"O físico afirma que a ordem na qual ele arranja os símbolos matemáticos a fim de constituir um teoria física é um reflexo cada vez mais claro de uma ordem ontológica de acordo com a qual as coisas inanimadas são classificadas. Qual a natureza dessa ordem que ele afirma? Através de qual tipo de afinidades as essências dos objetos sob observação se aproximam uma das outras? Estas são questões que não são permitidas a ele responder. Ao afirmar que a teoria física tende a uma classificação natural em conformidade com a ordem na qual as realidades do mundo físico estão arranjadas, ele já excedeu o limite do domínio no qual seus métodos podem ser legitimamente exercidos. Por fortes razões esse método não pode descobrir a natureza dessa ordem ou dizer o que ela é. Precisar a natureza dessa ordem de forma exata é definir uma cosmologia. Expô-la a nossos olhos é expor um sistema cosmológico. Em ambos os casos é realizar um trabalho que não pertence essencialmente ao físico, mas ao metafísico." (tradução própria do original em francês)
PIERRE DUHEM, La Théorie Physique, son objet et sa structure, p.407
Em posts anteriores tratamos da natureza da teoria física segundo Pierre Duhem, para o qual aquela não poderia ser jamais uma explicação das causas últimas dos fenômenos observados, mas somente uma descrição matemática do comportamento observável das magnitudes físicas.
As equações que representam simbolicamente o comportamento dessas magnitudes devem ser lógica e rigorosamente organizados em um conjunto dedutivo coeso de tal forma que as diversas proposições matemáticas possam ser deduzidas de uma série limitada de princípios mais gerais.
Essa organização lógica Duhem denominou "classificação natural" e comparou-a ao trabalho de um zoólogos que estuda a anatomia de diversos seres vivos e os organiza em espécies, raças e outras subdivisões de acordo com as semelhanças e diferenças que nelas encontra.
Através da limitação do escôpo da física, Duhem pretendia separar claramente as esferas da ciência e da metafísica e salvaguardar a autonomia de ambas. Nenhuma teoria física poderia jamais refutar uma proposição ou tese metafísica e vice-versa.
No trecho reproduzido acima, Duhem chama atenção para um fato importante. Não obstante a barreira teórica que separa o físico do cosmólogo, há uma exigência ontológica na física que ultrapassa o seu domínio próprio, mas que lhe é essencial para sua constituição como campo de saber e de pesquisa.
Antes de comentar essa exigência, é mister esclarecer o sentido que Duhem atribui ali ao cosmólogo. Os termos cosmólogo e seu correlato cosmologia não são empregados por Duhem no sentido da moderna teoria cosmológica que, entre outras atribuições, estuda os fatos concernentes à formação e à origem do universo.
O termo é empregado num sentido que se aproxima daquilo que Aristóteles e toda a tradição científica da antiguidade até os tempos modernos denominou de física, a saber, uma teoria geral dos seres móveis e contingentes, abarcando seus aspectos quantitativos e qualitativos.
A distinção se torna mais clara se atentarmos para um exemplo histórico: na antiguidade cabia ao físico ou cosmólogo a determinação da natureza última dos corpos celestes e ao astrônomo a determinação de seu comportamento observável através da aplicação de técnicas matemáticas.
Duhem parece seguir as linhas gerais dessa distinção, aplicando-a agora ao contexto da ciência moderna. Esta faria o trabalho outrora reservado ao astrônomo, descrevendo matematicamente o comportamento observável de seus objetos e permanecendo no domínio restrito daquilo que é quantificável.
O cosmólogo mantém a sua função antiga - embora não mais com a designação geral de físico - de determinar a natureza real e subjacente daquilo que o astrônomo antigo ou o físico moderno estuda. Dado isso, Duhem, contudo, parece unir o cosmólogo e o metafísico, tradicionalmente separados por objetos diferentes de conhecimento.
Ora, segundo a teoria aristotélico-tomista dos três graus abstrativos, no primeiro deles, o da física, abstrai-se a matéria particular da qual a coisa estudada é feita e considera-se somente sua natureza, forma ou Eidos. No segundo grau, abstrai-se toda e qualquer matéria possível e consideram-se somente seus aspectos quantitativos que não podem existir no real separada e independentemente, mas tão só como acidentes de uma substância concreta.
