quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Cristãos, islâmicos e a herança do saber clássico



"(...) os eruditos cristãos e muçulmanos não tinham a mesma atitude com respeito ao saber grego. De um lado, o cristianismo havia recuperado a cultura antiga, selecionando os empréstimos o epicurismo foi rechaçado -, mas integrando seu espírito. Embora sem um conhecimento profundo do saber grego, as tradições jurídicas e políticas do mundo romano exerceram certa influência sobre o direito medieval, as práticas políticas das comunas italianas ou a idéia de império. Por outro lado, o Islã adotou dos gregos o que considerou útil e abandonou seu espírito. Nem a literatura, nem a tragédia ou a filosofia gregas impregnaram em absoluto a cultura muçulmana. Unicamente a lógica encontrou seu lugar nela, em contornos muito variados e com algumas restrições."

SYLVAIN GOUGUENHEIM, Aristote au Mont-Saint-Michel


A recepção do saber grego no Islã medieval foi acolhimento, rechaço ou simples indiferença? Em geral, segundo Sylvain Gouguenheim, o tom foi de indiferença e de rechaço. Os que acolheram tais saberes foram uma "ultra-minoria". E, ainda assim, o filtro corânico foi determinante nessa aceitação.

Gouguenheim pretende desfazer os erros na interpretação da entrada do saber grego no mundo islâmico medieval. Para isso, ele ataca diversos exemplos geralmente aceitos como evidência de um "iluminismo muçulmano" naquele período, o qual supostamente teria lançado as bases da civilização moderna européia. 

O Kalam, por exemplo, frequentemente descrito em termos de uma teologia natural racionalista por alguns historiadores, era na realidade um movimento ortodoxo cujo uso da lógica grega se limitava a organizar o pensamento a fim de refutar as heresias e defender a fé islâmica.

O Bayt Al Hickmah ("Casa do Saber"), visto usualmente como uma casa de sábios de diversas origens e religiões trabalhando juntos em traduções e pesquisas filosofico-científicas, era uma biblioteca privada do califa Harun Al-Rashid e se tornou aberta aos sábios somente no governo de Al Mamun e jamais recebeu judeus ou cristãos em seu interior. Para Gouguenheim, a fama do Bayt Al-Hickmah não passa de uma lenda.

As tão afamadas traduções de Aristóteles e de diversos outros autores gregos eram realizadas fora do Bayt, por iniciativa privada de sábios e eruditos, mormente cristãos e sabeus. Estes, inclusive, não estavam associados à Casa e não há evidências de que a sua direção esteve sob responsabilidade de Hunayn Ibn Ishaq, o tradutor e filósofo cristão siríaco, como usualmente se afirma.

E quem são os sábios dos quais o califa abássida Al Mamun cerca-se na Casa do Saber?  Segundo Gouguenheim, não são os falasifa, os filósofos, mas sim os ulama, os sábios e doutores nas ciências corânicas. O conceito de "sábio" jamais foi o de um pensador de estilo grego e sim o de um âlim, um conhecedor da Al'Ilm (A Ciência), o conhecimento do fiqh, o direito muçulmano. E como lei e religião formam um só todo no islamismo, tudo retorna à Shariah, a lei geral de todo fiel muçulmano.

E quanto aos celebrados falasifa? Gouguenheim afirma que estes absorveram da cultura grega só e tão somente o que não contradizia o texto corânico e que mesmo Ibn Rushid, considerado por muitos um racionalista, realizou sua obra primordialmente como jurista islâmico. A defensa da filosofia contida no famoso Discurso Decisivo não seria mais do que uma sentença jurídica que submetia e julgava a filosofia de acordo com a lei islâmica. 

Desse modo, a noção de um "Islã das Luzes" - que teria fecundado com sua cultura e amor ao conhecimento uma Europa então mergulhada na escuridão da ignorância e que teria assim criado as condições para o imenso progresso científico e técnico do mundo moderno - seria não mais do que uma lenda ditada, entre outras coisas, por uma tentativa de alçar o Islã ao status de raiz da civilização européia.

Para Gouguenheim, todo o avanço cultural europeu nasceu de suas próprias raízes gregas que nunca foram completamente esquecidas e nem obliteradas. Foram os próprios europeus que buscaram, desde o início do cristianismo, passando pelos esforços carolíngios e pelas traduções dos monges de Mont-Saint-Michel, preservar ou recuperar o tesouro filosófico-científico dos antigos.

Mesmo os avanços tecnológicos e de medicina criados por sábios islâmicos restaram desconhecidos no mundo latino de modo que nenhuma influência tiveram na sua vida cultural. E mais, eles foram rapidamente superados pelos feitos da ciência européia posterior.

A julgar pelo interesse e volume das traduções realizadas em Mont-Saint-Michel e pela dedicação dos europeus de recuperar e de aprender o saber antigo, seria plausível afirmar, Gouguenheim assevera, que a história de progresso cultural e científico do mundo europeu seria a mesma se não houvesse o contato com o mundo islâmico. A influência real foi muito menor do que usualmente se afirma devido a uma avaliação equivocada do alcance da helenização no Islã.

As diferenças no tratamento desse saber grego devem ser buscadas na própria estrutura das religiões que se confrontaram na Idade Média. No Cristianismo o saber grego estava unido desde o início à religião, pois ele nasce no mundo greco-romano, parte considerável de seus textos sagrados foram escritos em grego e os dogmas foram definidos com ajuda de termos filosóficos helenos.

E mais importante, a fé cristã centra-se em uma pessoa, Cristo, e este prega claramente um entendimento não legalista das prescrições sagradas. Há a necessidade de não somente obedecer a leis, mas compreender o sentido da mensagem contida nos textos sagrados, e isso consistiria uma "estrutura intelectual própria à fé cristã".

O Islã seria muito menos permeável à influência do mundo grego por diversos motivos. O Islã nasceu em um mundo muito diferente e afastado do mundo grego e se constitui precipuamente como uma ortopraxis, isto é, como um modo correto de portar-se no mundo. O centro de sua prática de piedade é a obediência à Shariah, a Lei comum. Não havendo diferenças entre o religioso, o social e o jurídico, a estrutura do Islã é mais compacta e mais - para usar uma expressão de Gouguenheim - "centrípeta".

O Cristianismo e o Islã seriam monoteísmos tão diferentes entre si que não poderiam apresentar o mesmo grau de helenização ou de abertura a influências externas. Por essa razão, para Sylvain Gouguenheim, as raízes da civilização européia moderna encontram-se firmemente fincadas no solo fértil da conjunção entre Grécia, Roma e Cristianismo. O Logos propiciaria um caminho mais auspicioso para o saber clássico do que as suras eternas do Qu'ran.

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