Ora, o matemático, embora trate desses objetos como volume, linhas e pontos, não os trata como limites de corpos físicos, e nem os considera como atributos desses corpos. Em vez de pensá-los como aspectos pertencendo aos corpos, o matemático os separa dos corpos e os trata como se fossem entidades independentes. É óbvio que, por exemplo, nosso corpo possui limites, e nesse sentido podemos afirmar que os corpos possuem propriedades matemático-geométricas.
Considere-se a altura. Podemos ser mais altos ou mais baixos que outras pessoas, mas o fato mesmo de que temos uma altura, isto é, um limite mensurável, demonstra que podemos tratar esse aspecto de nossa pessoa em termos puramente matemáticos. Se tenho 1,80m, essa medida pertence ao meu corpo como algo que determina um dos limites que constitui o que sou. Evidentemente, essa medida não diz o que sou, mas diz quanto meço com referência à minha altura.
Enquanto o investigador permanece nesse âmbito, ele ainda está tratando essa medida no corpo, tomando-a como uma propriedade de um ente material. Quando, porém, o investigador separa essa medida do corpo que a possui e a estuda como se ela fosse independente, ele a trata matematicamente. Aristóteles fala aqui da operação intelectual conhecida como abstração (ἀφαίρεσις, aphairesis, no grego/abstractio, no Latim), que significa, grosso modo, "separar", "destacar". O que o matemático faz é abstrair, separar, os aspectos mensuráveis dos corpos físicos e estudá-los como se fossem entidades independentes.
Ao realizar essa operação abstrativa, o matemático, diz Aristóteles, separa intelectualmente esses aspectos do movimento. A mudança é uma característica definidora dos seres naturais, como visto anteriormente. A matemática, ao contrário, é imutável. O matemático, ao tomar os aspectos mensuráveis de um corpo como se fossem independentes, retira-os do âmbito da mudança. Nenhuma falsidade se segue disso, isto é, não há erro em realizar essa operação intelectual e em estudar as medidas de forma separada dos corpos.
É perfeitamente possível estudar os números e as suas relações independentemente de qualquer referência às coisas materiais. No que tange estritamente ao âmbito do mensurável e do calculável, a Matemática, por definição, não faz referência aos entes físicos. A validade das afirmações matemáticas reside na cogência das ligações lógicas encontradas entre os números ou entre as figuras geométricas. Se o matemático se limitar àquilo que pode ser mensurado ou calculado de forma independente dos corpos, nenhuma falsidade será encontrada nos seus estudos.
A distinção defendida por Aristóteles parece implicar não haver nenhuma aplicação da Matemática à Física. Se assim fosse, o filósofo macedônio estaria em franca contradição com o método que tornou a Ciência Moderna tão prolífica a partir do século XVII graças aos estudos de Galileu, Descartes e Newton, entre outros. De fato, os cientistas modernos frequentemente acusaram Aristóteles (ou melhor, o aristotelismo de seu tempo) de haver construído uma ciência falsa e estéril justamente por não reconhecer que o "Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos".
A justiça ou a injustiça dessas acusações por parte dos modernos não pode ser respondida facilmente e sem longo estudo. O que, no entanto, o próprio texto aristotélico mostra inequivocamente é que o filósofo e cientista macedônio estava longe de negar a possibilidade de aplicação da Matemática às coisa naturais. Se é verdade que a Física é uma ciência independente da ciência da Matemática (seja por seus princípios, seja por seus objetos de estudo), é igualmente verdade que existem ciências que combinam aspectos importantes das duas.
A Astronomia, a Ótica, a Harmonia (e a Mecânica, embora não seja mencionada no texto) são ciências que, segundo Aristóteles, pertencem ao "ramo mais físico das Matemáticas". De certo modo, elas são o inverso da Geometria, pois enquanto esta estuda as linhas físicas como se elas não fossem físicas, aquelas ciências (chamadas posteriormente de "ciências médias") estudam as linhas físicas sem separá-las dos corpos físicos.
O astrônomo, por exemplo, estuda os corpos celestes como objetos físicos de determinadas magnitudes que se deslocam espacialmente no céu visível. Não importa ao astrônomo estudar as dimensões de um planeta ou a sua trajetória no céu como objetos puramente geométricos, tal qual um geômetra investiga as propriedades da circunferência independentemente da existência ou não de coisas esféricas no mundo físico. Tampouco interessa ao astrônomo estudar um planeta como um objeto físico somente, buscando saber qual a sua natureza (no sentido da Física de Aristóteles).
