essa verdade dizendo que "em Deus, as imagens de todas as coisas são iguais, ainda que sejam imagens de coisas desiguais". A substância (que possui mais realidade) é igual à relação, e o anjo vale tanto quanto uma mosca. Eis a Coincidentia Oppositorum, segundo a expressão de Nicolau de Cusa, na qual todas as coisas estão contidas em Deus como possibilidades não efetivadas. Na unicidade absoluta do Uno só há o Uno.
Sequer podemos afirmar que Deus é bondade. Esta pertence ao Ser, ao mundo dos entes finitos. Só conhecemos o bom limitadamente, então Deus não é bom, nem melhor e nem o melhor. Toda gradação é uma relação de mais e de menos, e é estranha a Deus. Tudo isso que foi dito não está em contradição com a passagem evangélica na qual Jesus diz que só o Pai é bom? Mas, Eckhart pergunta, o que é o bom senão aquilo que comunica? Um homem é bom quando se comunica e se torna útil.
Deus é o que há de mais comum. O que quer que seja que alguma coisa comunique à outra, ela não o possui por si mesma, recebe-a antes de Deus. Para compreender a doutrina do mestre renano, é necessário entender que todo ente sempre comunica algo a outro ente. Há comunicações de vários tipos (verbal, corporal, etc.) a depender do tipo de ser em questão. No mínimo, no caso de um ser inanimado (uma pedra, por exemplo) ele comunica a seu ambiente imediato algumas de suas caraterísticas (dureza, impenetrabilidade, extensão, etc.).
Ser algo é sempre comunicar aquilo que é próprio do seu tipo de ser. Um ente absolutamente incomunicável não é um ente. Tudo opera segundo sua natureza (Agere sequitur esse). As operações de um ente são variadas, e não se restringem ao que ele faz ou causa em outro por uma ação deliberada. Uma pedra transmite a seu ambiente a sua presença, ainda que não o faça consciente e deliberadamente. Sob essa perspectiva, ser é operar, ser é agir e ser é comunicar.
Os entes possuem características, poderes, capacidades, potencialidades e atualidades que compartilham com outros entes, sejam eles de sua natureza ou não. Sócrates e Platão possuem inteira e individualmente tudo aquilo que está contido na humanidade. Sócrates e um prego, não obstante não partilharem da mesma natureza, são ambos igualmente extensos e impenetráveis. Os atributos de um ente estão sempre presentes em outros entes.
Ora, tudo o que pertence aos seres, e que eles comunicam uns aos outros, tem a sua origem exclusivamente em Deus, o único que comunica aquilo que realmente é Seu. É por essa razão que Deus é o que há de mais comum. Ele é o comunicante supremo. A clássica fórmula medieval "bonum est diffusivum sui" expressa a verdade de que o bem naturalmente comunica-se, difunde-se, não se encerra em si, não é inoperante.
Quando contemplamos Deus no Ser, nós O vemos em Seu pórtico. O pórtico é um espaço coberto que à frente da entrada de um templo. Se o Ser é o pórtico de Deus, isso significa que os seres estão à frente da entrada do templo, e este não seria outra coisa senão Deus voltado a Si mesmo, fora da "influência" das percepções, das imagens e dos conceitos que têm a sua origem nos seres limitados.
O filósofo e islamólogo francês Henry Corbin, no texto Théophanies et Miroirs: idoles ou icônes?, publicado em 1980 na revista Les Études philosophiques, resume bem a ambiguidade ontológica fundamental da imagem. Ao expor a doutrina do Mundo Imaginal do grande místico sufi persa medieval Shahab al-Din Suhrawardī, Corbin comenta o papel duplo da imaginação de ligação e de separação, uma espécie de entre-deux. Submetida aos dados da percepção, a imagem se presta a combinações que não ultrapassam o nível do sensível. Quando a serviço do intelecto, a imagem é uma mediadora entre o sensorium e o intellectus sanctus, o órgão de conhecimento dos místicos, dos visionários e dos profetas.
Henry Corbin explica:
"A ambiguidade da Imagem reside no fato de que ela pode ser, por um lado, um ídolo (no grego, eidolon), e pode ser, por outro, um ícone (no grego, eikon). É um ídolo quando estaciona sobre si mesma a visão do contemplador. Ela é opaca, sem transparência, permanece no nível daquilo de onde saiu. Mas é um ícone quando se trata de uma imagem pintada ou de uma imagem mental, quando sua transparência permite ao contemplador enxergar por meio dela para além dela, e porque aquilo que está para além dela não pode ser percebido a não ser por meio dela. Tal é precisamente o estatuto da Imagem denominada 'forma teofânica'." (tradução minha do original em francês)
As imagens são formas teofânicas, servem como teofanias, quando o contemplador consegue ultrapassar a imagem na direção daquilo que ela aponta. O mesmo vale para todos os entes da realidade. Eles podem ser tanto ídolos quanto ícones. Contemplado enquanto forma teofânica, o mundo é um espelho (no latim, speculum) que reflete limitadamente a fonte da Luz. Compreendida adequadamente, toda contemplação torna-se especulativa.
A imagem refletida corresponde parcialmente àquilo que é o seu modelo. Vemos refletido perfeitamente somente aquilo que o espelho tem capacidade de reproduzir. No caso de um homem à frente de um espelho, vemos o seu formato, as suas cores, o seu tamanho, etc. Sabemos, contudo, que esses aspectos estão longe de reproduzir o que é o homem na sua inteireza. A imagem no espelho não possui, por exemplo, a interioridade, a mente, e outros aspectos, que o homem real possui.
