quarta-feira, 1 de maio de 2024

Meister Eckhart, Deus e a nobreza do Ser

"A menor das coisas quando conhecida em Deus - o que significa conhecer uma flor na medida em que ela tem seu ser em Deus - é mais nobre que o mundo inteiro. Nele, aquilo que é mais humilde, ne medida em que possui ser, vale mais do que conhecer um anjo."

MEISTER ECKHART, Sermão 8

O místico e teólogo renano medieval Meister Eckhart, em seu oitavo sermão, versa sobre a passagem da carta paulina aos hebreus (11, 37) na qual é dito que os mártires foram "mortos sob a espada". Como de costume, o mestre renano interpreta o texto sagrado sob uma luz original e incomum. Em primeiro lugar, o trecho significa, tal qual Agostinho afirmava, que a mortalidade põe fim a todos os sofrimentos, e que a recompensa póstuma será abundante. 

Significa também que, sendo esta vida mortal, não se deve temer os dissabores e os trabalhos a que somos submetidos, visto que terão um fim. Mais, devemos nos portar como se mortos já estivéssemos, de sorte que nada pode nos atingir. O quarto sentido, o melhor, é que os mortos recebem um ser. Se Deus retira algo de alguém, sempre concede em retorno um dom ainda maior.

Agostinho afirmava que entre o ser, a vida e o conhecimento a coisa mais nobre era o conhecimento, dado que aquele que conhece necessariamente vive e existe. Visto por outro ângulo, a vida é mais nobre porque a árvore que vive é melhor que a pedra que meramente existe. Agora, quando se tem em mente o Ser, nu e puro em si mesmo, claramente este é superior à vida e ao conhecimento, pois é condição de possibilidade de ambos.

Nada é mais semelhante a Deus que o Ser. De fato, Ibn Sina (Avicena) afirma que em Deus nada há além do Ser puro e sem distinções. Deus não conhece nada a não ser o Ser, não ama e não pensa a não ser no Ser, que é o Seu âmbito, Sua propriedade exclusiva. Portanto, somente Ele pode dar realidade às coisas. O Ser é um nome primeiro. Estamos em Deus e somos semelhantes a Ele na medida em que nossa vida tem ser. Toda deficiência, consequentemente, é uma queda do Ser. 

Eckhart expõe aqui a doutrina filosófica tradicional de que nada há de mais alto e de mais fundamental que o Ser tomado em sua pureza. Os entes deste mundo podem todos diferir nas suas características essenciais, sendo todos de tipos diferentes. Porém, todos, sem exceção, para serem o que são, devem antes possuir existência. As suas respectivas essências distinguem os seres uns dos outros. O Ser, enxergado fora de todas essas diferenças, é o fundamento último dos seres. 

Nenhum nome pode ser mais adequado a Deus que o de Ser. O que quer que venha a ser em algum momento será sempre um ser determinado, e só possui alguma existência por causa de Deus. Sendo o Ser puro e sem nenhuma limitação essencial, Deus é o princípio primeiro de tudo o que há ou pode haver na realidade. Segue-se daí que o Ser é o âmbito próprio de Deus e Seu único objeto de conhecimento.

No que se refere ao conhecimento humano, tudo o que conhecemos é o Ser diversamente modificado, ou seja, conhecemos este ser ou aquele ser. Entretanto, no fim das contas, é sempre o único e mesmo Ser o objeto do conhecimento. Ninguém conhece aquilo que não há. Não é espantoso que o conhecimento divino seja primordialmente o conhecimento do Ser. A diferença reside em que o saber humano é adventício, antecedido pela ignorância, e o saber divino é absoluto e eterno.

Deus não conhece as coisas como objetos externos dos quais é necessário investigar as essências. Ele as conhece ontologicamente, na condição de sua causa e fundamento últimos. Então, Deus conhece as coisas conhecendo a Si como causa de tudo. Dito de outro modo, Ele as conhece sendo o Ser. Não há, portanto, qualquer outro objeto de conhecimento de Deus senão o Ser. A totalidade do que existe, do que existiu e do que pode existir é conhecido por Deus na absoluta unicidade do Ser.

A mais humilde criatura, qualquer que ela seja, afirma Eckhart, enquanto Ser, é mais nobre que todos os seres. O menor dos entes, quando visto em Deus, é mais nobre que o mundo inteiro. A afirmação do mestre renano pode parecer paradoxal à primeira vista. Tudo o que existe, ao tornar-se existente, pode ser encarado como algo externo a Deus. Mas quando uma mosca é vista como um ente, ela revela o Ser. Ela só existe no Ser.

Vistas a partir de seu fundamento no Ser, todas as coisas são só e puramente Ser. Em Deus, a mosca é Deus. No Princípio, os entes e suas diferenças somem, e só o Princípio permanece, puro e indiferenciado. A presença absoluta do Ser nos é acessível em toda e qualquer coisa que exista. Até o menor e mais rasteiro dos entes é uma porta para o Absoluto. Se víssemos todas as coisas em Deus, estaríamos ininterruptamente no Paraíso.

Agostinho ensina que quando os anjos conhecem as coisas sem Deus, estão sob uma luz noturna. Quando conhecem as coisas em Deus, estão sob uma luz matutina. Os anjos estão sob a luz do meio-dia quando conhecem Deus tal como Ele é em Si, puro Ser. O homem deve compreender que nada é tão nobre quanto o Ser, e que os entes todos desejam existir e manter a sua existência. 

