segunda-feira, 22 de junho de 2009

Galileu e o mundo nunca antes visto


Ironia? Cratera Aristóteles na Lua

"Cada um pode se dar conta com a certeza dos sentidos, que a Lua é dotada de uma superfície de forma alguma lisa e polida, mas feita de asperidades e rugosidades, e que, como a própria Terra, ela é toda feita de grandes protuberâncias, fendas profundas e sinuosidades."

GALILEU, Sidereus Nuncius, 1610

No Sidereus Nuncius, Galileu anuncia grandes descobertas como a existência de um número incalculável de estrelas invisíveis a olho nu, a superfície acidentada da Lua, novos"planetas" em torno de Vênus e Mercúrio e a substância verdadeira das estrelas ditas "nebulosas".

E essas descobertas fascinantes se deviam ao uso do perspicillum (telescópio). Galileu, voltando o telescópio para o céu, se afasta totalmente da teoria aristotélica do conhecimento em voga na sua época.

Segundo Paul Feyerabend, se os objetos terrestres (sublunares) e os objetos celestes (supralunares) são formados de sustâncias diferentes, obedecendo a leis diferentes (como era geralmente aceito desde Aristóteles), então os resultados da utilização de lunetas e telescópios para aumentar o alcance da visão de objetos terrestres (como nas demonstrações de Galileu em Bologna) não poderiam ser tomados como críveis e seguros sem uma maior discussão quando aplicados aos céus.

"Os sentidos, quando em condições adequadas, nos dão uma percepção fiel das coisas", diziam os aristotélicos. Podemos descontar os efeitos distorcivos que as lentes de uma luneta imprimem no objeto terrestre observado justamente por que o conhecemos em sua forma real à olho nu. Mas no caso da sua aplicação aos objetos celestes? Não poderão acontecer distorções semelhantes - e outras inimagináveis - como as que sabidamente se dão no uso terrestre? Que critério há para distinguir a verdade da ilusão óptica nesses casos?

Galileu apresentou seu telescópio como um meio confiável de revelar a verdade dos céus. Os sentidos não serão mais invocados para distinguir o verdadeiro do falso. As crateras da Lua não serão julgadas pela evidência da visão nua como as distorções das lentes são julgadas no caso das coisas terrestres. O testemunho do telescópio será objetivo e definitivo.

Inaugura-se assim, segundo Koyré, o período instrumental da ciência. O instrumento não é mais um mero auxiliar nas tarefas humanas. Ele comporta em si, em sua própria utilização, uma teoria sobre o mundo. Com o perspicillum, Galileu pressupunha, entre outras coisas, a homogeneidade dos meios, uma ontologia não-hierárquica do universo e a substituição dos sentidos como pedra de toque do conhecimento do real.

E com essas lentes, um mundo novo tomava forma.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Marin Mersenne: ciência e o ceticismo mitigado


"Pois pode ser dito que apenas vemos a parte externa, a superfície da natureza, sem sermos capazes de penetrar no seu interior, e jamais possuiremos nenhuma outra ciência além da dos seus efeitos externos, sem sermos capazes de encontrar as razões deles, e sem sabermos por que agem, até que Deus queira nos livrar de nossa miséria e abrir nossos olhos por meio da luz que Ele reserva a Seus autênticos admiradores."

MARIN MERSENNE, 1634


A redescoberta do ceticismo pirrônico e seu conseqüente ataque à possibilidade de conhecimento necessário dos objetos e o questionamento da tradição aristotélica levado a cabo pela revolução científica galilelaico-cartesiana constituíam os principais problemas para qualquer intelectual do século XVII.

De um lado, os céticos retornavam, através dos textos gregos de Sextus Empiricus, e minavam com seus elaborados argumentos o edifício do conhecimento certo e verdadeiro da natureza dos objetos que havia sido erigido pela já cambaleante tradição escolástico-aristotélica.

De outro, a nova física defendida por Galileu e Descartes, com seu mundo mecânico, seu espaço matemático-geométrico, sua redução das qualidades à quantidade, sua rejeição da experiência cotidiana, desafiava a física de Aristóteles e pretendia substituí-la como a nova, e finalmente verdadeira, imagem do mundo.

