"Lemuel indicou o apartamento com um movimento de sua mão.'Todos esses aparentes objetos - cada um tem um nome. Livro, cadeira, sofá, tapete, lâmpada, cortinas, janela, porta, parede, e assim por diante. Mas essa divisão entre objetos é puramente artificial. Baseado em sistema de pensamento antiquado. Na realidade, não há objetos. O universo é, de fato, uma unidade. Temos sido ensinados a pensar em termos de objetos. Essa coisa, aquela coisa. Quando Null-O é percebido, essa divisão puramente verbal cessa. Sua utilidade foi há muito ultrapassada.'" (tradução minha)
PHILIP K. DICK, Null-O, p.138, in The Collected Stories of Philip K. Dick, vol. 3
Null-O é um conto de ficção científica publicado por Philip K. Dick em 1958 sobre seres humanos completamente desprovidos de empatia que crêem que a realidade é absolutamente destituída de qualidades que distinguiriam os objetos entre si. Isto é, nenhum objeto é real, mas somente resultado da aplicação de categorias de pensamento humanas e subjetivas que não possuem nenhuma correspondência com a verdade última.
Dado que o mundo não é constituído de objetos, tudo não é mais do que uma unidade indistinta e todas as diferenças que atribuímos às coisas não passam de flatus vocis, diferenciações meramente verbais. A doutrina Null-O é, poder-se-ia afirmar, uma espécie de nominalismo inverso. Enquanto os nominalistas medievais afirmavam que somente os indivíduos são reais, sendo todos universais termos vazios, os adeptos de Null-O consideram real somente uma unidade universal que nega todo e qualquer objeto singular.
Diante de tal verdade, os Null-O consideram insuficiente uma redução eliminativa da realidade somente teórica. Ou seja, não basta saber o que a realidade é uma unidade destituída de quaisquer diferenciações, é preciso transformá-la efetivamente no que ela é. Talvez o melhor termo seja revelá-la do modo como ela realmente é.
Todavia, a questão é saber como é possível reduzir todas as diferenciações e qualidades que apresentam-se empiricamente a nossos sentidos a uma unidade última e indiferenciada. O único meio é a destruição de todo e qualquer objeto. E é exatamente isso que os Null-O pretendem fazer com o uso de bombas cada vez mais poderosas.
Destituídos de empatia, eles não sentem nenhuma compaixão pelos seres humanos normais, seres desprezíveis comandados pelas emoções e apegados a um sistema de pensamento que cria a ilusão da diferenças entre as coisas e, portanto, as bases lógicas para qualquer valoração. Infiltrando-se aos poucos nos governos mundiais durante décadas e manipulando secretamente os recursos de seus países, os Null-O alcançaram o poder mundial e, por conseguinte, as condições necessárias para a realização de seu projeto.
No conto de Philip Dick, os Null-O conseguem destruir parte considerável da Terra e pretendem destruir a galáxia e, por fim, por mais improvável que pareça, o universo. Mas eles acabam derrotados por um grupo de humanos normais rebelados contra os planos reducionistas dos cientistas Null-O.
Evidentemente, a trama reflete o temor de uma destruição em escala mundial por meio das bombas atômicas durante a Guerra Fria. Outros temas interessantes são veiculados, como a relação entre as partes e o todo, a empatia como característica humana fundamental e a natureza da realidade, este último sendo a obsessão de Dick por toda a sua vida.
O Null-O afirma que o mundo sensível, com suas diferenciações e qualidades, não corresponde à realidade, mas é somente o produto acidental da projeção de categorias subjetivas a uma unidade indiferenciada última. Na definição de um de seus adeptos, o universo não é mais do que "um vasto e indiferenciado domínio de pura energia". Em suma, a única realidade é aquilo do qual tudo é constituído e toda diferenciação é ilusória.
Tales de Mileto, na Ásia Menor do século VI A.C. já afirmava que tudo era água. E o caminho da ciência ali inaugurada passa pela tentativa de unificação dos fenômenos. Sem dúvida, a ciência busca a unidade na pluralidade, a regra geral que explica o comportamento dos entes singulares que a nós apresentam-se pelos sentidos. E uma das questões clássicas da filosofia sempre foi o problema do uno e do múltiplo. "A unidade provêm da multiplicidade ou a multiplicidade da unidade?", eis uma das perguntas fundamentais da investigação filosófica.
