sábado, 22 de novembro de 2014

Islâmicos, cristãos e as traduções medievais de Aristóteles



"A magnífica abadia de de Mont-Saint-Michel é conhecida por haver sido um centro de saber entre os séculos X e XIII. Sua oficina de cópia, o scriptorium, cujo tamanho pode hoje ser avaliado, produziu centenas de manuscritos, grande parte dos quais se ocupava da cultura literária e científica da Antiguidade. E foi em seu interior, ou nos seus arredores, onde na primeira metade do século XII traduziram-se as obras de Aristóteles diretamente do grego ao latim graças ao esforço de diversos homens, desgraçadamente quase todos anônimos. Estes tradutores foram, várias décadas antes que seus colegas ligados a Toledo, os pioneiros da difusão da filosofia aristotélica na Europa. Outro elemento importante: não limitaram-se somente traduzir, mas foram também artífices dos primeiros comentários da obra obra do Estagirita."

SYLVAIN GOUGUENHEIM, Aristote au Mont-Saint-Michel


O livro do historiador e medievalista francês Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel, publicado em 2008, criou acalorada polêmica na academia por suas teses centrais que negavam o protagonismo muçulmano na difusão da cultura grega na Idade Média e a importância das traduções árabes de Aristóteles no desenvolvimento filosófico-científico da Europa ocidental naquele período.

Gouguenheim afirma em sua obra que, a bem da verdade, nunca houve um completo desaparecimento da cultura greco-romana no ocidente latino, que os europeus mantiveram consciência de sua origens na Antiguidade e que buscaram avidamente - sempre que as condições materiais permitiam - recuperar essa cultura através de manuscritos originais ou de traduções das grandes obras do passado clássico.

O desastre da queda do Império Romano do Ocidente não cortou definitivamente as cadeias que ligavam os medievos aos seus antepassados e em muitas regiões alguma herança permaneceu viva. O autor identifica a sobrevivência de parte dessa cultura greco-romana no início da Idade Média em lugares como a Sicília, Salerno, Ravena e Roma.

Ademais, a cultura helênica clássica jamais morreu em Bizâncio - o Império Romano do Oriente -, o que representou para os ocidentais uma contínua oportunidade de recuperação de manuscritos e obras gregas. Ainda de acordo com Gouguenheim, houve inclusive um período de grande estudo de Aristóteles em Bizâncio entre os séculos IX e XII empreendido por intelectuais de escol como João Filoponus, Miguel Psellos, Fócio (Patriarca de Constantinopla), Miguel de Éfeso e Ana Comena.

O Ocidente não privou-se de  iniciativas próprias de resgate da herança grega. O "renascimento carolíngio" - obra de Pepino, o breve, e de Carlos Magno - teve como centro a tentativa de emular nas artes e nas letras a cultura cristã clássica embebida do mundo grego da Antiguidade. Tal empreendimento mereceu o título de "humanismo carolíngio".

Em torno do ano 1000 acontece uma redescoberta da dialética e da lógica aristotélicas que irá influenciar grandemente a cultura teológica do século seguinte, marcado pelo rigor lógico no tratamento das questões teológicas como testemunhado pelas obras de Pedro Abelardo e Anselmo de Cantuária.

Não obstante, é no século XII que acontece o renascimento mais radical da cultura grega no Ocidente impulsionado pela avalanche de traduções que tornaram acessíveis a obra completa de Aristóteles e todo um vasto conjunto de textos clássicos em matemática, medicina, astronomia e outros campos do conhecimento. E é no que tange aos acontecimentos desse período que Gouguenheim vai discordar mais contundentemente de seus colegas medievalistas.

Até o século XII as obras de Aristóteles traduzidas para o latim limitavam-se a alguns tratados do Órganon como, por exemplo, o Categorias e o Primeiros Analíticos. Todo o resto da produção filosófico-científica aristotélica permanecia desconhecida no ocidente. A tese mais aceita para a transmissão da obra aristotélica ao Ocidente é aquela segundo a qual tais obras chegaram aos latinos via Espanha ocupada pelos muçulmanos graças a um esforço de tradução das mesmas do árabe para o latim no século XII.

Gouguenheim ataca essa versão dos acontecimentos e afirma que, na verdade, por mais importantes que fossem essas traduções árabes, elas foram obra não de muçulmanos, mas de cristãos orientais e que as traduções feitas para o latim a partir do árabe foram precedidas em algumas décadas por traduções feitas diretamente do grego por monges cristãos ocidentais.