Que fazer? Os argumentos céticos minavam toda pretensão ao conhecimento e atingiam tanto os velhos dogmas aristotélicos quanto as pretensões da nova ciência. Entretanto, esta mostrava sucessos observáveis. Há solução para esse dilema?

A resposta do frade mínimo, filósofo, matemático e cientista Marin Mersenne tentaria conciliar a rejeição da tradição científica aristotélica, as objeções pirrônicas ao conhecimento da natureza das coisas e os sucessos da nova ciência mecanicista e inauguraria uma concepção da ciência que desembocaria em David Hume, Pierre Duhem, no positivismo e no pragmatismo.

Sua resposta é simples: a ciência como queriam Aristóteles e os antigos, um conhecimento certo da natureza última dos fenômenos, é impossível como mostram os irrefutáveis argumentos céticos. Entretanto, um conhecimento hipotético acerca das aparências dos fenômenos nos é possível, verificável e útil para nos guiarmos no mundo.

Tal conhecimento, consistindo "em dados sobre as aparências, hipóteses e previsões sobre a conexão entre eventos e o curso da experiência futura", como nos diz Richard Popkin, estava em franca oposição às pretensões de conhecimento real de Galileu e Descartes. A ciência de Mersenne, ela mesma mecanicista, era apresentada como uma hipótese útil, verificável para fins práticos, destituída de qualquer metafísica e sem pretensões de fornecer um retrato verdadeiro do mundo real.

A posição de Mersenne, chamada de "ceticismo mitigado", foi bem vista em sua época, sendo esquecida um século depois quando o Iluminismo, hipnotizado pelas conquistas de Newton, ergueu-se orgulhosamente como o novo dogmatismo epistemológico.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Origens da ciência na Grécia antiga



Em seu livro Early Greek Science, Geoffrey E. R. Lloyd afirma que, embora não se possa dizer que os primeiros filósofos milésios tenham concebido claramente um método científico o qual pudesse ser aplicado no restrito rol de problemas a que seu pensamento se dedicava, pode-se afirmar com certeza que duas características os distinguiam claramente de seus antecessores gregos ou não-gregos.

A primeira delas Lloyd chama de "a descoberta da natureza". Em outras palavras, seria a concepção de um mundo regido não pelo desejo e pelo arbítrio dos deuses (por vezes tão caprichosos), mas sim por uma constância, de caráter geral e impessoal, regida por relações de causa e efeito.

O exemplo que Lloyd usa para ilustrar sua tese é a teoria de Thales de Mileto sobre os tremores de terra. Segundo o filósofo, a terra, por estar sustentada pelas águas, é afetada pela agitação das mesmas. Embora se possa encontrar referências míticas a Poseidon como causador dos tremores de terra, a teoria de Thales omite totalmente o deus do mar em sua explicação o substituindo por uma relação de causa e efeito entre entes puramente materiais e naturais.

A segunda característica apontada é a discussão crítica das teorias. Segundo Lloyd, os filósofos milésios se dedicavam a conhecer e criticar as teorias de seus contemporâneos. A avaliação dessas teorias passava pela percepção de que estas eram explicações rivais para um determinado fenômeno sob estudo e que se devia encontrar a resposta mais adequada. As teorias eram apreciadas segundo sua força argumentativa e seus possíveis defeitos.

A consciência crítica da rivalidade das teorias estava em contraste com o pensamento mítico que, embora tratando por vezes dos mesmos temas que os filósofos se debruçaram, explica os fênomenos de forma desconectada uns dos outros e por vezes admite, sem problemas, diversas explicações diferentes para um mesmo fenômeno.

