"Mateticamente, podemos expressar que a 'unidade é a propriedade que resulta da completude em si da entidade de alguma coisa'."
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 14
No terceiro capítulo de A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos trata dos temas da unidade e da divisão. Se a unidade inclui a negação da divisão, pois tudo o que é unidade é indiviso, o sentido dessa negação não é o da inexistência da multiplicidade. Tudo o que é múltiplo é constituído de unidades que, em si mesmas, são indivisíveis. A unidade não é uma privação de multiplicidade, mas, ao contrário, o seu fundamento.
A unidade é, mateticamente, a completude em si da entidade de alguma coisa, isto é, a coisa é completa em seu ser, em sua própria entidade. A unidade per se é aquela na qual as partes nascem em torno da realização do Todo, tal qual uma célula viva. A unidade per accidens é aquela na qual as partes são unidades que estão organizadas segundo um plano que é imposto do exterior, tal qual uma cadeira que resulta da imposição de uma ordem extrínseca a materiais preexistentes e independentes entre si.
A unidade per accidens, como a expressão latina indica, é uma unidade por acidente, ou seja, a sua completude é dada de fora para dentro, na junção de partes independentes (as verdadeiras unidades per se) segundo uma ordem imposta extrinsecamente, e que, por isso, nunca formam uma unidade real, substancial, ou, em outros termos, nunca formam um Todo de verdade. É apenas uma conjunção, uma união de entes reais, uma multiplicidade reunida artificialmente sob uma unidade.
Mário Ferreira toca aqui em uma questão tradicional da filosofia: o que torna um ente uma substância real? A coisa que se constitui em um Todo real é aquela na qual a sua unidade é natural, nasce de si mesma, e não de uma junção acidental de partes independentes. Seres humanos, por exemplo, são seres naturais, reais unidades. Um exército, embora formado de humanos, não pode ser uma real unidade, dado que é a junção de partes independentes entre si, e que não necessariamente estariam unidas não fosse, nesse caso, um objetivo externo comum, a defesa e o ataque em conjunto.
Não há uma unidade real onde as partes que compõem um Todo são elementos que existem de forma independente uns dos outros, e que são reunidos por uma força ordenadora externa ou por um fim externo às próprias partes. No artefato, as partes são unidas de fora para dentro como no caso de um relógio que é montado pelo relojoeiro com peças preexistentes. No organismo, as "partes" nascem em conjunto dentro do Todo, por diferenciações internas que nunca as tornam completamente independentes entre si.
Tudo quanto é, é um, afirma Mário Ferreira. Tudo o que tem ser é unidade. Ao afirmar a si mesmo, isto é, ao ser aquilo que ele é, o ente afirma a sua própria unidade. Portanto, ser e unidade são intercambiáveis. O princípio de não-contradição postula que não se pode afirmar e negar, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, o mesmo atributo com relação a um mesmo objeto. No fundo, esse modo de expressão lógico-formal é meramente negativo, só nega que algo possa ser e não ser o que é ao mesmo tempo.
Assim, afirmar que "João é pedreiro e João não é pedreiro" é contraditório, pois João não pode ser pedreiro ao mesmo tempo em que não é pedreiro (ao menos enquanto "pedreiro" tenha o mesmo significado nos dois casos). O princípio de não-contradição somente adverte que a afirmação e a negação realizadas simultaneamente ferem algo de absolutamente fundamental na estrutura da realidade.
O que é isso de fundamental na estrutura da realidade que é ferido pela afirmação e pela negação simultâneas de um mesmo atributo a um mesmo objeto? É o fato primordial de que um ente, ao ser X, nega todas as outras possibilidades de ser não-X. Há, antes de tudo, uma afirmação em todo ente que existe: "sou X", e essa afirmação, essa positividade, é seu simples ato de ser aquilo que ele é. Qualquer coisa, sendo o que é, afirma a si mesma, e, por conseguinte, nega ser qualquer outra coisa.
O princípio de não-contradição é apenas uma forma negativa de expressar uma verdade muito mais fundamental. Se não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo e no mesmo sentido o mesmo atributo com relação a algo, isso se deve ao fato mais fundamental de que tudo o que existe, ao existir, coloca somente a si mesmo na realidade, e esse colocar-se na realidade já é uma limitação que, consequentemente, exclui tudo o que não é ele mesmo.
Na verdade, é a afirmação de si que todo ente faz ao existir que exclui as outras possibilidades de ser. E ao afirmar a si, cada ente afirma a sua própria unidade, a sua integridade e completude. A indivisibilidade (conceito que é meramente negativo, isto é, que nega a divisão no seio de um ente), é derivada da unidade do ente que, ao existir, só afirma a ele mesmo. O fato verdadeiramente fundamental é que uma coisa, um ente, sendo o que é, afirma a sua unidade (e, portanto, seus limites próprios), o que implica necessariamente a negação de todas as outras possibilidades que ele não é.
Mário Ferreira mostra que uma unidade, qualquer que ela seja, afirma uma positividade, um ser que, pelo simples ato de se aquilo que ele é, possui a aptidão de distinguir-se de qualquer outro. O ser não precisa de outro para afirmar-se. Que algo seja distinto de outro não constitui a essência do ser e da unidade.
Alguns esclarecimentos se fazem necessários. A distinção que diferencia um ente de outro não corresponde propriamente à essência da unidade no sentido de que a distinção não é primária, mas decorre do fato de que o ente é uma unidade. O fato fundamental é a unidade, que se constitui em uma completude que contém em si tudo o que a coisa é. A distinção deste ente com relação aos outros entes se segue necessariamente da unidade, e não o contrário.
Não é a distinção que funda a unidade. Ao ser algo, o ente afirma a si mesmo, e, concomitantemente, se distingue de todo e qualquer outro ente. Então, não é a distinção que torna as coisas o que elas são. É a unidade, o ser da coisa, que torna um ente distinto de outro. Tampouco se pode dizer que primeiro o ente é uma unidade, e depois ele se torna distinto dos outros entes. Não. O fato mesmo de o ente ser o que é o torna necessariamente distinto de tudo aquilo que ele não é.
A distinção é uma relação que se estabelece entre os entes por causa da unidade que cada um deles é. A melhor maneira, e a mais segura, de conceber a unidade é concebê-la como uma completude em si mesma. Dessa forma, o que caracteriza a unidade está contido no próprio ente, e não em uma possível relação de distinção com qualquer outro ente. É certo que quando se trata de seres limitados, a unidade é também limitada, afirmando positividades que se distinguem das positividades de outros seres.
A lei do Ser, o logos do Ser, é a afirmação de sua unidade, diz Mário Ferreira. Poderíamos resumir, cremos, a tese do filósofo brasileiro dizendo que um ente, qualquer que ele seja, pelo simples fato de ser, afirma a unidade. Ser já é afirmar uma completude que, pelo menos aptitudinalmente, e, portanto, secundariamente, se distingue de qualquer outro ser.
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