O terceiro grau é o da metafísica, no qual se abstraem todos os aspectos qualitativos e quantitativos e consideram-se somente as características essenciais do ser enquanto ser. Não está claro nas obras de Duhem se ele subscreve in totum essa doutrina das abstrações, mas certamente ele reconhece (mesmo de forma não explícita) a diferença que existe em considerar os objetos segundo suas propriedades matemáticas qua pertencendo a objetos materiais e não somente enquanto abstrações imateriais, distinção que já se encontra em Aristóteles, na sua descrição das ciências "matemáticas mais físicas": a astronomia, a ótica e a harmonia (Física II 193b [25] - 194b[10]).
O físico moderno, então, encara os objetos segundo suas propriedades matemáticas, ou seja, considera-os naquilo que neles é quantificável. Não o faz, entretanto, como o matemático que abstrai esses aspectos das coisas e estuda-os como se fossem entes separados e independentes dos objetos concretos.
Ao contrário, o físico estuda os aspectos quantitativos das coisas como pertencendo inseparavelmente a elas. Por isso ele constrói equações que descrevem e refletem o comportamento manifesto das magnitudes físicas. Isto é, ele as encara a partir de suas propriedades que podem ser quantificadas.
Mas por esse mesmo método, ele se aparta de considerações sobre a natureza última desses mesmos objetos, limitando-se a coordenar logicamente as equações que descrevem aquilo que nos corpos físicos pode ser quantificado. Esse é seu limite.
Para Duhem, o físico moderno deve permanecer dentro desse domínio específico. Ele não deve acalentar as pretensões do físico da antiguidade ou do cosmólogo, como Duhem o chama. Questões de essência ou natureza última das coisas estão vetadas ao físico moderno. E isso pela limitação lógica intrínseca de seus métodos e de sua metodologia.
Retornando ao ponto onde paramos antes dessa digressão, Duhem admite que há uma pretensão do físico que escapa dessa barreira teórica estabelecida até aqui. Embora o físico não possa mais do que coordenar matematicamente o comportamento manifesto das magnitudes físicas sem tentar construir ou afirmar uma teoria sobre a natureza real das coisas, ele almeja que essa descrição tenha uma ligação real com aquilo que se dá no mundo.
Em outros termos, ele pretende que essa coordenação lógica das equações reflita cada vez melhor uma estrutura subjacente ao real enquanto tal. Implicitamente o físico afirma que suas teorias se aproximam sempre mais de uma classificação que refletiria a estrutura ontológica do mundo.
Para Duhem, esse postulado é de ordem cosmológica, mas é indispensável ao exercício da ciência empírica. Ao físico é permitido seu uso desde que ele se mantenha dentro dos limites de seu domínio teórico. Em termos de cosmologia, essa postulação é o máximo que o físico pode se aproximar de uma afirmação sobre a natureza do real.
Sem esse pressuposto, o cientista se perderia num mar de equações que descrevem mais ou menos adequadamente como se comportam os corpos, mas com alcance limitado e sem ligação umas com as outras. Ele tem que admitir a priori que essas equações podem ser coordenadas logicamente em um conjunto coeso e coerente que, mais e mais, reflete uma ordem que subjaz ao próprio real.
Duhem não admite que o ideal do físico seja aquele de encontrar leis e equações de fenômenos isolados, sem qualquer conexão ou necessidade lógica entre elas. Diferente de Poincaré, Duhem exige uma coordenação lógica dessas leis e equações, ou seja, que elas sejam um conjunto dedutivo rigoroso e que esse rigor reflita uma ordem que se dá realmente no mundo.
Em outros termos, os aspectos quantitativos que a ciência moderna trata e estuda nas coisas do mundo físico apresentam uma coerência que pode ser explicitada por uma classificação natural das leis observáveis e fornecem um conhecimento real do que acontece no mundo, ao menos no que se limita ao quantificável.
Essa pretensão que ultrapassa o que pode ser legitimamente observado pela física é, no entanto, aquilo que fundamenta mesmo a pretensão de conhecimento que anima essa ciência. Duhem aponta assim para o fato de que o fundamento epistemológico de uma ciência particular não pode ser dado por ela mesma, mas por uma esfera de conhecimento mais alta e mais ampla.
...
Leia também