Para Lloyd, essas duas descobertas dos primeiros filósofos, a concepção de um mundo regido por leis naturais gerais e a discussão crítica das teorias, marcam o nascimento da filosofia e da ciência na Grécia e são condições necessárias (mas certamente não suficientes) para o progresso dessas atividades.

sábado, 6 de junho de 2009

Alexandre Koyré: le Cosmos et la Philosophie

"La philosophie essaie toujours de nos donner une réponse à la double question: 'qu'est-ce qui est?' et 'que suis-je?' ou ', si l'on préfère: 'où suis-je?' et 'que suis-je?' , moi que me pose cette question. Aux époques heureuses, classiques, elle commence par ce qui est, par le Monde, le Cosmos; et c'est à partir du cosmos qu'elle essaye de répondre à la question 'que suis-je?' en recherchant le lieu, la place que l'homme occupe dans 'la grande chaîne de l'être', dans l'ordre hiérarchique du réel. Mais aux époques 'critiques', époques de crise, oú l'Être, le Monde, le Cosmos devient incertain, se désagrège et s'en va en lambeaux, la philosophie se tourne vers l'homme; elle commence alors par 'que suis-je?'; elle interroge celui qui pose les questions."

ALEXANDRE KOYRÉ, Entretiens sur Descartes

Feyerabend: a impossibilidade de uma teoria da ciência


"Successful research does not obey general standarts; it relies now on one trick, now on another, and the moves that advance it are not always know to the movers. A theory of science that devises standarts and structural elements of all scientific activities and authorizes them by reference to some rationality-theory may impress outsiders - but it is much too crude an instrument for the people on the spot, that is, for scientists facing some concrete research problem. (...) A theory of science is then impossible. All we have is the process of research and, side by side with it, all sorts of rules of thumb which may aid us in our attempt to further the process but which may lead us astray."

PAUL FEYERABEND, Farewell to Reason, p. 281/283


O famoso "princípio" do anything goes não é realmente um princípio. É uma conclusão que, segundo salientava Feyerabend, se impõe a todo racionalista que leve a história da ciência à sério.

O filósofo austríaco, a despeito de sua retórica polemista por vezes agressiva e sempre irônica, levantava problemas epistemológicos sérios e importantes, advindos das posições de Popper, Lakatos e de outros teóricos racionalistas.

Feyerabend afirmava que nenhuma teoria da racionalidade, nenhuma metodologia racionalista, nenhuma norma epistemológica era abrangente o suficiente para dar conta da história da ciência.

Em outras palavras, se tomássemos qualquer uma dessas teorias ou regras epistemo-metodológicas como parâmetro para a análise das práticas científicas do passado e do presente, seríamos obrigados a considerar boa parte das realizações científicas como irracionais.

Teorias e descobertas consideradas hoje como verdadeiras e racionais foram alcançadas justamente graças a cientistas que criticaram ou simplesmente ignoraram solenemente regras metodológicas, leis lógicas, práticas normais de investigação, critérios de verificação que eram, em sua época, tomados como normas racionais por excelência.

O desafio então para o filósofo racionalista seria o de buscar uma teoria da racionalidade e um set de regras metodológicas que fossem amplas o suficiente para abranger os casos acima sem que seu conteúdo normativo pudesse obstruir o progresso científico.

Entretanto, para Feyerabend, nenhuma teoria ou set de normas do passado ou do presente pode dar conta coerentemente de todas as rupturas epistemológicas da ciência reunindo-as sob um conceito único de racionalidade.

Além disso, é mesmo difícil pensar que possa haver alguma teoria que algum dia realize essas exigências, pois não se pode saber, de antemão, quais regras, por mais abrangentes que sejam, terão de ser questionadas e ignoradas para que a ciência progrida.

Assim, asseverava Feyerabend, qualquer conjunto de regras e normas epistemológico-racionais é restritiva demais e pode impedir o progresso do conhecimento, não importando o conceito que se tenha de progresso. Pode-se dizer que, para qualquer progresso, o nível de regras deve ser igual a zero. Dito de outro modo, tudo vale.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Fragments of a lost world...

"For what is somewhere is itself something, and there must be alongside it some other thing wherein it is and which contains it. But alongside the All or the Whole there is nothing outside the All, and for this reason all things are in the heaven; for the heaven, we may say, is the All. Yet their place is not the same as the heaven. It is part of it, the innermost part of it, which is in contact with the movable body and for this reason the earth is in water, and this in the air, and the air in the aether, and the aether in the heaven, but we cannot go on and say that the heaven is in anything else."

ARISTOTLE, Physics, book IV, cap.5