O físico se pergunta o que é e do que é feito um determinado ente material, e o geômetra investiga as propriedades matemáticas desse ente material de forma completamente separada e independente. O que a Astronomia, a Harmonia e a Ótica (posteriormente chamadas de "ciências médias") estudam é o objeto físico considerado somente nos seus aspectos mensuráveis, matemático-geométricos, sem separá-los do objeto físico.
A fim de descrever o deslocamento de um planeta, a Astronomia não precisa teorizar sobre a sua constituição material. Para determinar o ângulo de incidência de um raio de luz sobre uma superfície, a Ótica não precisa conhecer a natureza da luz. A Harmonia não necessita de uma teoria sobre a natureza dos sons para realizar seus estudos. Em todos esses casos, não importa saber o que a coisa é, mas tão somente considerar e investigar o que é mensurável nos objetos materiais (altura, largura, comprimento, deslocamento espacial, ângulo, figura, etc.).
Na Física, a natureza dos objetos tem dois sentidos: um é a Forma (o que a coisa é) e o outro é a Matéria (do que a coisa é feita). Por essa razão, as coisas físicas não são independentes da matéria, tampouco são definidas somente pela matéria. Aristóteles ressalta que os filósofos naturais anteriores a ele geralmente estavam mais interessados no lado material das coisas. Mas mesmo o construtor não pode considerar somente a matéria com a qual vai construir uma casa deixando de lado a sua Forma (nesse caso, seu projeto, sua ideia).
Se a arte de construir imita a Natureza, então o físico deverá estudar tanto o aspecto formal quanto o aspecto material nos objetos deste mundo. Os meios para realizar algo fazem parte do mesmo tipo de conhecimento que o fim que se deseja realizar. No caso do construtor, os meios são os materiais que ele vai utilizar (que devem de ser adequados ao fim que ele almeja) para erguer a casa. No caso das coisas naturais, o fim (o objetivo ou finalidade) é a própria natureza, ou o estágio final para o qual tende a mudança do ser natural.
O timoneiro conhece e prescreve qual o tipo de remo que se deve utilizar (possui a arte do uso adequado da coisa), e o fazedor de remos sabe qual tipo de madeira adequada para aquele tipo de remo (possui a arte diretiva da produção). Na arte, o produtor cria o material ou o utiliza para seus fins. Nas coisas naturais, por contraste, a matéria já está presente de modo indissolúvel desde o início. O físico deve conhecer a matéria como o médico conhece o tendão e o ferreiro conhece o bronze, isto é, deve entender o seu propósito, ou, em outros termos, a adequação do tipo de matéria à natureza de cada coisa.
A analogia de Aristóteles salienta uma semelhança fundamental entre a arte (a produção de algo) e a ciência física: em ambas, é necessário que se conheça tanto a Forma quanto a matéria. O construtor precisa conhecer tanto a Forma (ter no intelecto a casa que deseja construir) quanto o material adequado a esse fim. Em certo sentido, é a Forma da casa que dirige as ações do construtor sobre a matéria. Contudo, se o material não for adequado, a casa não poderá ser erguida.
Analogamente, na Natureza há elementos formais e materiais. A diferença é que não há um construtor que imprime uma Forma na matéria preexistente. Na coisa natural, Forma e matéria vêm sempre juntos, são aspectos concomitantes da sua constituição. O físico, diferentemente do construtor, não deseja produzir ou construir algo. Mas mesmo assim, ele precisa, como o construtor, conhecer tanto o aspecto formal quanto o aspecto material daquilo que ele estuda.
Pois o ente natural não é somente Forma e nem somente matéria. Embora esta deva ser estudada na medida em que se presta à realização da Forma concretamente. Por exemplo, conhecendo a natureza de um animal, o biólogo pode entender por qual razão ele possui um determinado tipo de estrutura óssea. Ou seja, a matéria está submetida à Forma, e não o contrário. O físico, portanto, se interessa pelas coisas cujas Formas são separáveis (abstração) pelo intelecto, mas que não existem no mundo separadas da matéria.
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Um comentário:
Muito bom o texto E talvez o próximo passo seria saber o que faz a matéria adotar determinada forma... Ou seja por que os objetos tem formas diferentes entre si...Será que o conceito de entropia do universo consegue sozinho explicar essa questão? Sempre tem algo bom p ver aqui 😄
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