Os seres simultaneamente revelam e ocultam a sua Fonte. A porta que separa a casa da rua também une a rua à casa. Não à toa, os limites eram sagrados para os romanos, que os cultuavam sob o nome do deus Terminus. Ou ainda, Janus, o deus de duas faces opostas, simboliza a sacralidade do limiar, aquilo que separa ligando e liga separando. Na sua função teofânica, quando translúcidos, os entes deixam penetrar sem obstáculo a luz que os faz brilhar. São o pórtico do templo.
Quod est superius est sicut quod inferius, et quod inferius est sicut quod est superius, diz o axioma hermético. Só se ascende à Fonte passando pelos entes, mas é necessário cuidado para fazer as transposições corretas de um nível ontológico a outro. O mundo é uma teofania, uma iconostase, na feliz expressão utilizada por Henry Corbin. Porém, não se pode aplicar univocamente ao Absoluto os termos que são adequados somente aos entes, sob pena de criar também um ídolo.
Eckhart ensina que o templo onde Deus habita, e no qual brilha a Sua santidade, encontra-se no intelecto. A alma, entre as suas diversas potências, possui uma gota, uma faísca de intelecto. Essa é uma doutrina central no pensamento do mestre renano. Alain de Libera e Jeanne Ancelet-Hustache, ambos historiadores da filosofia medieval e estudiosos da mística eckhartiana, traduzem o termo alemão medieval vünkelîn para o francês como étincelle, o qual, por seu turno, pode ser traduzido como "faísca".
Na Escolástica, o intellectus (o νοῦς grego), é tradicionalmente entendido como a capacidade abstrativa característica da alma humana. Dotado de um corpo, o homem possui potências que estão mais ligadas à corporeidade (percepção, estimativa, imaginação) e uma potência cuja função é separar (abstrahere) dos dados perceptivo-imaginativos as Formas dos seres da realidade. Em outros termos, o intelecto capta o padrão próprio de cada tipo de ente, o que torna possível falarmos com sentido de gato sem nos referirmos a este ou àquele gato particular.
O intelecto é a parte mais divina do homem, a faísca que permite penetrar na opacidade dos entes sensíveis e divisar os padrões que fundamentam a existência individuada de cada ser singular. Interpretada platonicamente, a função do intelecto é retirar os obstáculos que as características individuais dos seres opõem à contemplação das Formas. Nenhum discurso sobre os fundamentos universais da realidade seria possível se a capacidade cognitiva humana se encerrasse nas composições da imaginação.
O templo de Deus se encontra no intelecto justamente por conta dessa capacidade de desnudar as coisas, de despi-las de sua materialidade e de sua individualidade. O homem que ama a Deus por Sua bondade ainda O contempla sob as vestes da vontade. A bondade, nesse caso, é um obstáculo ou um ídolo (segundo Corbin). O intelecto, superior à vontade, não contempla Deus sob nenhuma vestimenta. Ao contrário, ele O desnuda, retira-Lhe a bondade e até o Ser.
O intelecto ultrapassa o pórtico das criaturas e alcança Deus no templo, fora de qualquer referência ao mundo da limitação. A imagem tem a sua realidade mais propriamente naquele de onde ela sai do que no espelho na qual é refletida imperfeitamente. O espelho cai, quebra-se, e a imagem some. O modelo (a coisa da qual a imagem é um reflexo) permanece idêntico.**
Ademais, todo ente tem o seu ser exclusivamente graças ao intelecto divino. A beatitude, observa Eckhart, não é a bondade divina. A contemplação de Deus a partir da bondade é uma redução que capta o Absoluto sob as vestes de uma relação entre dois entes. O intelecto opera sempre na direção do interior, e quanto mais o seu objeto de intelecção é sutil e espiritual, mais ele é potente e sutil. Deus, desnudado de todo vestígio das coisas, Se faz um com o intelecto.***
O intelecto de Eckhart parece assumir uma função na união mística que ultrapassa as suas atribuições clássicas. Entretanto, é preciso recordar que nenhum discurso será jamais adequado para expressar a incompreensibilidade divina. O mestre renano luta ao mesmo tempo com as limitações da terminologia de sua tradição escolástica em particular e com as limitações da linguagem humana em geral. Ao fim e ao cabo, o silêncio é a única saída.
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* "Istcheit" é formado pela terceira pessoa do singular ("ist") do verbo "sein" ("ser") e pelo sufixo "cheit", que indica a essência de algo. Por exemplo, qualquer coisa que seja justa (gerecht) exibe o caráter geral e essencial da "justiça" (Gerechtigkeit). Porém, é preciso recordar que, em se tratando de Deus, a Sua infinita "istcheit" é absolutamente diferente das essências dos seres limitados.
** Compreendemos melhor a posição de Platão sobre as artes na República se nos recordamos que a imitação de uma árvore só é capaz de reproduzir alguns de seus aspectos, o que significa uma perda de realidade. Se os seres sensíveis são imitações individuadas das Formas (o que os torna suscetíveis à mudança, à geração e à corrupção), os objetos artísticos são imitações de imitações, implicando numa diminuição de realidade ainda mais acentuada.
*** Mutatis mutandis, a distinção que Eckhart formula entre as duas experiências espirituais tem semelhanças evidentes com a distinção vedantina entre Īśvara-Vidyā e Brahma-Vidyā.
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