Ironia? Cratera Aristóteles na Lua
"Cada um pode se dar conta com a certeza dos sentidos, que a Lua é dotada de uma superfície de forma alguma lisa e polida, mas feita de asperidades e rugosidades, e que, como a própria Terra, ela é toda feita de grandes protuberâncias, fendas profundas e sinuosidades."
GALILEU, Sidereus Nuncius, 1610
No Sidereus Nuncius, Galileu anuncia grandes descobertas como a existência de um número incalculável de estrelas invisíveis a olho nu, a superfície acidentada da Lua, novos"planetas" em torno de Vênus e Mercúrio e a substância verdadeira das estrelas ditas "nebulosas".
E essas descobertas fascinantes se deviam ao uso do perspicillum (telescópio). Galileu, voltando o telescópio para o céu, se afasta totalmente da teoria aristotélica do conhecimento em voga na sua época.
Segundo Paul Feyerabend, se os objetos terrestres (sublunares) e os objetos celestes (supralunares) são formados de sustâncias diferentes, obedecendo a leis diferentes (como era geralmente aceito desde Aristóteles), então os resultados da utilização de lunetas e telescópios para aumentar o alcance da visão de objetos terrestres (como nas demonstrações de Galileu em Bologna) não poderiam ser tomados como críveis e seguros sem uma maior discussão quando aplicados aos céus.
"Os sentidos, quando em condições adequadas, nos dão uma percepção fiel das coisas", diziam os aristotélicos. Podemos descontar os efeitos distorcivos que as lentes de uma luneta imprimem no objeto terrestre observado justamente por que o conhecemos em sua forma real à olho nu. Mas no caso da sua aplicação aos objetos celestes? Não poderão acontecer distorções semelhantes - e outras inimagináveis - como as que sabidamente se dão no uso terrestre? Que critério há para distinguir a verdade da ilusão óptica nesses casos?
Galileu apresentou seu telescópio como um meio confiável de revelar a verdade dos céus. Os sentidos não serão mais invocados para distinguir o verdadeiro do falso. As crateras da Lua não serão julgadas pela evidência da visão nua como as distorções das lentes são julgadas no caso das coisas terrestres. O testemunho do telescópio será objetivo e definitivo.
Inaugura-se assim, segundo Koyré, o período instrumental da ciência. O instrumento não é mais um mero auxiliar nas tarefas humanas. Ele comporta em si, em sua própria utilização, uma teoria sobre o mundo. Com o perspicillum, Galileu pressupunha, entre outras coisas, a homogeneidade dos meios, uma ontologia não-hierárquica do universo e a substituição dos sentidos como pedra de toque do conhecimento do real.
E com essas lentes, um mundo novo tomava forma.