Afirmar a multiplicidade absoluta sem unidade é negar as óbvias semelhanças entre os entes e, portanto, seu caráter de unidade. E afirmar a unidade absoluta é o erro oposto, isto é, negar as diferenças óbvias entre as coisas que nos chegam pelos sentidos em nome de um monismo radical (uma só realidade) que torna tudo ilusório.
A doutrina de que tudo é água não necessariamente conduz à negação de toda diferença, assim como afirmar que uma cadeira, uma mesa e um armário são todos de madeira não é negar que cadeiras, mesas e armários são qualitativamente diferentes, isto é, cada um deles é um tipo de objeto com características e funções próprias irredutíveis a seu constituinte material. A cadeira não é explicada, enquanto cadeira, pela madeira da qual é feita. Embora a madeira seja parte necessária do que é esta cadeira.
Os Null-O são presas de um reducionismo eliminativo radical. A cadeira nada mais é do que a madeira. Sua posição teórica é uma escolha ontológica acerca do que é fundamental na realidade. Só há uma substância na realidade e ela é indiferenciada e sem qualidades. Qualquer coisa que pareça um ente diferenciado é uma ilusão.
Os atomistas gregos diziam que só há átomos e vazio, todo o resto perceptível pelos sentidos não sendo mais do que configurações passageiras desses átomos eternos. A questão que se apresentava a esses pensadores era saber como nossos sentidos captam objetos com qualidades e diferenciações se, no fundo, a realidade é formada por entes sem qualidades, dotados somente de forma geométrica. De modo análogo, como é possível que uma realidade indistinta dê origem a um mundo dotado de distinções e de diferenças?
A afirmação de que toda diferenciação é ilusória atinge também aos adeptos do Null-O, já que eles mesmos não são mais do que aquela unidade indiferenciada. O que vale para seus corpos, vale também para seus atos, suas escolhas, seus pensamentos e assim por diante. Mas essas sutilezas filosóficas não os impedirão de buscar o retorno à indistinção universal. Ao fazê-lo, conspiram contra si mesmos. O fim do universo é também o seu suicídio.
Sua doutrina demonstra um anseio pela unidade que manifesta-se como indiferença pela multiplicidade. Se os Null-O fossem capazes de sentimento, poder-se-ia dizer que sua doutrina manifesta ódio pelo múltiplo. E se o mundo é uma unidade subjacente que sustenta diferenciações internas, o Null-O prega a destruição do mundo.
Múltiplo como apresenta-se, o mundo não é bom, dizem os Null-O. É ilusório, fruto da alucinação coletiva de seres miseráveis e primitivos. Há que se livrar dessas ilusões e desses apegos meramente humanos. Ainda que para isso seja necessária a obliteração de tudo. Como muitas doutrinas do século XX, o Null-O é uma doutrina de realização da teoria por meio da violência e da destruição. A acosmia é melhor do que o cosmos.
E o que concede autoridade aos Null-O é que eles sabem. A seus próprios olhos, são uma elite intelectual. Portanto, não podem submeter-se aos primitivismos dos seres humanos comuns que apegam-se emocionalmente a coisas. Os Null-O são lógicos, científicos e racionais. O "conhecimento" é autoridade e licença para a realização desimpedida de seus objetivos.
O conto de Philip K. Dick parece afirmar o vínculo entre a percepção da realidade das diferenças e a afirmação de seu valor intrínseco. Desprovidos de emoções e de sentimentos, os Null-O só podem encarar a realidade como um todo indiferenciado no qual nenhum ente possui valor em si mesmo. Na verdade, eles são cegos para um aspecto essencial da realidade e tomam sua cegueira não como uma patologia, mas como evidência de sua superioridade intelectual.
O Null-O é como um cego que quisesse libertar das suas ilusões os cativos na caverna do mito platônico. Sua consciência está patologicamente fechada para um domínio inteiro da realidade e como essa mesma realidade não obedece aos ditames de sua percepção peculiar, ela deve ser reformada, reduzida e resumida àquilo com que o Null-O consegue lidar. O resultado é a nulidade absoluta.