Hunayn Ibn Ishaq, Ishaq Ibn Hunayn, Teodoro Abu Qurra e Yuhanna Ibn Masawayh, entre outros, foram tradutores cristãos siríacos - e também médicos, teólogos e filósofos - que desde o século IV traduziram importantes obras da filosofia e da ciência gregas para o siríaco (língua próxima do aramaico e falada no norte da Arábia, sul da Turquia, Jordânia, Síria, Irã e Iraque) e que depois, a partir do século VII, traduziram-nas para o árabe, criando assim todo o vocabulário científico-filosófico que os falasifa islâmicos utilizaram a partir dos séculos X e XI.

Nas palavras de Gouguenheim:


"Durante mais de três séculos, entre o VII e o X, portanto, a 'ciência árabe-muçulmana' do Dar al-Islam foi em realidade uma ciência grega, por seu conteúdo e sua inspiração, e siríaca - e depois árabe - por sua língua. A conclusão é clara: o Oriente muçulmano deve-se praticamente todo ao Oriente cristão."


Sylvain Gouguenheim afirma - e essa é uma de suas teses centrais de seu livro Aristote au Mont-Saint-Michel - que as traduções das obras aristotélicas a partir do árabe realizadas em Toledo no século XII foram precedidas em algumas décadas por traduções feitas diretamente do grego por monges da abadia francesa de Mont-Saint-Michel, entre eles o misterioso Tiago de Veneza, "o grego".

Segundo dados cronológicos, Tiago teria iniciado as suas traduções de Aristóteles em torno do ano 1127 e continuado seu trabalho até sua morte, entre 1145 e 1150. Gerardo de Cremona, em Toledo, iniciou suas traduções de Aristóteles depois de 1165. Ou seja, Tiago começara seu trabalho cerca de quarenta anos antes de seus colegas de Toledo.

A figura de Tiago de Veneza, cognominado "o grego", é misteriosa e pouco se sabe sobre ele para além de sua estadia no mosteiro de Mont-Saint-Michel, onde realizou suas traduções. Suspeita-se que tenha estudado em Constantinopla, como indicaria sua alcunha e seu estilo manifestamente helenizante na tradução. É certo, contudo, que verteu as obras do Estagirita diretamente do grego ao latim, ao contrário dos tradutores do grego que o faziam do árabe.

Embora não fosse o único monge a traduzir obras clássicas diretamente do grego, é evidente que Tiago de Veneza é o principal personagem dessa fascinante empresa intelectual seja pelo volume de obras vertidas ao latim, seja pela extensão do impacto das mesmas na cultura européia medieval. Por essa razão, para Sylvain Gouguenheim, o Ocidente latino deve muito mais aos cristãos siríacos e aos monges franceses de Mont-Saint-Michel do que aos muçulmanos a preservação e posterior difusão da cultura filosófico-científica grega.

O livro de Gouguenheim, contudo, não pára nessa afirmação da anterioridade européia das traduções de Aristóteles, mas avança até um questionamento profundo da própria história da recepção do saber grego no mundo islâmico. Para o historiador francês, mesmo o famoso Bayt Al-Hickmah, em muitos de seus aspectos mais celebrados por diversos estudiosos contemporâneos, não passaria no fim de uma lenda.

...

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11 comentários:

Anônimo disse...

Já havia lido sobre tal obra no www.aina.org um site em inglês de noticias sobre os cristãos da tradição siríaca a uns anos atrás.
A importância do cristianismo siríaco na preservação da cultura helênica é totalmente desconhecido no país e pelo o que sei não há ninguém no Brasil que estude a tradição antioquena/siríaca

Unknown disse...

Olá, me chamo Tauan Lemos, acompanho suas postagens já há um tempo. Comecei a escrever alguns posts para a página do Facebook "Repensando a Idade Média" e estou escrevendo uma postagem sobre esse tema (a preservação da cultura helênica), gostaria de saber se eu poderia compartilhar as suas postagens sobre o livro de Gouguenheim em tal página?

Muito obrigado.

R. Oleniski disse...

Olá, Tauan. Pode sim. Fique à vontade. Desde que a autoria seja explicitamente reconhecida, qualquer post pode ser compartilhado.

Se puder, mande-me o link da sua postagem no FB.

Abraços!

Unknown disse...

Muito obrigado! O intuito da página é a divulgação das obras medievalistas e rever alguns "lugares comuns" quanto à tal tema, o que é, de certa forma, ainda negligenciado no ensino da história no Brasil. Aqui está o link: https://www.facebook.com/298800580312165/photos/a.298801756978714.1073741827.298800580312165/331664203692469/?type=1&relevant_count=1

Qualquer problema, me avise por favor.

Abraço!

R. Oleniski disse...

Olá Tauan!