Para Eckhart, um pedaço de madeira é mais nobre que o ouro, e uma pedra, no Ser, é mais nobre que Deus e a Sua divindade sem o Ser. A afirmação do místico alemão não significa que Deus possa ser inferior a alguma de Suas criaturas. Isso seria absurdo. Significa que sem o Ser, Deus é só uma palavra vazia, enquanto que um ente qualquer, por humilde que seja, na medida em que existe, está no Ser. 

Logo em seguida, Meister Eckhart diz que aquilo que deve ser conhecido só pode ser conhecido na sua causa. Nenhum ente pode ser conhecido por ele mesmo, a partir dele mesmo, mas sempre na sua causa. Essas afirmações reforçam e esclarecem o sentido da doutrina exposta acima sobre a nobreza dos entes no Ser. É preciso considerar que os entes, rigorosamente, não possuem nada que pertença a eles, nem mesmo as suas existências. 

Tudo o que existe, existiu ou pode existir tem seu fundamento em Deus. Se houvesse algo nas coisas que existisse sem ter a sua origem e sustentação no Princípio, esse algo seria ontologicamente independente de Deus. Eckhart e outros pensadores e místicos medievais não têm medo de considerar que, em si mesmas, as coisas são nada. Não são inexistências, obviamente. São nada no sentido de que jamais passariam a existir ou se manteriam na existência por obra de seu próprio poder.

Logo, conhecer as coisas sem Deus é ipso facto falsear a sua realidade. É atribuir subsistência própria àquilo que não possui nenhum poder de subsistir na existência. As coisas têm alguma subsistência única e exclusivamente porque jamais se separam de sua causa última. Os entes só podem ser conhecidos em razão de sua permanência na sua causa, e qualquer saber que exclua ou abstraia essa dependência ontológica radical é enganoso.

A alma humana, declara o mestre renano, deve se instalar no puro Ser, mas é primeiramente obstaculizada pelo tempo. Vivemos na dimensão temporal, e nossas atividades são todas realizadas umas após as outras. O tempo é sucessivo, e, portanto, múltiplo. Como em toda extensão, partes extra partes. No eterno, contudo, inexiste sucessão. Em segundo lugar, a alma sustenta contrariedades como a dor e o prazer, o branco e o negro. Os contrários não subsistem na absoluta unicidade do puro Ser.

A alma purificada ainda neste corpo é aquela pratica as virtudes e que sai da multiplicidade exterior das coisas que os sentidos informam.  Em sua interioridade, ela sai de uma vida dividida e ingressa em uma vida unificada. Sob a luz do intelecto, a alma nada conhece de contrariedades. E mesmo a inclinação para qualquer coisa deve morrer. Aquilo que possui inclinação por outra coisa morre e não pode subsistir. 

Ora, Meister Eckhart aponta para o retorno interior da alma à sua causa última, o Uno além de toda diferença. No intelecto, onde o inteligido e o inteligente são um só, a alma e Deus são Um sem segundo. Eis a beatitude suprema, o deserto silencioso. Nas palavras de Angelus Silesius, místico polonês do século XVII e filho espiritual do renano:

"Onde está a minha morada? Lá, onde eu e tu não somos/ Onde está meu fim último, aonde devo ir? Lá, onde não se encontra nenhum fim/  O que devo almejar, então? Ir além do próprio Deus, até um deserto." (O Peregrino Querubínico, 8)

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com) 

3 comentários:

Anônimo disse...

Maravilha de texto! Gosto muito do assunto. Lembra-me seu curso sobre Dionísio...

Ah, professor, aproveitando a oportunidade, gostaria de te fazer uma pergunta que espero não ser inconveniente:

Sei que o senhor não segue nenhuma religião abraâmica, mas crê na existência de um Deus puramente simples ontologicamente etc., crença muito, mas muito característica de religiões abraâmicas.

Como é para o senhor crer nesse Deus sem estar vinculado a uma dessas religiões? O senhor ora, fala com Deus, mantém um relacionamento com Ele?

Pergunto principalmente porque estou meio perdido sobre isso, visto que deixei o Catolicismo, sendo agora apenas um teísta clássico.

Abraço!

Atenciosamente,
Augusto

Kkkkk disse...

Oi, Rogério

Lendo o comentário do colega, lembrei de algo que gostaria de perguntar a você: você teria um ou outro livro sobre Deísmo pra recomendar pra quem tá iniciando o estudo desse tema?

~Greice

R. Oleniski disse...

Olá, Greice

Infelizmente, não conheço especificamente nenhuma boa introdução ao deísmo. Mas há diversos autores deístas como Voltaire (os iluministas em geral) ou, mais recentemente, Antony Flew. O livro dele sobre a existência de Deus, "There Is a God: How the World's Most Notorious Atheist Changed His Mind", talvez possa servir como uma introdução ao tema. Há uma tradução para o português (não sei dizer se é boa).

Neste artigo da Stanford Encyclopedia of Philosophy tem uma seção dedicada ao deísmo (Religion and Enlightenment) e ao final há uma bibliografia que talvez seja de ajuda: https://plato.stanford.edu/entries/enlightenment/

Abraços!