De nada! Eu escrevi alguns outros posts sobre a ciência e a vida intelectual na Idade Média que podem ser úteis.

Todos os posts sobre a Idade Média:

http://oleniski.blogspot.com.br/search/label/Idade%20M%C3%A9dia?updated-max=2011-06-18T20:01:00-03:00&max-results=20&start=21&by-date=false

Posts específicos sobre a ciência e a cultura intelectual na Idade Média:

http://oleniski.blogspot.com.br/2011/09/terra-chata-idade-media-e-idade-das.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2012/07/terra-chata-idade-media-e-idade-das.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2013/09/guillaume-de-conches-natureza-e-ciencia.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2011/06/as-universidades-medievais-dos-seculos.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2011/06/medicina-como-ciencia-nas-universidades.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2011/06/as-universidades-medievais-dos-seculos.html

Abraços!



Anônimo disse...

Olá, boa tarde.
Gostaria de elogiá-lo pelo excelentíssimo exposto, como também gostaria de perguntar-te, seguindo a linha da postagem, se o Sr. sabe onde posso encontrar os escritos de Aristóteles em latim? Seria possível, para um leigo leitor moderno ler a obra completa de Aristóteles em latim? Isto é, seria possível achá-las todas?
Referente ao elogio: ótimas exposições, muito convenientes a quem pretende boa formação, que seja outra que não se embeba de mitos modernos, tais como o já rechaçado nesta postagem de o mundo islâmico ter dado formação profunda aos europeus.
Muito obrigado pela atenção.
Fique com Deus.

R. Oleniski disse...

Olá!

Obrigado pelos elogios.

Eu não sei se hoje ainda publicam fisicamente traduções latinas de Aristóteles. Creio que se elas existem, devem ser edições de autores que fizeram comentários ao texto aristotélico, como Tomás de Aquino. É possível que encontre edições dos comentários de Aquino em latim que incluam o texto do Estagirita no mesmo idioma. Seria um meio indireto de conseguir as obras aristotélicas em latim.

Há também este projeto online: http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brepolis_ALD_EN.pdf

Abraços!

Fique com Deus.

José Adairtes disse...

Rógerio, ao citar seu artigo como referência, o meu interlocutor, salientou que existe uma petição anti-Gouguenheim, que Gouguenheim não tem quase nenhum apoio dos medievalistas.

R. Oleniski disse...

Olá José!

Olha, de fato a tese de Gouguenheim recebeu muitas críticas e criou uma controvérsia bem significativa quando do lançamento do livro. Houve reações furiosas e essa petição (parece que foram três, se não me engano) foi sim assinada por alguns medievalistas. A acusação era a de que Gouguenheim estaria fomentando uma "guerra de civilizações".

Sinceramente, li o livro e não vi nada do gênero, embora o autor se contraponha com veemência às teses de um "iluminismo islâmico" muito propagadas por certos orientalistas. O caso tornou-se incendiariamente público menos pelas teses (quem, afinal, se importa com história medieval?) e mais por causa da situação da França atual frente aos seus cidadãos muçulmanos.

O livro foi criticado sim, mas foi elogiado por gente de peso como Roger Pol-Droit, Claude Gauvard e Jacques Le Goff. Sem contar que Gouguenheim não é um diletante, mas um medievalista reconhecido e professor na Université de Lyon.

Não ouso dizer quem tem razão, pois não sou historiador e muito menos medievalista. Só acho que petições são um modo covarde de calar o opositor e algo indigno do verdadeiro espírito de debate intelectual livre. Se a tese de Gouguenheim está errada, deve ser criticada a partir de argumentos históricos e não através de acusações morais como "islamofobia" e outras tolices do gênero.

Se alguém argumentasse contra uma tese de um autor qualquer dizendo que ele foi alvo de uma petição de seus colegas acadêmicos contra as suas idéias, isso teria muito pouco impacto sobre meu julgamento da obra em questão. Acho um argumento raso e autoritário.

Por um lado, se o consenso (quando há) dos especialistas do campo é importante e valioso epistemicamente, por outro sabe-se muito bem que consenso não significa verdade e que muitas vezes obras são rejeitadas e criticadas na sua estréia e tempos depois são reabilitadas como grandes marcos científicos.

Não afirmo que esse seja o caso de Guguenheim, mas acho válido manter uma posição crítica e prudente diante dessas controvérsias apaixonadas, principalmente quando elas estão evidentemente envolvidas em um contexto social e político que inclui muito mais do que a simples discussão acadêmica.

Abraços!

Unknown disse...

Bravíssimo, Rogério. Não imaginaria maior nível de lucidez que o percebido em seu posicionamento.

Unknown disse...

Gostei muito do texto e da argumentação.